A edição indica 1941 como a data de finalização deste curto texto, mas isso pode não ser correto. Trata-se de um ensaio de Emil Cioran, filósofo romeno radicado na França, publicado postumamente (a bem da verdade foi publicado há dez anos, e Cioran já é morto desde 1995). De qualquer forma é um ensaio fragmentado, uma coleção de longos aforismos, no qual são registradas reflexões de um homem que justifica de alguma forma porque abandonará sua língua natal e passará a escrever na língua do país que adotará e no qual viverá mais da metade de sua vida. Portanto, não é algo que possa ser julgado em sua totalidade. Há repetições, óbvios defeitos, e aquela fragilidade típica de quem tateia compreender algo complexo, esboça hipóteses e conclusões. Acrescente-se a isso a explícita arrogância de um sujeito da periferia que vê com olhos mordazes e insolentes a grande cidade que o acolhe, mas que certamente também o assusta e provoca. Hoje, neste inicio do seculo XXI, quase oitenta anos após o registro e quase 25 da morte de Cioran, as camadas de realidade ofuscam ainda mais as verdades que o livro pretende explorar. A França que Cioran descreve está derrotada, pelo nazismo, pela ocupação, por si mesma. Ele faz apontamentos sobre a história e a psique francesa, sobre a força de sua cultura, seus valores, suas fragilidades. Diz que a decadência francesa é tão lógica que não pode espantar um estudioso sério, que as invasões bárbaras que experimentaram os romanos deveriam ter alertado os franceses de seu óbvio destino. Ele fala daquilo que é fecundo na decadência, algo profundo, algo que conquista a imaginação das pessoas. Os ciclos históricos são inevitáveis, tumba e berço fazem parte de um mesmo laço, o fenômeno da decadência é algo natural, algo que precisa ser vivido plenamente, como uma faceta de qualquer civilização e de qualquer indivíduo. Os fragmentos, talvez nunca corrigidos, servem para entendermos como opera a mente de intelectual de calibre, um pensador inventivo, original. "Acomodar-se no cinismo", a resposta que ele se dá retoricamente quando se pergunta sobre o que faria caso fosse francês, serve para qualquer indivíduo neste amargo início de século. Tudo é tedioso, nenhuma ação é possível, talvez o belo e a arte mitiguem um tanto a alma. Abraçar o cinismo talvez tenha sido mesmo o que a França reiteradamente fez após o desenlace da segunda grande guerra. E talvez esse mesmo cinismo tenha provocado as metamorfoses que tornaram a França o quê é hoje, palco de contínuas crises e conflagrações sociais. Se a notária simpatia de Cioran pelo nazismo não é explícita no texto, seu tom não disfarça sua obsessão com a derrota, sobretudo moral, dos franceses, como faz aquele sujeito menor que tenta roubar a glória alcançada por alguém de fato poderoso. No final do ensaio ele abraça o destino decadente da França, aceita-o como também seu, como de qualquer outro imigrante, que um dia também foi seduzido pelo idílico, pela imagem de lar ideal que aquele país parecia emanar. E, aparentemente, continua seduzindo, nenhuma decadência tem prazo de validade afinal de contas, nunca saberemos até que ponto uma civilização se corrompe e se modifica, até o ponto de tornar-se indistinguível. Curioso. Vale!
Registro #1361 (crônicas e ensaios #242)
[início 21/11/2018 - fim: 10/12/2018]
"Sobre a França", Emil Cioran, tradução de Luciana Persice Nogueira, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #03), 1a. edição (2016), brochura 10,5x15 cm., 122 págs., ISBN: 978-85-92649-03-9 [edição original: De la France (Paris: Editions de l'Herne) 2009]
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