quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

enclausurado

Em "Enclausurado" encontramos um bebê já no fim de seu terceiro trimestre dentro da barriga de sua mãe tentando entender os sucessos que o esperam após seu nascimento. Qualquer leitor das "Memórias póstumas de Brás Cubas" aceita o jogo proposto, o de um narrador improvável, que fala de um lugar e tempo ao qual jamais teríamos acesso consciente. Ian McEwan faz seu bebê refletir sobre as consequências dos atos de seu pai (imprevidente), sua mãe (perversa) e do idiota tio e/ou padrasto (o irmão de seu pai e amante de sua mãe). O feto em gestação acompanha os desdobramentos do livro, como se estivesse vendo o filme em tempo real de sua vida pré-parto. Já se educa, ouvindo documentários de televisão que a mãe assiste. Consegue interferir na trama dando alguns chutes na barriga da mãe (mas sabe que não pode exagerar, pois o elemento mais frágil daquele corpo disforme sempre será ele). Os paralelos com o Hamlet de Shakespeare são óbvios e explicitados ao longo de todo o livro. Claro, há papéis trocados, alegorias cruzadas, um jogo de McEwan com o leitor. Talvez por ser filho de seu tempo (esse terrível final dos anos 2010) o loquaz feto de McEwan, justamente ao nascer e ver os olhos verdes da mãe, afirma: "o resto é caos"; enquanto o indeciso Hamlet termina sua jornada lamentado-se com Horatio dizendo: "o resto é silêncio". Por mais habilidades estilísticas que McEwan tenha, por melhor que seja o controle de seu modus narrativo, o que ele nos oferece é apenas um Hamlet travestido em um curioso e bom romance policial. As cenas de sexo, sempre um ponto alto em seus demais livros, continuam realmente boas. Os demais mimos (comentários sobre vinhos, especulação imobiliária, política europeia contemporânea, poesia,  tráfego urbano, estágios de uma gravidez e sexo) fazem parte daquilo que um bom manual de técnicas narrativas costuma ensinar que um escritor neófito deveria incluir sempre em seus livros, para dar a eles mais estofo. Nada fora do convencional. Trata-se de um romance bem escrito, que tem umas passagens interessantes, oferece um jogo bacana (que um leitor brasileiro já conhece muito bem, pois agrada sua memória afetiva), mas para mim está longe de arrebatar mesmo o mais fiel do entusiastas de Ian McEwan (a fidelidade de um leitor a seus gurus literários é sempre impressionante, mas convenhamos, deveria haver limites à toda forma de escravidão literária, notadamente as voluntárias). Talvez "Enclausurado" funcione melhor como uma peça (como aquela peça dentro da peça que Shakespeare faz Hamlet montar, para o aborrecimento de sua mãe e padrasto). Isso talvez um dia veremos. Vale.
[início: 05/11/2016 - fim: 23/11/2016]
"Enclausurado", Ian McEwan, tradução de Jorio Dauster, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 200 págs., ISBN: 978-85-359-2801-3 [edição original: Nutshell (New York: Nan A. Talese (Knopf Doubleday / Penguin Random House) 2016]

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