Esse é um texto híbrido, uma autoficção. Trata-se de um misto de invenção, memória, biografia e autobiografia. Rosa Montero fala muito de si e muito de Marie Curie, a genial física polonesa, ganhadora de dois prêmio Nobel, um de
Física, em 1903, e outro de Química, em 1911. Sendo algo cruel, diria que Plutarco chamaria esse livro de "Vidas paralelas: Curie e Montero". O tom lembrou-me muito aquela coleção de livretos editada pela Brasiliense nos anos 1980: "Encanto Radical", na qual escritores faziam curtas hagiografias de seus ídolos, gurus, grandes personalidades que arrebatavam seus sentidos. Pois Rosa Montero, ainda sob impacto da perda de seu companheiro de muitos anos, Pablo Lizcano, morto de doenças decorrentes de um câncer, fala da experiência do luto, da aceitação da morte, do autoconhecimento que advém deste doloroso processo, e também fala do amor, da saudade, da velhice, da paixão, do cotidiano, do sexo, das relações entre homens e mulheres. Suas reflexões são contrastadas com as notas de um diário mantido por pouco mais de um ano por Marie Curie, relacionadas a morte de seu marido e colega físico, Pierre Curie, em 1906. Encantada com a biografia e pioneirismo de Curie, uma mulher obstinada que alcançou glória em áreas
normalmente fechadas a participação de mulheres (nada muito diferente do que acontece até hoje, cabe-se dizer), Rosa Montero tenta extrair das notas do diário de luto de sua biografada não exatamente consolo, antes sim algo do poder que as palavras têm sobre todos nós. Ela fala muito sobre o processo criativo, sobre o ofício da literatura, da invenção. Trata-se de um texto interessante, mas - como quase sempre acontece em suas narrativas - a cousa cansa. Claro, os fatos biográficos sobre Marie Curie impressionam, sustentam o livro do início ao fim, mas isso uma sóbria biografia também faz. As descrições dos processos físicos e as contribuições científicas estão muito bem escritas. Entretanto, me parece mais que risível algumas pajelanças que a autora incluiu no texto, como uma associação besta entre gênero e o tamanho dos dedos das mãos, e sua obsessão com o contraste entre os papeis sociais de mulheres e homens. Rosa Montero incluiu algumas #hashtags no texto, uma forma curiosa de mostrar as ênfases que brotam de sua narrativa. Curioso. As notas do diário de Curie estão incluídas em um apêndice, e cabe dizer que são notavelmente bem escritas. Aliás, lembrei que há alguns anos registrei aqui um belo volume com a transcrição de admiráveis notas de aula de Marie Curie: clika! Vamos em frente. Sigamos no baile macabro deste ano da peste. Vale!
Registro #1526 (perfis e memórias #95) [início: 01/03/2020 - fim: 02/04/2020]
"A ridícula ideia de nunca mais te ver", Rosa Montero, São Paulo: Editora Todavia, 1a.
edição (2019), brochura 13,5x21 cm, 208 págs. ISBN: 978-656-80309-84-3 [edição original: La ridícula ideia de no volver a verte (Barcelona: Seix Barral / Planeta de Libros) 2013]
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