quarta-feira, 1 de outubro de 2008

dia de finados

“Dia de Finados” é um belo romance de Cees Nooteboom. É um livro bem mais longo que os dois romances anteriores que li dele. As primeiras cem páginas são muito herméticas, obscuras mesmo, e eu tive de me esforçar muito para entender o que estava acontecendo, mas da mesma forma como repentinamente discernimos formas e cores em meio a uma espessa bruma matinal, de algum ponto em diante no romance tudo passou a fazer sentido, os personagens se materializaram (eles já estavam ali quase como fantasmas), o enredo se desdobrou. Um documentarista free-lancer, Arthur Daane, tem como projeto autoral fixar (em imagens e sons que filma e grava o tempo todo no livro) momentos quase imateriais, como o lento desaparecimento de pegadas sobre a neve, o ar se condensando próximo a nós em um dia muito frio, o gelo se formando sobre a superfície tépida de um lago, a amplidão de lugares públicos vazios. Há uma presença forte da morte e da perda neste livro. A mulher do personagem principal e seu filho morreram recentemente em um acidente de avião. Deslocados do texto principal vários acidentes, violências, descuidos e mesmo vontades ceifam os homens e as mulheres, personagens aos quais mal fomos apresentados. O livro se passa basicamente em uma Berlin invernal nos tempos imediatamente seguintes a queda do muro (início dos anos 1990), mas há algo sobre as rixas entre a Holanda e Alemanha, bem como sobre as rivalidades entre a esta última e a Rússia ou sobre o contraste entre o tradicional e o novo no Japão. Nooteboom gosta de simetrias (acho que isto também é um padrão nele), os personagens por vezes viajam pelo livro e pela Berlin enevoada seguindo os pontos cardeais. O restaurante onde os personagens principais se encontram lembra um tanto “La Colmena”, do Camilo José Cela. Seus amigos são Arno, um filósofo; Victor, um escultor; Zenóbia, uma física/astrofísica russa. Todos muito intelectuais e sofisticados, discutindo filologia, o sentido da vida, a política de seu tempo, a vida pessoal de cada um. O estranhamento e o deslocamento, a orientação vaga que temos durante as viagens, a experiência religiosa, o mundo acadêmico, a presença da Espanha, também são temas presentes no livro. Mas o que emerge da trama é a busca do entendimento do mundo feminino, afinal não estamos sempre a seguir uma mulher, falando algo seu nome, como um mantra? Uma mulher jovem aparece no livro. Ela estuda um período obscuro da história espanhola, quando uma rainha, Urraca, dominou León e Castela. Ala putcha! Como a Espanha sempre dá um jeito de aparecer nos livros de Nooteboom! A mulher aparece e desaparece de seu cotidiano como as imagens fugidias que ele perseguia no início do livro. Conhecer de fato esta mulher passa a ser a nova obsessão do documentarista. Nada transcendental, mas honesto e instigante. Gostei.
"Dia de Finados”, Cees Nooteboom, tradução de José Marcos Macedo, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2001), brochura 14x21cm, 345 págs. ISBN: 85-359-0146-9

3 comentários:

Bee disse...

Como é que tu tem tempo de ler tanto?
Sério... Quero ser assim quando eu crescer!! Me ensina!!

Abraço!

charlles campos disse...

Aqui também uma resenha sobre Dia de Finados.

Paulo Sousa disse...

caro Guiña,

acabei de ler o romance do Noteboom, um livro acima de todas as expectativas, das melhores que encontrei nestes tempos tenebrosos. te devo este deleite, há tempos não topava com algo tão denso e tão delicioso. amanhã publico minhas impressões abraços!