"Amor sem fim" de Ian McEwan é um romance que sutilmente contrapõe ciência e religião, mas talvez seja mais correto dizer que apresenta ao leitor um jogo onde se confrontam a maneira de se entender o mundo cientificamente e as maneiras como quaisquer outras formas de conhecimento entendem o mundo. Estes jogos estavam na moda no final do milênio, como é o caso de quando o livro foi publicado originalmente, 1997. Agora, finda a primeira década deste século XXI, pode-se dizer sem medo que o obscurantismo e o anti-cientifismo dominam com folga, como a tempos não dominavam, o cenário dos projetos de entendimento do mundo, imersos que estamos nesta espécie de reinado da imbecilidade em que vivemos (e não digo isto olhando apenas para o Brasil). Bueno. Um sujeito, Joe Rose, físico de formação, trabalha com jornalismo científico e, apesar de lamentar-se um tanto ter abandonado o mundo da ciência pura, alcançou sucesso e reconhecimento em suas atividades. Ele é casado com uma acadêmica da área de letras, Clarissa Mellon, especialista em Keats. Um bizarro incidente em um dia estival no campo inglês transforma radicalmente sua vida. Um balão de ar quente perde o controle. Joe e um grupo de outros três ou quatro sujeitos tentam segurar o balão próximo ao solo para evitar que ele suba sem controle, levando embora uma pequena criança. Por azar um dos sujeitos que tentavam evitar que o balão se perca o segura por tempo demais e acaba caindo do balão e morrendo. O livro seria banal caso descrevesse apenas o dilema moral de Joe, que em um primeiro momento sente-se culpado por ter sido o outro e não ele o sujeito que segurou por tempo demais a corda do balão e que por conta disto morreu. McEwan faz com que um dos sujeitos que partilhou a tentativa de socorro ao balão passe a desenvolver uma curiosa patologia em relação a Joe. A partir daquele evento o outro sujeito, Jed Parry, entende-se completamente apaixonado por Joe e entende que esta paixão é recíproca (o que escrevo aqui não é exatamente um spoil, pois estes dois eventos, acidente e paixão, são descritos por McEwan nas primeiras trinta ou quarenta páginas). O que acompanhamos no livro são as várias estratégias que os personagens do livro desenvolvem para resolver o conflito em que se meteram. Acompanhamos os desdobramentos destas estratégias, pois todos, o casal, o sujeito apaixonado, a polícia, a viúva do sujeito que morreu, reagem de formas distintas a estas estratégias. McEwan acrescenta ao livro (mas faz parte dele, como um truque metalinguístico) uma espécie de artigo científico, um paper, onde descreve a síndrome erotomaníaca de Clérambault, que é a doença de que padece seu personagem. O livro é repleto de discussões que remetem ao mundo acadêmico e científico. Não é o melhor Ian McEwan que já li (gosto mais de "O jardim de cimento" e "A reparação", ou mesmo dos contos de "Primeiro amor, últimos ritos"), mas é um livro que se lê com prazer. Ao ler o livro lembrei do Fernando Landgraf, que sempre se perguntava porque não havia um livro decente que tratasse do mundo da academia, da vida universitária. A meu juízo o melhor desta classe de livros ainda é "Todas as almas", do Javier Marías, mas este "Amor sem fim" tem lá seu valor. [início 07/04/2011 - fim 14/04/2011]
"Amor sem fim”, Ian McEwan, tradução de Jorio Dauster, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21cm, 291 págs. ISBN: 978-85-359-1835-9 [edição original: Enduring love, Jonathan Cape, 1997]
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