Gloria Gauger (capa) |
Ler os textos de Nooteboom é algo similar a experiência de ver imagens em câmera lenta ou a de acompanhar o ritmo botânico do crescimento. Ele digressa com calma, explora as possibilidades de um tema, retoma argumentos e pontos de vista que antes abandonara, acumula camadas de entendimento e epifanias. Como preso por um sortilégio o leitor é levado por Nooteboom a partilhar de suas reflexões como se estivesse junto a ele, próximo àquilo que seu olhos veem e seu cérebro processa num preciso instante. Os 533 dias do título correspondem ao período que vai de 01/08/2014 a 15/01/2016, período em que ele comemorou o quinquaségimo ano em que, de forma ininterrupta, visita Menorca, a pequena ilha do Mediterrâneo que ele conheceu ainda jovem, aos 32 anos, em 1968. São 80 anotações, numeradas, praticamente um registro por semana. Nooteboom é um homem que viaja, frequenta feiras literárias, dá palestras, lança livros mundo afora, mas prefere anualmente enfrentar o calor do verão espanhol (seus registros desta vivência estão espalhados por sua obra, notadamente em "El desvío a Santiago" e "Lluvia roja"). Ele fala do ritual de reabrir sua casa mediterrânea já no final da primavera, de ver os livros que ali ficaram esperando-o, como numa instalação de arte contemporânea, reencontrar insetos e pequenos anfíbios, palmeiras e cactus, hospedes mais perenes de sua residência. Ele fala de seu ofício, de como alterna produção literária com as tarefas banais de manutenção da casa, das conversas que tem com os vizinhos, dos amigos que morrem, do tédio e da criatividade, da memória involuntária, das descobertas que ainda faz pela ilha, das festas religiosas que frequenta, dos matizes de cor que vê no céu o no mar naqueles meses que passa por lá. O mundo real (época da crise dos imigrantes na Europa, de uma eleição na Catalunya, de uma troca de primeiro ministro na Grécia, de um conflito na África) frequenta o noticiário e suas preocupações, mas não a ponto de fazê-lo esquecer de Borges, Kafka e Montaigne, de Tácito, Ésquilo e Brecht, dentre tantos outros escritores. Suas memórias de encontros ou da leitura sistemática de escritores formam a parte mais vibrante do livro (aprendi um bocado sobre autores húngaros e sobre o suiço Frisch, que nunca li). Há um suave contraste entre Norte e Sul, sobre uma Europa que precisa aceitar suas diferenças étnicas e históricas antes de realmente unificar-se. Não se trata de um diário ou de confissões de um homem idoso e cansado. As anotações, os registros, poderiam crescer e eventualmente virar matéria de um volume de ficção ou ainda de um grande ensaio. Em algum momento o calor de Sant Lluís em Menorca é contrastado com o frio de uma região no sul da Alemanha, nas festas de final de ano, onde ele também passa algum tempo todos os anos. O livro inclui diversas fotografias, de insetos e das flores de seus cactus, dos caminhos e das velhas casas de pedra de Menorca (assinadas por sua perene companheira, Simone Sassen). As vezes a memória falha e ele se pergunta, como todos nós: será já o Alzheimer, ou apenas um pequeno esgotamento noturno? Que belo livro. Não me canso de dizer como vale a pena ler Nooteboom, um dos grandes escritores de nosso tempo. Vale!
Registro #1260 (crônicas e ensaios #224)
[início: 23/03/2018 - fim: 29/03/2018]Registro #1260 (crônicas e ensaios #224)
"533 días", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal (prosa), fotografias de Simone Sassen, Madrid: Ediciones Siruela
(colección El Ojo del Tiempo, #103), 1a. edição (2018), brochura 15x23
cm., 215 págs., ISBN: 978-84-17308-21-6 [edição original: 533: Een dagenboek (Antwerpen/Netherlands: De Bezige Bij) 2016]
4 comentários:
Obrigada pela sugestão, belamente escrita.
Guina - me permita a intimidade-, posso dizer que o hábito, o fiel camareiro que me leva às suas resenhas, também foi insidioso nesses dias de espera. Bom tê-lo de volta.
Estive no Rio de Janeiro esses dias e encontrei, numa feira na Candelária, dois livros de Cees, Rituais e Caminhos para Santiago, que há muito procurava, por sua influência. No momento leio Rituais e agradeço a recomendação. Como diz o mestre, Vale.
Valeu Glauder, grande abraço. Tudo de bom. Estou seguro que você vai caminhar com o Cees por muitos caminhos.
Grande abraço Dâmaris. Tudo de bom.
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