Momentaneamente sem livros durante uma viagem longa, eis que fui obrigado a socorrer-me em uma livraria de aeroporto (tarefa difícil, pois, convenhamos, elas já foram melhores). Encontrei "Medo e delírio em Las Vegas", que já havia lido nos divertidos e insuperáveis anos 1980 (a edição original em português é de 1984) e visto em filme, com Johnny Depp e Benício del Toro como protagonistas (a versão cinematográfica é de 1998). O livro é dividido em duas partes, igualmente surreais e amalucadas, exemplares do estilo "Gonzo", técnica literária na qual são embaralhados propositadamente autor e narrador, fato objetivo e invenção, relato e mentira (ou seja, funciona como reportagem e como literatura). Na primeira um jornalista e seu advogado embarcam para Las Vegas, devidamente abastecidos com todo o tipo de drogas ilícitas para cobrir a Mint 400, uma corrida de carros, buggies, caminhões e motocicletas que acontecia no deserto de Nevada; na segunda partem para cobrir uma "Conferência Nacional sobre Entorpecentes", evento patrocinado pela Associação Nacional dos Promotores Públicos da América. Nas duas aventuras o que o leitor acompanha é um exercício de amoralidade, de liberdade sem freios, de comportamento caótico, de anarquia total, sem limites ou censura. Implacável, Hunter Thompson satiriza tudo o que é convencional, falso ou hipócrita na sociedade americana. Claro, o mundo mudou (e muito) desde 1971. O movimento de mobilização e contestação cultural que conhecemos como "contracultura" já mostrava suas limitações e inação na época da publicação original (em forma seriada, na revista Rolling Stone). A própria aceitação (e disseminação) do estilo Gonzo como ferramenta jornalística já demonstrava os mecanismos de cooptação que a grande mídia promovia entre os epígonos daquele movimento. Nada é novo sobre o sol (e o mundo não começou em 2003, por mais que os fascistinhas mirins dos dias que correm acredite estar surfando na vanguarda do pensamento ocidental e/ou brasileiro). Hoje os mecanismos de opressão são mais efetivos e dramáticos. Dificilmente alguém poderia "viajar" pela América do Norte como Raoul Duke e seu advogado samoano fizeram. Todavia "Medo e delírio em Las Vegas" continua servindo como um registro de uma época, de um estilo de vida, de uma proposta de contestação, de um jeito de se consolar dos aborrecimentos dos dias, da estupidez reinante. O livro inclui ilustrações muito boas de Ralph Steadman, uma maravilha à parte. Vale a pena conferir o trabalho dele (pois o velhote continua vivo e produtivo). Já o Thompson, pobre homem, matou-se em 2005 (aos 67 anos). O século XXI definitivamente foi demais para ele. Vale.
[início: 20/10/2016 - fim: 08/12/2016]
"Medo e delírio em Las Vegas: Uma jornada selvagem no coração do Sonho Americano", Hunter S. Thompson, tradução de Daniel Pellizzari, ilustrações de Ralph Steadman, Porto Alegre: LPM (coleção L&PM Pocket, v. 855), 1a. edição (2010),
brochura 105,x17,5 cm., 220 págs., ISBN: 978-85-254-2012-1 [edição
original: Fear and Loathing in Las Vegas (New York: Random House) 1971]
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