Quando um grande amigo passa pelos aborrecimentos de uma separação é inevitável: você acaba ficando com parte da vida dele (não apenas as histórias e palavras ditas por ele, mas muitas vezes dos objetos dos quais ele prefere se desfazer). De don Renato Cohen, capitão de longo curso, ganhei um bocado de livros, como esse "Things I didn't know", de Robert Hughes. Renato e eu devemos ao Hughes um tanto de nossa educação estética. Lembro-me de como comentávamos cada um dos capítulos de "O choque do novo", série que assistíamos na TV Cultura de São Paulo nos anos 1980. Depois lemos "Barcelona" e "Goya" e, mas recentemente, vimos "American Visions", outro bom documentário. "Things I didn't know" é uma boa autobiografia, mas ela conta apenas metade de uma história, pois termina quando Hughes emigra para os Estados Unidos e passa a colaborar com a revista Time, em 1970 (ele viveria mais de quarenta anos lá e só morreria, ativo e ainda influente no mundo da crítica de arte, em agosto de 2012). Lê-se suas memórias com prazer. À exceção do primeiro capítulo, dedicado a descrição de um grave acidente automobilístico ocorrido em sua Austrália natal e dos kafkianos desdobramentos jurídicos dele, os demais oito seguem a seta do tempo linearmente, desde sua infância em Sidney, filho mais novo de uma próspera família de advogados cujo pai combateu na primeira grande guerra, até a vida louca na Londres hiperurbana do final dos anos 1960, já casado e com um filho pequeno. Hughes nos conta sobre seus pais e antepassados remotos (o manual dos livros de memórias praticamente obriga um capítulo dedicado a essas arqueologias pessoais) e fala bastante sobre sua educação jesuítica e mentores intelectuais. Descreve como se aproximou da arte através da arquitetura (em seu curso superior de belas artes) e como entrou no mundo da televisão (e mesmo na crítica de arte) por acaso. A Austrália de seus dias de estudante (anos 1950) era muito conservadora, provinciana e o acesso a peças originais de arte moderna limitadíssimo. A discussão sobre arte moderna praticamente inexistia. Portanto, sua educação estética não é exatamente formal, fruto da experiência acadêmica. Hughes se aproxima dos artistas de seu país, sobretudo artistas plásticos, mas também atores, músicos, dramaturgos, frequenta ateliers, galerias, exposições, lê os livros clássicos sobre o tema que encontra. Faz algum turismo em Londres. Depois dos anos em que tenta viver como pintor, logo após terminar os estudos superiores, descobre que sua habilidade em falar e escrever sobre pintura é muito superior a sua técnica. Incentivado por um mentor (o escritor australiano Alan Moorehead) ele emigra para a Inglaterra e vive como escritor freelancer dos cadernos culturais de jornais londrinos (antes de se fixar em Londres ele passa um curto período nos Estados Unidos, onde conhece Robert Rauschenberg, Cy Twombly e Jasper Johns, além de gastar dinheiro em Las Vegas). Posteriormente vive uns anos na Itália e descobre lá um admirável mundo novo de arte escultória e afrescos etruscos e romanos (também aprende a relacionar-se melhor com os amigos influentes ligados ao jornalismo e ao circuito das artes). No final dos anos 1960 ele acompanha com seu trabalho a explosão da contracultura, tempo de maior engajamento político, contestação dos sistemas de poder estabelecidos, curiosidade com a experiência das drogas. Hughes não é exatamente um enfant terrible, mas frequenta vários círculos de ativistas políticos e culturais (sua mulher acaba sendo descrita com crueldade como uma drogada incorrigível). Com fontes limitadas de trabalho e a perspectiva do nascimento de um filho, Hughes e a mulher passam algum tempo na Espanha, ainda sob a ditadura franquista. Lá ele conhece a renaixença catalã e, em Madrid, os grandes pintores do século de ouro espanhol. Cada uma de suas cumulativas experiências longe da Austrália o fazem entender o fenômeno da arte com maior abrangência. Ainda trabalhando com a produção de documentários culturais na BBC2 londrina, no final dos anos 1960 Hughes escreve dois livros de arte, que venderam pouco mas alcançaram críticas bastante generosas ("The Art of Australia", em 1966 e "Heaven and Hell in Western Art", em 1969). Henry Grunwald, um australiano de nascimento e à época editor da Time Magazine, interessou-se por "Heaven and hell in Western Art" e resolveu contratar Hughes para a posição de crítico de arte da revista. Hughes parte de Roma para Nova Iorque e sabe que sua vida mudaria completamente. Mas isso só uma biografia completa poderá detalhar (sem saber onde encontrar uma, achei esse bom site sobre ele). Enfim, trata-se de um livro irregular, com passagens muito estimulantes mas também com seções bem tediosas. Esses altos e baixos não desmerecem totalmente o livro. Hughes nos ensina a enxergar melhor o mundo, perceber melhor as relações entre as pessoas, principalmente através das lentes da arte moderna. Defende a idéia que cada obra de arte deve oferecer ao indivíduo algo estimulante, inquietante, caso contrário é lixo (e não se deve entender cada movimento artístico como algo monolítico, inexpugnável, imune a críticas). Fala da vitalidade australiana, da busca incessante por conhecimento, da capacidade de aprender (e do papel da sorte em nossa vida, como não?). E como não agradecer uma vez mais o Cohen por me oferecer um presente tão especial assim. Evoé Renato Cohen, evoé.
[início: 12/01/2015 - fim: 07/04/2015]
"Things I didn't know: a memoir", Robert Hughes, New York: Alfred A. Knopf (Random House), 1a. edição (2006), capa-dura 16,5x24 cm., 399 págs., ISBN: 1-4000-4444-8
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