Em "Não há amanhã", de Gustavo Melo Czekster, estão reunidos 30 contos, quase todos bem curtos, porém potentes, bons mesmo. O tema das histórias parece acessório, pois o que impressiona no conjunto é a qualidade do texto, burilado, rico em figuras de linguagem, em metáforas, imagens, em modulações, provocações, em meditações, propostas. Num primeiro momento pensei em sintetizar o conjunto como um "livro de contos de fadas erudito", mas com isso talvez se perdesse algo do encantamento provocado pelos relatos. De qualquer forma, das histórias algo amalucadas inventadas por Czekster brotam, antes que preceitos morais ou ensinamentos para a vida prática, lições sobre a concretude das palavras, da potência intrínseca delas, do cuidado com que cada palavra ou conceito deve ser empregado para que uma ideia possa vestir-se de algum valor. Tudo parece novo, não há clichês, frases feitas, joguinhos metaliterários. Sim, o livro é povoado por ecos de histórias bíblicas e citações literárias, mas não como num exercício cabotino, e sim pela funcionalidade estética e reflexiva alcançada pela utilização deles. Há temas que frequentam mais de um conto: o silêncio, a obsessão, o transe e a vertigem, o sonho, a loucura e a morte. Gostei particularmente de "A passionalidade dos crimes", no qual um sujeito planeja uma elaborada forma de vingar-se de seu antigo mentor; "Os problemas de ser Cláudia", que brinca com a quase dissociação que experimentamos nas crises; "A ingrata tarefa das esfinges", uma metáfora sobre o deserto, o nada, de onde surgem todas as histórias, todos os mitos; "Mercúcio deve morrer", uma divertida história, à la Stoppard, do fardo que é a arte, o oficio ingrato de ser um personagem literário; "Um outro sentido", a crítica de uma bizarra peça, impossível de ser encenada e "Pelo vale dos sonhos incessantes", o quase congelamento do instante em que um sujeito morre. Cito esses sete, como poderia ter escolhido outros tantos. E cito também o conjunto de cinco contos chamados "Efemeridade", cinco variantes de uma mesma história, cinco perspectivas de uma metamorfose, de uma cena banal, porém terrível. O livro inclui um prefácio muito bom, assinado por José Francisco Botelho. Cabe registrar que diz uma lenda que Botelho havia apostado contra o próprio Czekster que ele, Czekster, ganharia o prêmio açorianos de literatura na categoria contos deste 2018, como de fato aconteceu. Botelho, para coroar os feitos (ganhar a aposta e saber da premiação do amigo), emitiu um uivo ginsbergiano que atordoou todos presentes na cerimônia de premiação. Deve ter sido divertido estar lá naquele dia. Vale!
Registro #1301 (contos #151) [início: 25/07/2018 - fim: 29/07/2018]
"Não há amanhã", Gustavo Melo Czekster, Porto Alegre: Editora Zouk, 1a. edição (2017), brochura 16x23 cm., 150 págs., ISBN: 978-85-8049-046-6
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