domingo, 26 de novembro de 2017

romeu e julieta

Talvez apenas menos conhecida que o "Hamlet", "Romeu e Julieta" é daquelas peças de Shakespeare que qualquer vivente pode dizer sem medo que leu, vastas são as referências, influências e marcas na cultura disponíveis até ao mais leniente e vagabundo dos leitores. Shakespeare, como usualmente fazia, quase não inventou nada. Ele baseou-se em tramas bastante conhecidas, de Ovídio a Dante, de Bocaccio a Bandello. A desse último, por sua vez, foi adaptada para o inglês por um sujeito chamado Arthur Brooke, ainda no início do século XVI, e talvez seja a versão mais próxima e disponível ao velho Shakespeare para engendrar a sua. Pouco importa. O genial das peças de Shakespeare é que as versões dele das tramas alheias sempre são as melhores, as mais seminais, as mais curiosamente lembradas e eufônicas. Don José Francisco Botelho, jovem tradutor, da melhor cepa possível dos bons tradutores brasileiros, publicou essa sua versão no final de 2016. Só recentemente tive chance de ler com calma seu portento. Em suas notas sobre a tradução ele dá conta de seus procedimentos, dos recursos poéticos e estilísticos de sua arte. Fala de sua preocupação com a impressão da velocidade da entonação das falas da peça, ajustando os decassílabos e a prosa poética do conjunto original às particularidades do português falado. Ele registra também fidelidade às palavras de Adrian Poole, clássico especialista em Shakespeare que assina um ótimo ensaio incluído na edição da Penguin Companhia. Faz isso sobretudo quando discute o ambíguo equilíbrio entre os tons trágico e cômico da peça e também na questão do controle da sensação da passagem do tempo que experimentamos ao lê-la (ou assistirmos uma montagem dela - a de Baz Luhrmann, Romeo+Juliet, é extravagante, porém digna, talvez seja a que eu mais goste). O amor é primo da morte (nos ensinou um dia Carlos Drummond de Andrade), mas no caso de Shakespeare o amor não vence a morte, apenas dá chance às duas enlutadas famílias rivais de Verona uma chance de reconciliação (mas sabemos, ai de nós, cínicos que hoje somos, da precariedade dessas iniciativas de louvor ou apreço derivadas de um ato funesto). A edição inclui um conjunto de notas assinadas por T. J. B. Spencer, conhecido especialista em Shakespeare, e outras assinadas por Botelho. Como sempre acontece nessas edições da Penguin, as notas dão alegria aos leitores que dispõe de tempo e disciplina, vontade de aprender. A tradução de Botelho é bem boa de se ler, acompanhamos suas soluções com alegria. O sujeito conhece e preza seu ofício. Acompanhamos os sucessos como quem ouve uma história já conhecida, porém contada por um novo vate, um novo bardo, um novo menestrel, dono de uma voz que agrada mais que outras. Com esse livro termino o pacote de três projetos shakespearianos aos quais dediquei-me esse ano. Roberto O'Shea ("Os dois primos nobres"), Lawrence Flores Pereira ("Otelo") e José Francisco Botelho são quase da mesma geração e estão produzindo portentos tradutórios das peças de Shakespeare num ritmo que assombra (Botelho já assinou um Julio César, que está nas livrarias; Lawrence prepara seu Rei Lear - ambos pela Penguin Companhia; e O´Shea, continuará suas traduções das peças tardias de Shakespeare?). Sorte nossa vivermos desse assombro. Evoé! Em tempo: Assim como registrei antes por aqui, ao falar das traduções de "Hamlet" e de"Otelo", lembrei-me ao ler essa tradução de "Romeu e Julieta" de meus tempos de espectador de teatro, de uma encenação que vi no meu tempo das cavernas, início dos anos 1980, no Teatro Anchieta do Sesc, ali próximo dos baixios da Consolação paulista, com o bom Antunes Filho assinando a direção e a jovenzita Giulia Gam, diáfana sob a lua, fazendo as vezes de Julieta (pouco importa quem fazia o papel de Romeu, claro, quem se lembraria dele?). Seriam as pudendas da jovem Giulia que vi em relance naquele dia, no escuro do teatro, ou seriam as da Fernanda Torres ou, ainda, da Júlia Lemmertz, numa montagem de Orlando, que vi no Teatro Municipal? O velho e necessário Alzheimer embaralha tudo e faz o corpo sonhar, talvez dormir (ou seria o contrário, seria outra peça, outras pudendas? Por quantas metamorfoses já passei?). Vale!
Registro #1242 (drama #13)
[início: 04/03/2017 - fim: 15/10/2017]
"Romeu e Julieta", William Shakespeare, tradução de José Francisco Botelho, São Paulo: editora Schwarcz: Penguin Classics Companhia das Letras, 1a. edição (2016), brochura 13x20 cm., 246 págs., ISBN: 978-85-8285-040-4 [edição original: first quarto, 1622; first folio, 1623; Romeo and Juliet (New Haven / Londres: Yale University Press) 2004]

Um comentário:

Paulo Rafael disse...

Muito legal a resenha e as reminiscências.