Conheci algo de Karl Kraus através de Elias Canetti (especialmente seu segundo volume de memórias, "Uma luz em meu ouvido"). O leitor se assombrava junto com o jovem Canetti quando lia reproduzido tudo aquilo que ele ouvia nas palestras inflamadas de Kraus na Viena dos anos 1920, sobretudo o efeito inebriante que sua voz provocava na audiência, que o idolatrava incondicionalmente. Aos poucos Canetti se distancia daquele jorro de sedutoras palavras, entende bem os acertos e erros na forma de Kraus interpretar os complexos problemas europeus do período entre grandes guerras mundiais e rompe intelectualmente com ele (mas esta é outra história, que se pode acompanhar no já citado "Uma luz em meu ouvido" e também num outro livro de Canetti: "A consciência das palavras"). De qualquer forma Kraus é certamente um dos grandes mestres do gênero e influenciou gerações de escritores. Já registrei aqui alguns livros de aforismos, inclusive um ou dois do Canetti e um outro de um dos grandes estilistas brasileiros do gênero, o Daniel Piza. Neste volume editado pela Arquipélago estão reunidos uma boa mostra da produção de Kraus. A seleção e tradução é assinada por Renato Zwick. Não li o livro linearmente. Fiquei com ele por meses, sempre a mão, lendo aleatoriamente os aforismos, anotando alguns, testando eventualmente com interlocutores o efeito deles aos assuntos brasileiros contemporâneos (quase sempre não funcionaram, mais acostumados que estão boa parte dos brasileiros com jogos de palavras vazias, chistes estéreis ou mentiras, simplesmente). Nem todos aforismos aqui compilados são exatamente breves e sintéticos. Há alguns onde antes a linha de raciocínio e não apenas o conceito realmente importa. Seu interesse era vasto. Há reflexões sobre o mundanismo e a cultura, a política e os usos da linguagem, o direito e a filosofia, os ofícios públicos e a fé, a psicologia e a arte, a guerra e a literatura. Como em toda produção deste tipo há asserções que se contradizem automaticamente, pois foram conjuradas para finalidades e públicos distintos. Além disto pode-se imaginar também que diferentes pessoas possam interpretar cada frase ou parágrafo de forma diferente, pois a função do aforismo é perturbar as certezas do leitor (ou ouvinte) e essas certezas nem sempre são as mesmas. Em tempos turbulentos, agressivos e indigentes (como o que vivemos todos neste início de século) quase sempre é impossível definir algo que possa tornar-se consensual (e, de resto, a capacidade das pessoas pouco educadas refletir de forma independente sobre qualquer assunto é quase nula). Paciência. O livro inclui uma boa apresentação biográfica de Kraus e um curto glossário de nomes, lugares e expressões latinas. Bom livro.
[início: 10/09/2015 - fim: 02/07/2016]
"Aforismos", Karl Kraus, tradução de Renato Zwick, Porto Alegre: Arquipélago editorial, 1a. edição (2010), capa-dura 14x21 cm., 208 págs., ISBN: 978-85-60171-14-9 [edição original: Aphorismen: Sprüche und Widersprüche (1909); Pro domo et mundo (1912); Nachts (1924) / Schriften, Digitale Bibliothek Band 156 (Berlin: Directmedia) 2007]
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