terça-feira, 14 de abril de 2020

verifique se o mesmo

"Verifique se o mesmo" é um livro de ensaios. Nuno Ramos, que é artista plástico, poeta, pensador da cultura brasileira, oferece ao leitor, neste seu volume mais recente, dois conjuntos de textos. O primeiro, que corresponde a aproximadamente 40% do livro, enfeixa dois longos ensaios [No Palácio de Moebius e Trança (ainda Moebius)], aquele publicado originalmente na revista Piauí, em novembro de 2013, e esse último, inédito, finalizado em dezembro de 2018. Nestes ensaios o autor trata de criadores brasileiros modernos e contemporâneos que alcançaram, nas palavras dele, "(...) uma fonte de potência capaz de reverter a desgraça em liberdade extrema". Todavia, essa fonte de potência é também uma poética narcísica, que autolimita sua generalização, sua universalização (ele usa metaforicamente a curva de Moebius para ilustrar essa dificuldade de exteriorização, de expansão, de algo que é intrinsecamente moderno e valoroso, mas que acaba "voltando-se para dentro, por absoluta falta de ressonância do objeto cultural na vida em que se insere"). Esses brasileiros são João Gilberto, Lygia Clark, Graciliano Ramos, Mira Schendel, Hélio Oiticica, Milton da Costa, Machado de Assis, Glauber Rocha, Caetano Veloso (a primeira parte das composições de Caetano) e Tunga. São ensaios detalhistas, de um articulista que se preocupa com a validade de suas premissas, com o encadeamento lógico de seus silogismos, com os entendimentos possíveis de suas reflexões e conclusões.  Os ensaios funcionam também como "cifras e modelos de leitura", nas palavras dele, da produção plástica, literária, cinematográfica ou musical de seus sujeitos em análise. São textos muito bem escritos, mas que cobram um bom tempo de leitura. Não são ideias de almanaque ou repetição de lugares comuns (cousas que lemos o tempo todo nos cadernos culturais que ainda sobrevivem por aí). O segundo conjunto de ensaios reúne apenas um inédito (uma análise muito boa mesmo sobre a obra de Oswaldo Goeldi, o genial gravador brasileiro). São 19 ensaios  que foram publicados entre 2008 e 2018, e correspondem a 60% do volume. Esse segundo conjunto é de propostas mais focadas, menos panorâmicas ou sintetizadoras que as anteriores (muito embora algumas se encaixam no modelo de infinito da curva de Moebius, de "voltar-se para dentro por falta de ressonância", proposto por ele na primeira parte). Os temas são variados, ma non troppo. Há sobretudo reflexões sobre artes plásticas. Quatro são sobre suas exposições e o impacto delas  ("Bandeira branca", aquela dos urubus na Bienal de Artes de São Paulo de 2010, é notável). Cinco textos são sobre outros artistas, produzidos para catálogos de exposições. Encontramos também um robusto texto sobre Beckett; dois sobre futebol (o sujeito é santista e boleiro confesso); dois sobre música brasileira (que ele diz ecoar em sua obra, sobretudo em função de sua admiração pelos sambas de Nelson Cavaquinho); dois políticos/engajados ("Suspeito que estamos" e "Gente frouxa", que demonstram que ele sabe enxergar longe politicamente, mas suspeito que ele sabe que é uma espécie de Cassandra tropical); um sobre arquitetura (sobre Oscar Niemayer e o tédio que brota de suas construções) e dois meio híbridos (um conto - acho eu, e uma reflexão sobre sua experiência com turismo, contrastando os anos 1970 com o agora). Um último texto, "Loser", corresponde a uma palestra que ele proferiu na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 2015. Trata-se de um resumo híbrido, emocional e racional ao mesmo tempo, de sua produção plástica, suas ambições e suas influências. Enfim, material muito bom mesmo para se ler e refletir nestes dias de outono. Lembrei-me de quando vi os trabalhos do povo da Casa 7 (do qual ele fez parte) na Bienal de 1985, naquele corredor da "Grande tela"; lembrei-me do Samuca, que é citado em um dos textos; lembrei-me da Luciane, que viu comigo uma outra Bienal; lembrei-me das muitas exposições que vi nestes meus anos de errâncias e viagens, lembrei-me das gravuras da Helga. Bueno, uma parte da produção plástica dele pode ser conferida no site Nuno Ramos. É hora de seguir fugindo do baile macabro, da contagem dos mortos, desta histeria contida. Vale! 
Registro #1515 (ensaios #269) 
[início: 18/10/2019 - fim: 11/04/2020] 
"Verifique se o mesmo", Nuno Ramos, São Paulo: Editora Todavia, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm, 304 págs. ISBN: 978-85-88808-74-4

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