São numerosas na literatura aparições de personagens que se duplicam, personagens que encontram e passam a ser assombrados por um sósia, um outro eu, um "Doppelgänger". Claro, não se trata apenas um fenômeno restrito à literatura. Também no folclore, nas mitologias (como por exemplo a germânica e a escandinava), ou na cultura popular de muitos países é recorrente a idéia de um espírito que antecipa notícias funestas ou personifica a morte. Fiódor Dostoiévski, logo em seu segundo livro, "O duplo", trata desse tema curioso. O resultado é um poderoso romance psicológico, onde acompanhamos o processo de dissociação mental do funcionário público Yakov Petrovich Golyadkin. Dostoiévski descreve como operam transtornos mentais, esquizofrenias, paranóias e alucinações. Seu personagem principal, Golyadkin, nos é apresentado no início do romance preparando-se para ir a um jantar de gala, uma recepção, oferecida em homenagem a filha de seu antigo preceptor. Logo ao sair se aborrece ao encontrar um colega de trabalho que aparentemente também irá a mesma recepção. Indignado ele resolve consultar seu médico. Esse médico insiste na necessidade de Golyadkin diversificar sua vida social, entreter-se com regularidade e continuar tomando seus medicamentos como já havia sido prescrito. Acompanhamos como Golyadkin se desloca até a recepção e é inicialmente barrado, mal chega às escadarias, mas consegue, após muito esperar em uma porta lateral, misturar-se com os convidados. Ato contínuo ele tenta se aproximar da filha de seu preceptor e dançar com ela, mas é expulso do local. O que se segue é uma vertigem, uma sucessão de capítulos densos e movimentados, que sufocam o leitor. Podemos entender que a partir desse ponto lê-se as fantasias de um sujeito enlouquecido, preso em algum sanatório, divagando sobre sua condição. Ou podemos continuar a leitura linearmente e acompanhar como a esquizofrenia progressivamente se manifesta, na forma de um duplo de Golyadkin. Esse sujeito é idêntico a ele (na verdade é ele mesmo, claro), mas é um sujeito que opera maravilhosamente bem as regras e a etiqueta das relações sociais. Como se estivesse comprometido com sua destruição, seu olvido, o duplo assume todas as suas funções, se apropia de todas suas relações pessoais e profissionais, mostrando-se eficiente, solícito, prestativo, até divertido. Alcança por fim a intimidade de toda a hierarquia ao qual está subordinado. O final do livro obviamente é terrível, assustador. Mas eu já escrevi demais. Leitura indispensável, muito inspiradora. Poucas coisas substituem o verdadeiro prazer que os textos clássicos, de um autor forte, podem proporcionar. O livro inclui ilustrações (desenhos) intensas, expressionistas, produzidas ainda no início do século passado por Alfred Kubin. Há um pequeno ensaio de Samuel Titan Jr. descrevendo o contexto histórico dessas ilustrações, feitas especificamente para "O duplo" e estabelecendo com o texto do livro uma associação realmente poderosa. Por fim encontramos um posfácio muito bom, escrito por Paulo Bezerra, o tradutor do livro afinal de contas, que ilumina as passagens mais estranhas e obscuras. Haverá mais cousas de Dostoiévski aqui nesse ano. [início 14/09/2011 - fim
29/09/2011]
"O duplo", Fiódor Dostoiévski,
tradução de Paulo Bezerra, desenhos de Alfred Kubin, São Paulo: editora 34,
1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 255 págs. ISBN: 978-85-7326-472-2 [edição
original: Dvoinik (Двойник. Петербургская поэма) «Отечественные записки» São Petersburgo (Russia) (1846)]
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