sexta-feira, 18 de outubro de 2019

l'art del menjar a catalunya

Num dia estival e mágico, de um ano que não quero esquecer, voltei ao Mercat de la Boqueria (Mercat de Sant Josep, na verdade). Como já contei em um velho registro, visitei pela primeira vez esta fundamental catedral dos sentidos no final dos anos 1980. Entre 2006 e 2011, por sorte voltei várias vezes a Barcelona, afinal lá estavam morando as meninas, Natália e Helga. Na primeira vez que voltava a percorrer aqueles corredores apinhados de turistas e barceloneses da gema, a rever as cores e os exóticos produtos, a experimentar inebriado todos os aromas e sensações que brotavam do lugar, eis que meus velhos e perenes amigos, os livros, fizeram-se saber. Era um final de tarde. Quando me preparava para me despedir da Boqueria vi por acaso uma pequena livraria escondida no segundo andar, acessível apenas por uma escada de metal contígua a um daqueles sujos e deprimentes corredores laterais (todo mercado tem um lado especialmente feio, que mesmo o mais entusiasta prefere não denunciar). Era mesmo muito pequena a livraria, mas os livros dali eram maravilhosos, quase todos eles dedicados a nobre arte da culinária, da eterna luta contra o fogo. Folheie vários com calma, mas não havia me decidido a comprar nenhum (minha cota de bagagem já estava mais do que comprometida, claro, e como sempre). Após um tempo disse para a moça que cuidava do lugar qualquer coisa sobre voltar em um outro dia, mas ela alertou-me que aquele era o último dia, que a livraria seria fechada definitivamente. Contou-me sobre certos aborrecimentos dos donos, do que entendi ser uma briga de casal ou desentendimento entre os sócios. A bem da verdade ela, funcionária nova, não sabia muita coisa, nem se seria paga realmente pelos dias em que ficou ali encerrada, quase sem clientes, olhando de cima o movimento dos turistas do lugar. Truque de vendedora malandra, logo pensei? Real preocupação de alguém que precisava contar (para um pobre diabo latino-americano, aferrado aos livros, como não) suas misérias? Dei uma última olhada e decidi comprar um volume recém publicado de Manuel Vázquez Montalbán, autor que já conhecia, graças à Eliana Sturza, mas de quem nunca havia lido nada em seu catalão fundamental. Trata-se de um volume de 2004, reedição de um original de 1977, quase um livro de arte, repleto de ilustrações e fotografias. O texto não esconde um entusiasmo que talvez seja exagerado, mas que é produto de seu tempo. A Espanha vivia os primeiros anos de redemocratização, após quase quarenta anos de ditadura franquista. Montalbán defende a particular identidade catalã, o fato da arte culinária ali praticada ser distinta das demais províncias espanholas, eventualmente até mais antiga e senhorial que todas as demais (ele cita o legendário libro de Sent Soví, talvez o primeiro livro de culinária europeu, publicado no século XIV). Montalbán percorre a geografia da Catalunya, fala dos pães, arrozes e pastas, das sopas e dos caldos,  das ervas e verduras, dos peixes, das carnes de caça, dos embutidos, dos vinhos e da confeitaria, das sobremesas, de possíveis menus catalães autênticos, não contaminados pela cupidez associada ao turismo de massa. Metade do livro é dedicada a receitas, não exatamente receitas que possam ser reproduzidas automaticamente, pois não há tempos de cozimento exatos, quantidades precisas, definição correta dos procedimentos. Fazia mais de dez anos que  este volume enfeitava a sessão de gastronomia de minha biblioteca. Meses atrás decidi ler cousas atrasadas com calma, testar minha paciência com o catalão. O texto cobra seu tempo, mas a força e o humor de Montalbán recompensa qualquer esforço. Aprende-se um bocado. Montalbán morreu em um 18 de outubro, como hoje. Ele faria hoje 80 anos. Morreu muito cedo, com certeza. Grande sujeito, grande espanhol, grande catalão. Vale!
Registro #1460 (gastronomia #41) 
[início: 01/08/2004 - fim: 16/09/2019]
"L'art del menjar a catalunya: el llibre de la identitat gastronòmica catalana", Manuel Vázquez Montalbán, Barcelona: Salsa Books / Edicions 62 (Grupo Planeta), 1a. edição (2004), capa-dura 17x24,5 cm, 256 págs. ISBN: 84-9787-059-X

2 comentários:

Paulo Sousa disse...

Delícia de depoimento! Arre! Sei que minhas referências literárias a Barcelona ou a Madrid são bem menos nobres (o Carlos Ruiz Zafón, principalmente!), mas aprendi a gostar do ambiente onde se fala o castelhano primeiro pelos ares andinos de Bogotá, onde estive em 2016, e em viagem recente à capital portenha.

Como você, gosto de errar por ruas e becos aquém dos batidos destinos para turistas, experimentar a cidade, sentir os ares, tomar cafés e contemplar o ir e vir das gentes...errar numa livraria, ver os novos e os velhos títulos (encontrei verdadeiros templos da leitura em Buenos Aires), folhear um Borges, um Cortázar, um Gabo.

Ainda me falta conhecer as Ramblas, o que certamente é uma falha enorme na minha vida de leitor e experiência de viajante, mas espero que essa empreitada não tarde...

Aguinaldo Medici Severino disse...

Abração Paulo. Esses pequenas lembranças salvam um sujeito nas horas difíceis. Um dia quero ler sobre teus passeios latino-americanos. Tudo de bom. Boa semana.