terça-feira, 24 de março de 2020

don juan

Don Juan é um personagem da literatura espanhola, do início século XVII, 1600 e poucos, inventado por Tirso de Molina. Já Giacomo Casanova foi um homo sapiens como nós, um veneziano de carne e osso, que viveu entre 1725 e 1798, mais de um século após a publicação do livro de Molina. Ambos são associados à sedução, à libertinagem, à compulsão, à conquista, ao sexo sem amarras ou culpas, são mulherengos inveterados. Enfim, Don Juan e Casanova já prestaram-se a centenas de adaptações literárias, dramáticas, cinematográficas, tanto na dita alta cultura, sofisticada, quanto na cultura pop, sempre mais facilmente palatável. As histórias de Don Juan e de Casanova de alguma forma se fundiram, e há tanto tempo, que é difícil dizer qual característica da cupidez de cada um é a melhor identificada a seus nomes. Já li várias adaptações destas singulares vidas, a real e a inventada. Gosto muito de “La amante de Bolzano”, de Sándor Márai, e assisto sempre que posso a versão operística de Joseph Losey, “Don Giovanni”, com Ruggero Raimondi, José van Dan, e Kiri Te Kanawa, três cantantes líricos que aprendi a venerar. Peter Handke nos oferece sua versão neste curto “Don Juan (narrado por ele mesmo)”, publicado originalmente em 2004. Acompanhamos a narrativa de uma semana da vida de um possível Don Juan contemporâneo, um Don Juan que convive com aviões e motocicletas, com a geografia mais ou menos atual de países europeus, com os ecos esparsos de sua própria lenda. Pode-se ler a versão de Handke de uma outra forma, não exatamente explícita: a de que o narrador de Handke seja um leitor das memórias de Casanova (ou ao menos do livro publicado no final do século XVIII, que é atribuído a ele). O narrador de Handke (um velho senhor que cuida de um albergue em uma pequena cidade do sudoeste parisiense, Port-Royal-des-Camps) se imagina conversando com aquela criatura inventada, convive com ele, ouve os sucessos de seus últimos dias, num melancólico palimpsesto de seduções contínuas de mulheres. Esta "semana de mulheres", como o narrador de Handke explica, antes é a crônica de um sujeito já entediado com o efeito sedutor, empático, que provoca nas mulheres e também nos homens. É através do olhar que ele parece enfeitiçar todos, ao acaso, numa repetição tediosa de situações mecânicas, onde o sexo, a conjunção carnal, é o que menos importa. Há também uma camada cristã de entendimento deste livro. Handke lembra ao leitor várias vezes que a narrativa se dá durante o período que antecede a festa de Pentecostes, a celebração da descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Cristo. Assim como aconteceu para aqueles discípulos o velho narrador do livro permanece em seu albergue ouvindo por sete dias as histórias de Don Juan, para ao final ficar apenas com a certeza que a única, definitiva e verdadeira história de Don Juan é aquela que acabamos de ler. Vale! 
Registro #1506 (romance #376) 
[início:13/03/2020 - fim: 14/03/2020]
"Don Juan (narrado por ele mesmo)", Peter Handke, tradução de Simone Homem de Mello, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2007), brochura 14x19 cm, 144 págs. ISBN: 978-85-7448-133-3 [edição original: Don Juan (erzählt vom ibm selbst), Suhrkamp Verlag (Frankfurt am Main, Alemanha), 2004]

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