domingo, 28 de agosto de 2016

la provincia del hombre

Cada uma das notas reunidas neste livro tem o poder de provocar assombro no leitor. As reflexões de Elias Canetti dificilmente são óbvias, nunca são platitudes, lugares-comuns, raramente deixam o leitor indiferente ou apático. Não se trata de aforismos (gênero no qual ele foi também um mestre). Antes são apontamentos sobre os fatos de sua época, proto ideias para seus livros, reflexões filosóficas, descrições de mitos e histórias antigas, comentários dos mais variados sobre arte, cultura, religião e sociedade. Canetti manteve por décadas blocos de anotações e deles selecionou o material desse robusto conjunto. Canetti nasceu em 1905, numa região onde hoje é a Bulgária, filho de judeus de origem sefardita. Sua vida é interessante e movimentada demais para ser resumida num registro como esse (o leitor curioso deve procurar a maravilhosa série de seus livros de memórias, como "A língua absolvida", "Uma luz no meu ouvido" e "Jogo de olhos"). Em meados dos anos 1930, ainda radicado na Áustria, ele publicou seu primeiro romance, "Auto-de-fé (Die Blendung)", mas já acalentava o projeto que lhe tomaria mais de vinte e cinco anos, escrever o ensaio "Massa e Poder", um dos fundamentais trabalhos sobre etnologia e sociologia do século XX. E é na Inglaterra, para onde emigra no início de 1938, em que ele escreverá não apenas "Massa e poder", como todos os demais volumes de sua obra, que inclui peças de teatro, ensaios, livros de viagem, biografias e de aforismos. Ele torna-se cidadão inglês nos anos 1950, recebe o prêmio Nobel de literatura em 1981 e morre em 1994. As notas reunidas neste "La provincia del hombre", publicado originalmente em 1973, correspondem às três décadas entre os anos 1942 e 1972. Escritor disciplinado, Canetti decidiu que enquanto não terminasse seu ambicioso projeto (Massa e poder), não se envolveria com nenhum outro livro. A tensão envolvida na produção daquela obra cobrava do autor uma válvula de escape, daí o início das notas destes cadernos. Pensadas originalmente como algo que jamais viria a ser editado e publicado elas exibem liberdade temática e de forma. Segundo ele mesmo diz no curto prefácio do livro o exercício diário de escrevê-las tornou-se indispensável e que uma parte significativa de sua vida, o registro fiel de sua consciência sobre aqueles anos, restava absoluto nelas. Mesmo depois da publicação de Massa e poder, em 1960, e do consequente envolvimento dele em outros projetos literários, as notas continuaram dominando sua rotina. Não há assunto relevante da segunda metade do século XX que não esteja comentado nelas. Há reflexões sobre a guerra e a morte; sobre psicologia e religião; sobre o método científico, o poder das palavras, a filosofia como ferramenta da vida prática, não como doutrina esotérica. Canetti vale-se dos mitos de dezenas de religiões, do que aprende sobre culturas primitivas, do que lê sobre a ciência das bombas atômicas e da conquista do espaço; das leituras de entretenimento; de sua voracidade por significados e pela história do homem. Após os anos terríveis da guerra lentamente surgem temas mundanos: a complexidade das relações afetivas; a amizade; a paternidade; a agitação dos cafés e restaurantes. Ele conta sobre o prazer absoluto que é a leitura e sobre a irrelevância de conceitos como sucesso e fracasso. Há textos longos onde ele descreve arquétipos de comportamento e personalidade (talvez antecipando aquilo que se tornaria o engraçado "Todo-ouvidos: Cinquenta caracteres / Der Ohrenzeuge. Fünfzig Charaktere") e outros bem curtos, onde ele propõe utopias, tipos radicais de sociedade, faz exercícios morais e testa o valor ético de algumas proposições. Em algum momento da leitura lembrei-me daquelas séries de gravuras de Goya (Los Caprichos, Los Desastres da Guerra, Los Disparates). Assim como Goya em suas águas-forte e águas-tinta Canetti nestes apontamentos parece demonstrar que entende completamente o homem que é seu contemporâneo (ou mesmo todo aquele que existiu antes dele), parece ser capaz de descrever cada homem e cada sentimento humano muito mais precisamente que cada um de nós alcançaria fazê-lo. Ao mesmo tempo nos lembra que a verdadeira unidade de uma vida é algo tão entranhado em cada um que nem o mais genial dos biógrafos seria capaz de decifrar uma única vida. Experimente ouvir o próprio Canetti narrando uma das notas incluídas neste "A provincia del hombre", uma sobre Kafka. Incrível [Último registro: Li boa parte deste livro no Acre, em Rio Branco, um lugar improvável, porém real, onde há brasileiros, como eu, já nos ensinou o Mário de Andrade].
[início: 06/08/2016 - fim: 28/08/2016]
"La provincia del hombre: Carnet de notas 1942-1972, Elias Canetti, tradução de Eustaqui Barjau, Madrid: Taurus Ediciones (colección Ensayistas #246) / Penguin Random House Grupo Editorial, 1. edição (1982), brochura 14x21 cm., 336 págs., ISBN: 84-306-1216-5 [edição original: Die Provinz des Menschen: Aufzeichnungen 1941-1972 (Munich: Carl Hanser Verlag) 1973]

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