Depois de ficar um tanto decepcionado com a releitura da trilogia Fundação de Isaac Asimov resolvi voltar a algo que também li no final dos anos 1970 e havia me impressionado muito: "Laranja Mecânica", de Anthony Burgess. Essa bela edição comemorativa, publicada no cinquentenário do lançamento original, estava em meus guardados há pelo menos dois anos, mas por um motivo ou outro sempre deixava a leitura para um outro dia. Lembro-me de ter levado o volume nas férias de verão de 2013, mas aqueles dias estavam alegres demais para que eu me debruçasse adequadamente em algo tão belo mas tão terrível. Fábio Fernandes assina a tradução do livro e inclui um glossário dos termos Nadsat mais crípticos (Nadsat é o vocabulário inventado por Burgess para os diálogos dos adolescentes de seu romance, uma mistura de russo e cockney inglês). O livro inclui também ilustrações de Oscar Grillo, Angeli e Dave McKean, três longos ensaios assinados por Burgess e a transcrição de uma entrevista com ele. Há outros mimos (ilustrações originais de Burgess, fác-símile de algumas páginas originais datilografadas, notas explicativas assinadas por Andrew Biswell, biógrafo e diretor da Fundação Burgess). O livro continua poderoso (e é bom você parar por aqui caso não queira saber da trama). O leitor sempre demora um tanto para entender o vocabulário do romance e entrar no ritmo. São três partes simétricas, com sete capítulos cada uma. Na primeira descobrimos como Alex e sua gangue adolescente cometem toda a sorte de crimes numa distópica e soturna Inglaterra. Movidos por violência, sexo e drogas, o grupo assalta uma casa, onde agridem o proprietário (um intelectual algo pomposo, F. Alexander), rasgam um precioso manuscrito no qual ele estava trabalhando e matam sua mulher. Durante a fuga Alex é traído por um de seus comandados (Tosko) e é preso. Na segunda parte Alex recebe um tratamento experimental de controle social (o tratamento Ludovico), que consiste em forçá-lo a sentir aversão e náusea caso voltasse a ter comportamento violento. O tratamento funciona e Alex transforma-se num novo cidadão, adequado para o convívio social. Na última parte do livro Alex percebe que as coisas não serão nada simples para ele. Sua família não o recebe de volta (seu quarto já está ocupado por um inquilino). Vagando pela cidade Alex descobre que Tosko e um antigo rival, de outra gangue adolescente) tornaram-se policiais. Ele é espancado pelos dois e largado na periferia da cidade. Por uma coincidência dos diabos o mesmo escritor cuja casa havia sido invadida por Alex na primeira parte do romance é quem acaba encontrando-o. Alexander cuida da recuperação de Alex, mas reconhecendo-o e entendendo que o sujeito sob seus cuidados sofreu uma violenta lavagem cerebral do Estado, resolve utilizar sua história como propaganda contra o governo. Alex acaba sofrendo outros maus tratos do grupo de amigos de Alexander e tenta cometer suicídio. Afinal, o tratamento Ludovico funcionou ou não. Alex tornou-se mesmo um cidadão exemplar ou continua o mesmo rapaz violento de sempre? Ele viverá para experimentar outros sucessos na vida. Burgess discute o livre arbítrio, o totalitarismo, nossa inata violência e nossa capacidade de amar. É mesmo um romance que sobreviveu às tremendas transformações sociais dos últimos cinquenta anos. É um livro alegórico, claro, mas que se presta a nos ensinar como uma sociedade pode controlar e modificar o comportamento individual e coletivo. A escravidão mental sempre será a alternativa abraçada pela maioria da população. A leitura dos ensaios é um experiência complementar seminal. "A condição mecânica", um prefácio incluído numa reedição inglesa do livro, em 1973; "Geléia mecânica", publicado na revista The Listener em 1972 e "Os russos humanos", também da The Listener, em 1961 (portanto, antes do romance ser publicado), assim como a transcrição da entrevista (feita em 1972, dez anos após a publicação original), esclarecem tanto a motivação de Burgess em produzir seu romance, quanto apresentam análises muito ricas sobre a recepção e influência dele. Claro, o livro sobrevive sozinho, sem esse aparato paraliterário, mas um leitor curioso sempre pode aprender mais com os ensaios (e os demais mimos). Por exemplo. Burgess fala várias vezes de sua contrariedade com a adaptação cinematográfica do livro, pois Stanley Kubrick não utilizou no roteiro o último capítulo do livro (incluído na edição inglesa porém censurado pelos editores americanos). Trata-se de uma leitura que cobra um bocado de paciência e atenção, mas que recompensa o leitor como poucos livros alcançam fazer.
[início: 26/04/2015 - fim: 29/05/2015]
"Laranja mecânica", Anthony Burgess, tradução de Fábio Fernandes, ilustrações de Dave McKean, Oscar Grillo, Angeli, São Paulo: editora Aleph, 1a. edição (2012), capa-dura 15,5x22,5 cm., 352 págs., ISBN: 978-85-7657-136-0 [edição original: A Clockwork Orange (London: Heinemann (Random House) 1962]
2 comentários:
Nossa inata violência costuma prevalecer diante da política brasileira.
Haja capacidade de amar pra aguentar isso tudo.
Ótimo livro. Saudade de ler. Saudade docê.
Andressa - Molly Capixaba - Bloom.
Oi Andressa, como vais? Há quanto tempo!! Estive nas correrias do Bloomsday e só agora te respondo. Vistes que usei aquela foto tua de Dublin (de 2012) no postal de nosso Bloomsday Santa Maria deste ano? Fez um sucesso dos diabos. Tudo de bom para ti e vamos a ver se continuamos a conversar (estive em Dublin em fevereiro e vou postar umas resenhas dos livros que comprei lá). Abração.
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