segunda-feira, 30 de maio de 2016

memórias de um casamento

Já li vários livros de Louis Begley (aqui só tenho registrado outros três: "Naufrágio", "Questões de Honra" e "Schmidt recua"). Ele é sempre o cronista das pessoas muito ricas e/ou poderosas, advogados, escritores, mecenas das artes ou apenas diletantes bem apessoados que passam seu tempo entre a Europa e a América do Norte. Assim como acontece com Proust suas histórias são ricas em matizes, seja sobre a sociedade que descreve, seja sobre o caráter dos personagens que cria. Sempre aprendemos algo com ele, algo sobre o refinamento proporcionado pela boa educação, o arrivismo e o sistema de classes americano, a mundanidade e a hipocrisia. Em "Memórias de um casamento" acompanhamos o interesse de um octogenário escritor, Philip, pela história do casamento de uma amiga com quem não mantinha contato há mais de vinte e cinco anos. Quando o reencontra Lucy descreve Thomas Snow, o advogado e economista riquíssimo, já falecido, com quem foi casada, como um monstro irrecuperável. Philip nunca imaginou que o sujeito que conheceu pudesse ser descrito assim e fica curioso sobre os sucessos do passado do casal. Movido por um interesse em parte literário e em parte bisbilhoteiro, Philip embarca numa espécie de arqueologia do tempo perdido, recolhendo memórias e relatos que ele mesmo, Lucy e uma dezena de amigos em comum, tinham sobre Thomas. O livro embaralha passagens acontecidas no final dos anos 1950, no início dos anos 1980 e no início dos anos 2000. O narrador da história alcança que o leitor alterne sua simpatia às motivações de Lucy com aquelas de Thomas (ou mesmo que despreze em algum momento a ambos). Assim como na vida real é praticamente impossível entender sempre uma pessoa, saber de suas intenções, concordar com as narrativas que ela mesmo acredita bem descrevê-la, metamorfosear-se com o tempo no mesmo ritmo ou para formas continuamente compatíveis. Afinal, normalmente observa-se que nas relações entre indivíduos ou mesmo entre grupos sociais é antes um pacto de autoenganos, o compartilhamento de ilusões e de fantasias o que permite a vigência de um frágil convívio civilizado (e isso por curtos períodos de tempo, quase sempre). Interessante livro. Cabe aqui um último registro: Essa edição da Companhia das Letras é pavorosa. Meu exemplar tem dezenas de páginas transparentes, que quase impossibilitam a leitura. A crise no Brasil é generalizada e é sobretudo moral. Imagino que houve um dia em que um revisor cuidadoso notaria o desastre na impressão e um diretor providenciaria para que todo o lote defeituoso de livros fosse incinerado, mas hoje em dia tal zelo, tal cuidado, parece estar muito além de nossa capacidade de ação. Dá pena deste desgraçado país, mas não muita pena.
[início: 26/05/2016 - fim: 27/05/2016]
"Memórias de um casamento", Louis Begley, tradução de Rubens Figueiredo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 194 págs., ISBN: 978-85-359-2681-1 [edição original: Memories of a Marriage (New York: Nan A. Talese/Knopf Doubleday - Penguin Random House Group) 2013]

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