Lembrei deste livro, que me esperava nos guardados há mais de dois anos, após ler o bom "Escola partida", de Ronai Rocha. Foi uma associação que me ocorreu ao ler o livro do Ronai e não tenho certeza se é válida. Pierre Michon, respeitado e premiado escritor francês, ficou famoso após a publicação de "Vies minuscules", um volume de contos que brincam com a ideia de autobiografia, de biografias inventadas. Neste volume da Anagrama estão reunidos oito ensaios de Michon, correspondentes a dois livros independentes: "Trois auteurs", de 1997, e "Corps du roi", de 2002. Nestes ensaios Michon faz uso da conhecida tese de Ernst Kantorowicz, a "dos dois corpos do rei", publicada em 1957. Segundo esta tese, os reis medievais tinham um corpo físico, como todo homo sapiens, que perece, morre, e um corpo jurídico, simbólico, que vive em contínua metamorfose, para sempre perpetuando uma dinastia. Com este arranjo, a polis medieval transformou-se em um corpo secular místico, e alcançou encontrar uma forma de administrar o poder político sem muitos sobressaltos por centenas de anos. Pois Michon, nestes seus dois livros (que reúnem oito ensaios), aplica o modelo de Kantorowicz para a literatura, discutindo como para os nós, leitores, sempre haverá, nos assombrando, a obra material, a ficção produzida por um autor, o livro que estamos a ler, e a biografia do autor da obra, a história de vida deste sujeito, que eventualmente confundimos com sua obra ou com os protagonistas de seus livros. O mesmo arranjo vale para o autor de uma obra crítica, que discute a produção de um outro escritor. É difícil, porém necessário, que este crítico demarque a vida do autor e a afaste do resultado de sua produção poética, de sua obra, daquilo que eventualmente está em análise. No primeiro conjunto de ensaios reunidos neste volume encontramos reflexões sobre Samuel Beckett (onde, a partir de uma fotografia, Michon discute a idealização do escritor/autor e a idealização do ato criativo dele, sua obra - e que lembra um tanto o "Miramientos", de Javier Marías); Gustave Flaubert (em que Michon fala do quão comprometido com sua obra era Flaubert, algo que parece ecoar o bom Flaubert's Parrot, um livro de Julian Barnes, de 1984); William Faulkner (no qual somos apresentados a uma variante divertida da teoria da "Angústia da influência", de Harold Bloom); Victor Hugo (um ensaio híbrido, que equilibra fragmentos autobiográficos e um estudo sobre um poema de Hugo: "Booz endormi", muito bonito) e Muhammad Ibn Manglî (um especialista em falcoaria, nascido no Cairo, no século XIV). No segundo conjunto Michon trata de Honore de Balzac (também contrastando o autor e sua imensa obra); Charles-Albert Cingria (um escritor e respeitado crítico literário francês da primeira metade do século XX) e novamente Faulkner (uma entrevista na verdade, não um ensaio, no qual Michon confessa sua admiração e fundamental influência por ele). É o tipo de livro que faz o leitor aprender um bocado de coisas. É também um livro divertido, pois Michon pontua seu texto com passagens amalucadas de sua vida (em uma delas, após boas seis horas de bebedeira, após ter proferido uma palestra na gloriosa Biblioteca Nacional de Paris, ele é expulso a pontapés de um restaurante após passar a mão nas pernas de uma garçonete). Suas exegeses sobre Beckett e Faulkner são particularmente notáveis, que belos textos. A história bíblica do poema de Hugo ("Booz endormi") fez-me lembrar de uma miríade de outras. Sua paixão por Faulkner fez-me lembrar-me dos dias em que também eu mergulhei em um silêncio e li tudo dele. Um dia destes vou procurar "Vies minuscules", seguro que sim. Vale!
Registro #1522 (ensaios #271) [início: 15/06/2017 - fim: 13/04/2020]
"Cuerpos del rey", Pierre Michon,
tradução deMaría Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama
de Narrativas #633), 1a. edição (2006), brochura 14x22 cm., 158 págs.,
ISBN: 978-84-339-7096-8 [edição original: Trois auteurs (Paris: Verdier) 1997 e Corps du roi (Paris: Verdier) 2002]
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