quinta-feira, 23 de abril de 2020

os animais

Comecei a ler esse livro assim que terminei o seminal "O eremita viajante", de Matsuo Bashô. Desde então, a exemplo do que havia feito com os haikus de Bashô, tenho lido um punhado deles a cada vez, ao ritmo do acaso, da curiosidade, estado de espírito, humor. Nestas últimas semanas, isolado como quase todos, resolvi dedicar mais tempo a Kobayahi Issa. Em uma longa apresentação, o tradutor e organizador destes haikus, Joaquim M. Palma, nos ensina que Issa produziu aproximadamente vinte mil haikus, sendo que dois mil deles referem-se explicitamente a animais, faz deles protagonistas, mensageiros de sua sensibilidade. Issa viveu aproximadamente um século após Bashô, de 1763 a 1827, foi um monte laico budista (do grupo Jôdo Shinshu). Teve uma vida de muitas tragédias, perdas, dificuldades, mortes, assombros ("Chacun de nous a dans le coeur une chambre royale; je l'ai murée, mais elle n'est pas détruite", já nos ensinou Flaubert). Nesta antologia estão reunidos os haikus em que o poeta fala de animais com os quais teve alguma interação em termos sensoriais e emocionais. Ele fala de animais pequenos (abelhas, formigas, piolhos) e grandes (veado, polvo, falcão); fala de mamíferos, de aves, répteis, insetos, peixes, crustáceos, moluscos); fala sobretudo de sua tríade afetiva: a borboleta, o cuco e o rouxinol. A edição é muito bonita, organizada em ordem alfabética dos animais e incluindo um síntese cronológica da biografia de Issa, uma bibliografia e um índice dos primeiros versos dos quase dois haikus nele reunidos. Uma miríade de notas ajudam o leitor a entender passagens enigmáticas ou cifradas dos poemas, algum fato histórico de sua composição, contrastar interpretações e certas variantes. Que notável livro é esse. Vamos a ver se Joaquim Palma traduzirá também Yosa Buson e Masaoka Shiki, os outros dois grandes mestres desta forma poética. Se encontrei esse livro no início da chuvosa primavera passada, abandono-o (ou melhor, devolvo-o a estante, ainda deixando-o ao alcance dos olhos e das mãos) neste início de outono, nestes dias conspurcados por esta pandemia infernal. De qualquer forma, nestas últimas semanas senti-me como um Buda redivivo, cercado pelos animais de Kobayashi Issa, recluso, tendo minha pele de urso como companhia, Cappuccio e eu, sobretudo lembrando sempre deste haiku: "Javalis e ursos / são meus vizinhos / reclusão de inverno". Vale! 
Registro #1519 (poesia #127) 
[início: 15/06/2019 - fim: 10/04/2020] 
"Os animais", Kobayashi Issa, tradução de Joaquim M. Palma, Lisboa: Assírio & Alvim (Grupo Porto Editora), 1a. edição (2019), capa-dura 15,2x21,2 cm., 432 págs., ISBN: 978-972-37-2083-9

Nenhum comentário: