"Libro de familia" é um mosaico de lembranças, de invenções, de registros. A cronologia de Patrick Modiano é traiçoeira, arrasta o leitor para um lado e outro da seta do tempo e ao final parece nos dizer que a vida é mesmo assim: uma sucessão de eventos que acumulamos numa determinada ordem, mas da qual nos recordamos como num sonho (por vezes num pesadelo), pois editamos nossas lembranças como um diretor de cinema edita um filme ou um escritor constrói um livro. São quinze capítulos curtos, quinze páginas de um álbum de família que o leitor folheia. No primeiro desses episódios o narrador conta com a ajuda de um velho amigo do pai para conseguir registrar sua filha num cartório em Paris. No último esse mesmo narrador, sua mulher e a filha ainda pequena percorrem num táxi as ruas de Nice. O narrador contrasta a vívidas descrições da cidade feitas por seu pai a ele com a ausência de lembranças de sua filha recém nascida, que jamais poderá lembrar-se desse passeio de táxi sem a ajuda dos pais. Nos demais episódios sempre há um elo entre o narrador e seus pais; o narrador e a história velada da ocupação nazista da França; o narrador e seus projetos literários (e o tipo de pesquisa que faz para encontrar elementos literários em sua própria vida). O narrador é alguém que "tem por costume escutar o que dizem as pessoas, dividir com elas seus sonhos e animá-las em seus projetos". É uma espécie de vampiro de histórias, que compara continuamente essas com aquelas que conhece sobre seus pais e sobre seu tempo. Os episódios de seu álbum de família se acumulam como num palimpsesto, sem ordem, mas espacial e temporalmente bem identificados: o início da carreira cinematográfica da mãe na Bélgica; uma viagem para o campo com o pai para conseguir uma assinatura num documento; outra viagem, com um tio, que busca um moinho para alugar porém encontra um templo oriental perdido no campo francês; a retirada de uma segunda via de sua certidão de batismo, em Biarritz; seu choque com o início da guerra do Yom Kippur; sua viagem de núpcias para a Tunísia, onde reencontra uma amiga dos pais; o fato de reconhecer um sujeito que colaborou com os nazistas durante a guerra e passou a usar outra identidade (mas sua incapacidade de confrontá-lo pessoalmente); a história de um velho ator japonês recluso na Paris dos dias da guerra; a decadência espiritual de um rapaz que pode ter sido o herdeiro do último rei do Egito; os planos de emigrar para a China com um sujeito que pode ter sido amigo de seu pai ou um colaboracionista; os dias que passa escrevendo o roteiro de um filme, apaixonado por uma atriz; a visita que faz ao apartamento onde viveu com os pais; a descoberta de um parente distante sobre o qual nunca ouviu falar (e que desapareceu na guerra); o fato de que em sua certidão de nascimento constar os nomes falsos dos pais (que se casaram durante a ocupação nazista). O narrador persegue as histórias de seu passado mas sabe que a maioria delas sempre tem algo de tóxico, de envenenado; algo capaz de entorpecer e confundir os sentidos. Viver não é apenas perigoso (como nos ensinou o Rosa) é também uma luta por libertar-nos de nossa própria escravidão mental.
[início: 22/03/2015 - fim: 23/03/2015]
"Libro de familia", Patrick Modiano, tradução de María Teresa Gallego Urrutia, Barcelona: editorial Anagrama (Panorama de Narrativas #878), 1a. edição (2014), brochura 14x22 cm., 201 págs., ISBN: 978-84-339-7908-7 [edição original: Livret de famille (Paris: éditions Gallimard) 1977]
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