Veneza no outono (estação singela e pura, dizia aquele samba enredo da Mangueira) é outra cidade. Turistas e batedores de carteiras partiram juntos, deixando a cidade para os habitantes regulares, que estão descansados pelas férias, ainda bronzeados, de bom humor. Uma eventual neblina cobre a cidade de vez em quando, lembrando todos da necessidade de preparar-se para o inverno. Brunetti recebe em seu gabinete a visita de uma colega professora de Paola, preocupada com o aparente vício em drogas de seu filho. Não há muito o que fazer, pensa o comissário. Dias depois, em uma coincidência improvável, o pai deste rapaz aparece caído próximo a uma das pontes da cidade, com o crânio esmagado, condenado ao coma e a morte. O leitor acompanha em "La tentación del perdón", vigésima sétima aventura de Brunetti engendrada por Donna Leon, os desdobramentos da investigação das circunstâncias da queda deste sujeito. Quase todos os personagens recorrentes de Donna Leon têm seu protagonismo neste volume: o assistente Lorenzo Vianello; a secretária Elettra Zorzi; a comissária Griffoni; o vice-questor Patta; a mulher de Brunetti, Paola Falier; seus filhos Raffaele e Chiara. A história gravita questões morais, os conceitos de lei, justiça e equidade social. Brunetti passa boa tempo do livro relendo Antígona (de Sófocles), com seu senso de dever dividido entre a sociedade e a tentação de chamar para si o poder de perdoar. Contrapor uma reflexão clássica sobre um tema complexo e sua aplicação prática no mundo contemporâneo é um dos artifícios literários usuais da autora, sempre antenada, engajada, mordaz. No desenvolvimento da trama descobrimos algo sobre o sistema de saúde pública italiano (basicamente, sobre as formas de corromper esse sistema, usualmente aproveitando-se de brechas na enorme burocracia, algo que todo brasileira também conhece muito bem). Metaforicamente, o sujeito que caiu na ponte e ficou em coma é como o estado italiano: imobilizado, preso a regras e tradições, muito além da salvação, da cura, sofrendo as consequências - sempre imprevisíveis - de uma miríade de más decisões. Narrativa repleta de mimos para os entusiastas da série, com descrições das caminhadas pela cidade; das rápidas paradas para reflexão em cafés; dos registros das diferenças entre o Sul e o Norte italiano; do domínio da linguagem, que aproxima e afasta as pessoas; do papel das mulheres na sociedade italiana; da importância da ficção na psique dos homo sapiens. Belo livro. Voltei a Donna Leon e a Brunetti por conta das notícias assustadoras sobre a pandemia do covid-19 na Itália. Pelo jeito vou gastar os últimos livros dela que tenho nestes dias. Vale!
Registro #1513 (romance policial #94) [início: 16/03/2020 - fim: 19/03/2020]
"La tentación del perdón", Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Seix Barral
/ Booket Biblioteca Formentor (Editora Planeta S.A.) Crimen y Misterio,
1a. edição (2018), brochura 12,5x19 cm., 336 pág., ISBN: 978-84-322-3483-5 [edicão original: The Temptation of Forgiveness
(Zürich: Diogenes Verlag AG) 2018]
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