Noutro dia o acaso me levou a uma prateleira de livraria onde dois livros de Elias Canetti pareciam esperar sorrateiros por mim. Nada sabia destas novas edições. Que bela surpresa. Há quanto tempo não lia ou relia nada dele? Lembrei-me que nos anos 1980 li "Auto-de-fé", "Massa e poder", os três maravilhosos livros de memórias ("A língua absolvida", "A luz em meu ouvido", "O jogo de olhos"), os livros de viagem, o livro de aforismos. O primeiro dos livros de memórias dei de presente várias vezes ao longo dos anos e inúmeras vezes contei histórias dele aos amigos, como se fossem histórias de alguém realmente próximo, familiar. "Festa sob as bombas" é um livro de memórias publicado originalmente em 2003, dez anos após a morte de Canetti. Ele havia decidido que mesmo no final da vida estava ainda muito próximo dos assuntos e das pessoas que retrata nestas anotações. Os manuscritos, trabalhados em 1991 e 1992, foram escritos em Zurich, onde Canetti viveu seus últimos anos, e retratam os sucessos do que ele chamou de "anos ingleses", o período entre o final dos anos 1930 e os anos 1940, principalmente a segunda grande guerra. Já algo respeitado por conta de seu romance "Auto-de-fé", Canetti é um jovem emigrante que vive modestamente em uma Inglaterra marcada pela guerra. Relaciona-se com muita gente, de extratos sociais bastante distintos, desde aristocratas influentes a colegas intelectuais expatriados, passando pela gente simples da Londres suburbana e do campo inglês. Há muito humor nestas lembranças. As descrições dos indivíduos e das recepções (algumas literárias, a maioria mundanas) são sempre ricas e vibrantes. Acompanhamos Canetti pelos salões e pelos passeios pelo campo com vívido interesse. Para um sujeito observador e bom ouvinte nada é absolutamente supérfluo ou irrelevante. Ao mesmo tempo que aprende a entender o caráter básico do inglês (de soberba e hipocrisia eles entendem, nos ensina Canetti), ele se posiciona, defendendo seus pontos de vista sobre a guerra, sobre a opressão e também sobre os sombrios em que Margareth Thatcher foi primeira-ministra da Inglaterra. Canetti é discreto quando fala das muitas mulheres com que se relaciona e que são citadas no livro, mas quando fala de Iris Murdoch (à época com vinte e poucos anos) ele é demolidor, quase cruel. A edição é muito bem cuidada, com um generoso posfácio (escrito por Jeremy Adler), um bom apêndice e um protocolar índice onomástico. Algumas reproduções de fotografias completam este belo volume, que certamente vai encantar os antigos leitores de Canetti. [início 12/12/2009 - fim 14/12/2009]
"Festa sob as bombas", Elias Canetti, tradução de Markus Lasch, editora Estação Liberdade, 1a. edição (2009), brochura 14x21 cm, 231 págs. ISBN: 978-85-7448-159-3
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