Há livros que descrevem cidades como se seus autores fossem flâneurs dedicados, aquelas generosas criaturas que partilham suas observações de uma viagem e que invejamos talvez não discretamente. Há também livros onde o autor é um anti-flâneur, pois faz uma espécie de serviço sujo para o leitor, vai a lugares, conversa com pessoas e vê a realidade de coisas que talvez nossa sensibilidade naturalmente débil ou romântica demais não nos permitiria jamais perceber adequadamente. É o que Joseph Roth faz com a Berlim nos textos reunidos nesse livro. Suas crônicas foram publicadas em jornais de Berlim, Munique e Frankfurt do final da primeira grande guerra (textos escritos sobretudo na primeira metade dos anos 1920) até a tomada constitucional do poder alemão pelo nazismo (1933). O sujeito é preciso, claro e objetivo em suas digressões. Trata-se de um jornalista icônico, mítico, clássico, que nunca se perde na aparência das coisas, sabe procurar a realidade tanto nos salões do Reichstag quanto nos cabarés mais decadentes e sombrios. Mas são crônicas de um escritor habilidoso, de um estilista, de alguém que equilibra informação e qualidade literária. Ele é quase sempre irônico, mas sem ofender ou menosprezar ninguém (talvez seja sarcástico mesmo apenas com policiais e detetives que seguem regras e códigos obsoletos). A Berlim do início dos anos 1920 está tomada de emigrantes muito pobres, refugiados do leste europeu, mas é também um lugar efervescente, com vários jornais diários, intensa atividade artística, literária, mundana. Os textos estão organizados em blocos temáticos: há crônicas sobre os refugiados e o bairro judaico; sobre as obras viárias e a construção de arranha-céus que modificam a velha capital prussiana; sobre os burgueses e boêmios, sobre seus hábitos; sobre a indústria de entretenimento (inclusive o comércio sensual); sobre os políticos e a política daqueles dias. Saber um tanto da história da Alemanha ajuda a entender as alusões e comentários de Roth (lembro sempre do bom "História concisa da Alemanha", de Mary Fulbrook). O último artigo do livro é de 1933, já escrito e publicado em Paris, para onde Roth exilou-se, antecipando as terríveis consequências da ascensão de Hitler ao poder (ele não contemporiza: "O mundo ameaçado e aterrorizado precisa se dar conta de que o ingreso do cabo Hitler na civilização européia significa não apenas o início de um novo capítulo na história do anti-semismo: longe disso! O que dizem os incendiários é verdade mas em outro sentido: esse Terceiro Reich é o início do fim! Ao exterminar os judeus, perseguem Cristo. Pela primeira vez os judeus não são assassinados por terem crucificado Jesus, mas por terem lhe dado vida."). Como muitos fascistinhas que vicejam hoje em dia no Brasil Hitler foi eleito democraticamente, mas foi um ditador desde o primeiro minuto em que assumiu o poder. A democracia é apenas uma palavra vazia quando no espírito de um sujeito - ou no de muitos partidos, como no caso brasileiro, - prospere apenas o desejo de escravizar mentalmente todos os cidadãos do país. O livro inclui um posfácio de Alberto Dines (que eu confesso não ter gostado nem um pouco, paciência). Haverá sim mais Joseph Roth por aqui.
[início: 01/08/2015 - fim: 05/08/2015]
"Berlin", Joseph Roth, tradução de José Marcos Macedo, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras / coleção Jornalismo literário), 1a. edição (2006), brochura 14x21 cm., 206 págs., ISBN: 978-85-359-0836-6 [edição original: Joseph Roth in Berlin: Ein Lesebuch für Spaziergänger (Köln: Verlag Kiepenheuer & Witsch) 1996]
Nenhum comentário:
Postar um comentário