quinta-feira, 4 de junho de 2015

número cero

"Número Cero" é o romance mais recente de Umberto Eco. É bem diferente de seu livro anterior, "O cemitério de Praga". Ali se descreve a conspiração amalucada que culminaria numa versão do panfleto que hoje conhecemos por "Os protocolos dos sábios de Sião". Trata-se de uma conspiração que foi engendrada por décadas no século XIX e influenciou diretamente todos os terríveis conflitos mundiais da primeira metade do século XX. Já em "Número Cero" a narrativa é curta, compacta, se resolve nos poucos dias da primavera de 1992. Como na maioria dos romances de Eco trata-se de uma farsa, uma história onde não há exatamente pessoas boas ou más, mas sim seres humanos que preferem o conforto da ilusão, da irrealidade e do auto-engano a enfrentarem a inevitabilidade de seus destinos. Em sua história um sujeito fracassado chamado Colonna é contratado para liderar um grupo de jornalistas que deverá editar um novo jornal. Colonna, como redator chefe do grupo, deve produzir edições de teste do jornal. Essas serão avaliadas apenas por Simei (o aparente proprietário do lugar onde foi montada a redação) e o empresário que os financia (sujeito que é apenas nominado, nunca visto pelos demais). As fontes de financiamento do jornal são obviamente obscuras e o objetivo desse empresário é usar o jornal para extorquir favores que lhe são negados. Não há compromisso com a verdade ou a lógica dos fatos. O propósito principal do sujeito é alcançar a excelência na manipulação coletiva das massas leitoras, através de insinuações, alusões forjadas, invenção de coisas que possam denegrir reputações e instituições. A Itália de 1992 reúne condições para que este tipo de mau jornalismo prospere, pois passa por turbulências econômicas, políticas e sociais. As ações criminosas da máfia estão no auge. Muitos acreditam que o líder de uma loja maçônica tentará um golpe de estado. O mercado financeiro mostra-se vulnerável a ataques especulativos no câmbio e há incertezas sobre o destino da unificação política europeia. O grupo de jornalistas é uma espécie de exército de Brancaleone, cada um mais apalermado, inepto e irresponsável que o outro. Não há limites, ética, compromissos morais. Eco, depois que apresenta sua tese (a de que jornais servem para desinformar e manipular as pessoas), não perde muito tempo em digressões e histórias paralelas. Em capítulos curtos ele descreve as propostas de reportagens que cada jornalista prepara para as edições-teste do jornal. Colonna acaba se envolvendo diretamente apenas com dois de seus colegas: Maia Fresia, uma insegura especialista em reportagens dirigidas ao público feminino e Romano Braggadocio, um velho jornalista obcecado em conspirações que envolvem o destino do ditador Benito Mussolini, os arquivos secretos da CIA e as formas de atuação das agências de espionagem europeias. Simei e Colonna estabelecem entre si um pacto adicional, pois o primeiro espera que o segundo produza um romance a partir desta experiência (e que este romance sirva como uma espécie de seguro caso o empresário deixe de financiá-los por algum motivo). As reuniões de pauta do grupo não são mais que um desfile de maluquices, teses conspiratórias, tentativas de encontrar significado transcendental naquilo que é trivial. Mesmo para um estudioso das questões de comunicação como Eco o assunto parece árido demais. Ele não tem paciência e dá um jeito de finalizar logo sua história grotesca (o livro é curto, duzentas e poucas páginas). Colonna e Maia, apaixonados e também algo paranoicos, chegam a conclusão que a Itália está condenada à decadência e que devem fugir das confusões geradas pela criação do jornal. Como num daqueles filmes B do século passado eles planejam emigrar para a América Latina, lugar onde, nas palavras de Eco, cruel como nunca: "... não há mistérios, tudo acontece a luz do dia, a polícia segue regulamentos para justificar ser corrupta, os governos e o crime organizado coincidem em suas regras constitucionais, os bancos vivem de lavar dinheiro sujo, os cidadãos preferem matar seus próprios compatriotas a ferir um turista europeu". Vamos a ver se a auto estima dos leitores brasileiros suporta esse sarcasmo todo. Enfim. Resta dizer que é provável que os muitos dos jornalistas brasileiros mais alinhados com as velhas teses socialistas se regozijem com o livro (sem lê-lo, claro), imaginando-o um libelo contra os grandes grupos editoriais e favorável ao poder da comunicação através das redes sociais. Mas a ironia de Eco alcança dizer que o mecanismo de manipulação não foi inventado com a imprensa, não é algo novo, que pouco importa a motivação ou a justificativa, a desinformação e manipulação do inconsciente coletivo de uma população é algo que pode ser alcançado através de qualquer meio, em qualquer tempo ou lugar. Como diz Mark Twain (citado por Eco, em francês, no final do livro): “La réalité dépasse la fiction, car la fiction doit contenir la vraisemblance, mais non pas de la réalité, ou seja, "A verdade é mais estranha que a ficção porque a ficção deve conter plausibilidade, mas não a realidade." Não é o melhor Umberto Eco, mas um bom e honesto Eco afinal. 
[início: 19/05/2015 - fim: 22/05/2015]
"Número Cero", Umberto Eco, tradução de Helena Lozano Miralles, Barcelona: Lumen (Penquin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2015), capa-dura 16x23,5 cm., 219 págs., ISBN: 978-84-264-0204-2 [edição original: Numero zero (Milan: Bompiani) 2015]

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