No final de 1959 Mario Vargas Llosa sai de Madrid, onde vivia com uma bolsa de estudos e emigra para Paris, onde acreditava que também conseguiria uma. Mesmo descobrindo que a promessa de bolsa não se concretizaria ele decide permanecer na cidade e dedica-se a literatura. Seu primeiro livro, La ciudad y los perros, seria publicado em 1963. Os primeiros anos em Paris foram muito difíceis, entretanto a leitura de "Madame Bovary", de Flaubert, confortou-o e o converteu definitivamente à literatura ("o livro vampirizou rapidamente minha atenção", diz ele). "A orgia perpétua", publicado originalmente em 1975, conta a história dessa paixão pelo livro de Flaubert. Trata-se de um longo ensaio, dividido em três partes: (i) na primeira, relativamente curta, Vargas Llosa fala de seu amor pelo livro, da protagonista da história, da história de composição do livro, sua recepção pela crítica, da evolução da apreciação dos leitores ao longo do tempo e das seis leituras completas que já havia feito dele nos quinze anos que haviam se passado desde que comprara seu exemplar; (ii) na segunda, bem maior e mais importante são descritos todos os aspectos relacionados ao livro, suas fontes literárias, o método de composição de Flaubert, detalhes da vida pessoal do autor, os personagens, a estrutura, o estilo, o uso do tempo e as vozes narrativas, o autor analisa como o livro funciona, fala da ordem em que os capítulos são encadeados, da obsessão de Flaubert pela forma, de quais são os elementos que o fazem destacar-se como um romance verdadeiramente moderno; (iii) a terceira parte é bem curta, ainda menor que a primeira, e nela Vargas Llosa explica a influência do romance de Flaubert no mundo literário que se segue a sua publicação, que é o da segunda metade do século XIX e o início do século XX. Sendo mais conciso, o livro é dividido entre a apresentação subjetiva das impressões de um leitor sobre uma obra; a análise objetiva, científica, de seu mecanismo e a exegese de sua historiografia, sua influência. É um livro interessante mas seu virtuosismo acaba aborrecendo o leitor, pois parece que estamos a ouvir detalhes demais sobre a paixão de um sujeito por uma pessoa que não conhecemos muito bem. Claro, você fica com vontade de reler o livro e pensa acompanhar as observações de Vargas Llosa, mas sabe que jamais alcançará a compreensão do sujeito, nem sentirá o mesmo arrebatamento que ele experimentou. A abordagem de Vargas Llosa é praticamente oposta à de Nabokov em seu Lições de literatura, já registrado aqui, já que ele faz aquilo que esse último mais condena: lê o livro se identificando com os personagens, utilizando-o para aprender a viver e, quando objetivo, científico, acadêmico, permitindo-se demasiadas generalizações. Sabe-se lá quem dos dois está certo. Sei que o amor à literatura não basta, não substituirá nunca a vida. Podemos suportar uma existência mergulhando na literatura, como numa orgia perpétua (palavras do próprio Flaubert), mas a realidade é eficaz o suficiente para sempre nos cobrar a conta desta orgia.
[início: 19/11/2015 - fim: 24/11/2015]
"A orgia perpétua: Flaubert e Madame Bovary", Mario Vargas Llosa, tradução de José Rubem Siqueira, Rio de Janeiro: editora Objetiva (Alfaguara / Grupo Penguin Random House), 1a. edição (2015), 15x23 cm., 278 págs., ISBN: 978-85-7962-431-5 [edição original: La orgía perpetua: Flaubert y Madame Bovary (Barcelona: Seix Barral / Grupo Planeta) 1975]
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