O caricaturista e jornalista francês Stéphane Charbonnier (ou Charb, como assinava) foi assassinado no atentado terrorista de 07 de janeiro do ano passado, em Paris (só leia os detalhes do massacre do Charb Hebdo, onde morreram pelo menos outras onze pessoas, se você estiver de bom humor). Charb passou a receber ameaças de morte em 2013 após ter publicado caricaturas do profeta Maomé no jornal satírico francês Charb Hebdo, do qual foi diretor entre 2009 e 2015. Mas antes de receber sua sentença de morte, ainda em 2009 e em 2014, ele já havia publicado em livro duas coletâneas de crônicas que identificava como Fatwas (que em árabe significa um pronunciamento legal sobre um assunto específico emitido por um especialista - a mais famosa delas foi a sentença de morte que Salman Rushdie recebeu do Aiatolá Khomeini em 1989). Pois esses dois livros agora estão juntos na edição brasileira. "Pequeno tratado da intolerância" reúne 106 textos curtos, de um sarcasmo absoluto, nos quais Charb critica comportamentos, hábitos e práticas sociais contemporâneas (e também objetos, eventos, animais, o clima, conceitos, filosofias). São crônicas sempre engraçadas e totalmente arbitrárias. Nas que mais gostei ele execra pessoas "que tem mãos-fedidas", "que usam óculos descolados" ou "que frequentam festivais"; sujeitos "que acreditam na objetividade do DNA", "que cultuam a renovação do mês de janeiro" ou "que são tolerantes com trotes estudantis". Execrar não é exatamente o termo certo. Ele sugere ironicamente a violência física e a morte, num exercício de saturação de nossa sensibilidade atordoada pela estupidez do comportamento "politicamente correto" e das boas e aleatórias "causas nobres" de nosso tempo. Após ler meia dúzia das crônicas você já começa a pensar na sua própria lista de sentenças de morte. É mesmo um exercício divertido. Charb sempre termina seus textos com um "Você há de concordar" e um "Amém", nos lembrando que muitas pessoas aparentemente sensatas e bem educadas são capazes de buscar nossa cumplicidade e filiação a questões completamente absurdas e incoerentes (quando não criminosas) apelando para chavões assim. Que um fanático religioso qualquer acredite que sua fé deva ser imposta a milhões de pessoas parece risível, demonstra subdesenvolvimento e intolerância, algo fácil de condenar, sobretudo de longe, todavia temos muito mais dificuldades de identificar nos atos corriqueiros, na vida diária, nos vizinhos, no jornal diário e nos colegas disparates tão ou mais perniciosos. Esse foi o último livro que li em 2015 e foi de longe o mais divertido (o tipo de diversão que obriga o sujeito a pensar sério). Enfim, como não concordar com um "Você há de concordar, é preciso cozinhar os jornalistas no forno de micro-ondas para verificar a qual temperatura se derrete o gene das idéias feitas desses doutores Mengele da desinformação. Amém."
[início: 30/12/2015 - fim: 31/12/2015]
"Pequeno tratado da intolerância", Charb, tradução Jorge Bastos, São Paulo: editora Planeta, 1a. edição (2015), brochura 14x20 cm., 286 págs., ISBN: 978-85-422-0638-8 [edição original: Les Fatwas de Charb: Petit traité d'intolérance" (Paris: Éditions Les Échappés) 2014]
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