sexta-feira, 14 de agosto de 2015

fuga sin fin

O interessante nos bons escritores é que pouco importa quando e como o sujeito inventa e publica suas histórias, elas continuam poderosas e seminais mesmo muitos anos após a morte deles. É o caso desse interessante "Fuga sin fin" de Joseph Roth, de quem já li também "Hotel Savoy" e "A lenda do santo beberrão". Roth é narrador e personagem da história. Seu truque literário é fazer crer que apenas compilou e deu forma ficcional aos apontamentos e memórias de um amigo seu, Franz Tunda, filho de uma próspera família de burgueses austríacos, noivo de uma rica herdeira, militar em serviço do Império Austro-Húngaro e que é feito prisioneiro pelos russos durante a primeira grande guerra. Por mais interessante e movimentada que seja a história de Tunda o que Roth oferece ao leitor é a descrição do esgotamento dos valores e pressupostos da Europa no período entre as duas grandes guerras do século passado. Roth (que publica esse curto romance originalmente em 1927) antecipa as contradições e circunstâncias que iriam gerar o nazismo. Seu personagem,Tunda, após fugir de seus captores, passa muitos meses isolado na Sibéria; assume provisoriamente a identidade de um polonês, Baranowicz; luta pelo exército vermelho durante a Revolução Soviética; incorpora-se na máquina de propaganda soviética (por conta de sua boa educação e facilidade com línguas); enamora-se de duas garotas que também lutam pela revolução. Num dia, ao fazer o papel de guia para um grupo de franceses que inspecionava as instalações petrolíferas de Baku (onde é hoje o Azerbaijão) ele dá-se conta que precisa sair do leste europeu e voltar para seu país (que não mais existe, cabe lembrar). Com esse início poderíamos pensar que tratar-se-ia de uma adaptação da célebre novela de Balzac (O Coronel Chabert), onde acompanhamos a história de um homem que volta das guerras napoleônicas para encontrar na França sua noiva e fortuna tomadas, sua identidade e glória negadas. Mas não. Roth faz Tunda voltar a condição de europeu ocidental, ilustrado, aceito socialmente (ele faz as pazes com um irmão, que tornou-se um respeitado maestro numa cidade do vale do Reno alemão; que conta histórias algo fantasiosas de seu exílio forçado pelas estepes russas; que conversa com seu amigo Joseph Roth nos cafés de Berlim; que discute sobre os valores socialistas e as perspectivas de implantação do comunismo por toda a Europa). Tunda viaja pela Alemanha, mas não se ilude com a propaganda de que ali tudo funciona, tudo é maravilhoso, todos são felizes. Seu destino está ligado a França, pois é lá que mora sua antiga noiva (agora casada) e também uma mulher sedutora e misteriosa que ele conheceu em seus dias em Baku. Em Paris ele experimenta novos encantamentos, novas maravilhas, mas assim como em Berlim ele não acredita naquele mundo de sonhos, prazeres, artificialismos. Tunda, o homem que adota Paris para viver é ainda jovem, pouco mais de trinta anos, mas é alguém sem profissão e sem amor, sem alegria ou esperança, sem ambição ou egoísmo. É um sujeito completamente supérfluo e dispensável, como o é a Europa que surgiu dos escombros da primeira grande guerra. Nas palavras de Tunda, "antes  de tentar conservar essa comunidade europeia de seus sonhos será necessário criá-la". Bom isso acabou acontecendo, após a segunda grande guerra. Mas o que Tunda não sabia é que pouco importa existir um aparato jurídico e social que justifique os valores de uma pretensa comunidade europeia, pois serão sempre os indivíduos, os homens, através de seus atos, votos, ações, os que irão inevitavelmente questionar (e eventualmente destruir) aqueles mesmos valores. Belo livro. 
[início: 06/08/2015 - fim: 07/08/2015]
"Fuga sin fin", Joseph Roth, tradução de Juan Luis Vermal (revisão de José Vivar), Barcelona: Acantilado Editorial, 1a. edição (2003), brochura 13,5x20,5 cm., 167 págs., ISBN: 978-84-96136-00-7 [edição original: Die Flucht ohne Ende (Berlin: Kurt Wolff Verlag) 1927]

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