Depois das águas altas e do frio no volume anterior que li de Donna Leon (Acqua alta) eis que estamos agora na primavera. Brunetti investiga um caso não oficial, nas suas horas vagas, por sorte em um período sem crimes em Veneza. Só com o verão e os turistas os crimes voltarão à cidade. Uma jovem mulher, que costumava cuidar da mãe de Brunetti, condenada pela idade e pelo Alzheimer a viver em um asilo mantido por uma ordem religiosa, abandona os votos de monja e pede ajuda ao comissário, pois acredita que os anciãos daquele asilo estão sendo mortos e não morrendo por acaso. Brunetti e seus fieis comandados, Brunello e Vianello, sagazes e sedutores (primeira vez em que exibem seus talentos de investigadores independentes do chefe comissário) alcançam vencer a hipocrisia e demais práticas venais e condenáveis da igreja para chegarem a uma solução adequada para o problema da jovem ex-freira. A trama envolve o sempre complexo mercado imobiliário veneziano e o comportamento de inescrupulosos advogados que usam o direito e o abstrato conceito de justiça da população apenas para bem fazer suas negociatas e chicanas. Aprendemos algo mais sobre Brunetti. Sobre o fato dele ler os clássicos (Marco Aurélio, Tertuliano, Plínio) e conhecer bem a Bíblia. Acompanhamos sua surpresa ao descobrir a erudição e hábitos de leitura de sua sogra, a contessa Falier; sobre sua sagacidade ao trilhar caminho de segredos e mentiras que afetam o poder da igreja e de organizações pararreligiosas, como a Opus Dei. A secretaria Electra se mostra fundamental na trama. Certamente veremos mais cousas dela por aqui. Uns pedófilos, que sempre aparecem quando se fala da igreja cristã, acabam sendo punidos, mas os verdadeiros artífices de negociatas e crimes, as grandes ordens religiosas, a Opus Dei e a própria igreja, sempre serão preservados. Já disse como esses detalhes me alegram quando leio os livros de Donna Leon. A engrenagem da vida é mais complexa do que os romances policiais comuns emulam. Nada pode ser totalmente resolvido na vida real, sempre haverá alguém prejudicado, um fato continuará nebuloso ou impune, uma certa pena jamais será aplicada. O direito é apenas um caro e lento exercício de enganação. Como um dos personagens do livro diz: "Os hipócritas nunca imaginam que os outros possam ser tão falsos quanto eles são". Só num país majoritariamente de indigentes mentais, como nesse nosso Brasil, questões de gênero e pedofilia são tratados com igual leniência e derrisão (no mundo da ficção de Donna Leon as pessoas são mais sérias e mais críveis). Mas não há porque se perder mais tempo com esse desgraçado pais. Vamos em frente. Mudemos de tema.
Registro #1234 (romance policial #66)[início: 18/08/2017 - fim: 24/08/2017]
"Enquanto eles dormiam (Brunetti #6)", Donna Leon, tradução de Carlos Alberto Bárbaro, São Paulo: Editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras),
1a. edição (2010), brochura 12x18 cm., 288 págs., ISBN:
978-85-359-1779-6 [edição original: The death of faith, aka Quietly in their sleep (London: Pan Books (Macmillan Publisher) 1997]
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