Eu que sempre penso que sei tudo, claro, sempre me surpreendo (acho que será sempre assim). Pensava que "Todas as almas" fosse o prólogo de "Tu rostro mañana", mas este papel fundador no estilo e ritmo bem particular que encontramos no último romance publicado por Javier Marías está sim neste curioso "Negra espalda del tiempo", onde ficção e realidade se misturam, se complementam, se escondem uma na outra, enganando e educando o leitor. "Negra espalda del tiempo" foi publicado originalmente em 1998 (imediatamente antes de "Tu rostro mañana", que acaba de ganhar sua versão integral, em um único volume de sonoras 1390 páginas). Trata-se de um livro autobiográfico, mas como se o biografado, ou antes, os biografados, fossem alguns dos livros e histórias de Marías ("Todas as Almas", principalmente). Ele fala de seus personagens e de seus amigos, das histórias que inventou e das histórias que viveu. Quem gosta de jogos literários se envolve muito no livro (principalmente quem já leu os romances anteriores de Marías). Ele cita muitos livros que tiveram o destino funesto de só sobreviverem na memória de uns poucos leitores, ou nos apontamentos de escritores menores. Cita também as biografias de sujeitos que pareciam estar a produzir uma grande obra, mas que desaparecem e deixam seus livros orfãos, a tentar sobreviver. Fala de viajantes, que viveram a grande guerra (a primeira) e se esfumaram em lugares exóticos ou morreram em circunstâncias rocambolescas. Sua descrição do caráter de seu antigo editor (que o atormentou por anos a fio - editor da Anagrama, acredito eu) é muito engraçada. Curioso como este livro lembra ao mesmo tempo o "Los hechos" de Philip Roth, que vou resenhar em breve, e também o "Summertime", do Coetzee, que resenhei recentemente. Ficamos sabendo como Marías se tornou "Rei" do fictício "Reino de Redonda", sucedendo M.P. Shiell e John Gawsworth. Ele fala sobre as coisas que observa no seu dia a dia, no seu bairro, na sua cidade, nos encontros, jantares, recepções, em que conversa com amigos e/ou desconhecidos. Certos encontros parecem emular algo que pode ser transformado em ficção, outros parecem morrer na memória do escritor, como se fossem luminárias públicas a apagar em uma manhã qualquer (em uma bela metáfora que ele cria usando elementos tão banais). A maneira como seus amigos e parentes se envolve em seus jogos literários ocupa boa parte do livro. Alguns querem ser retratados,imortalizados em livro, mesmo que com pseudônimos, outros o proibem de serem citados, ficcionalizados. As histórias de seu bisavô cubano podem ser verdadeiras ou totalmente inventadas, irreais que parecem. Há muitas reproduções de fotografias e ilustrações no livro. Estas imagens pontuam os temas do livro, mas não são exatamente citadas no corpo do texto, como se ao leitor restasse aproveitá-las como migalhas de pão lançadas à pombos em um parque. O livro inclui uma resenha muito boa de Guilhermo Cabrefa Infante e um dos usuais prólogos de Elide Pittarello (sempre presentes nesta coleção de livros da Debolsillo que amelhei por aí). É um bom livro de Marías, mas eu ainda prefiro o monumento que é "Teu rosto amanhã". Veremos o que ele produzirá no futuro. [início 30/10/2009 - fim 03/11/2009]
"Negra espalda del tiempo", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2007, brochura 13x19, 216 págs. ISBN: 978-987-566-258-2
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