"Aqui de dentro" é o penúltimo dos livros publicados de Sam Shepard, morto em meados de 2017. O livro foi publicado originalmente no início do ano passado, mas no final do ano, após sua morte, foi publicado o que é considerado seu réquiem autobiográfico, "Spy of the First Person". Um dia destes falo sobre ele aqui. Mas hoje vamos falar de "Aqui de dentro". São 56 registros curtos, mais ou menos autônomos, que vão completando aos poucos um mosaico complexo, um quebra-cabeças que não necessariamente precisa ser finalizado. Um narrador, que facilmente podemos pensar ser um alter ego de Sheppard, parece estar nas altas montanhas "Sangre de Cristo", no Novo México, não muito longe da fronteira com o México. Faz frio, o lugar é remoto, isolado, a solidão preenche o tempo livre de um sujeito/narrador que lembra do pai, de uma namorada do pai que acabou seduzindo-o (e lhe trouxe prazer e aborrecimentos). Lembra de outras namoradas ou ex-mulheres, de seus filhos, de seu ofício de ator, da rotina e do medo. O relacionamento mal resolvido com seu pai e a ex-mulher do pai são contrastantes. Também há ambiguidade no seu relacionamento com uma mulher que o visita, ex-mulher ou ex-namorada, com quem
ainda e possível algum carinho e convivência pacífica. O sujeito é mesmo um ator o tempo todo, fala dos textos que deve ler e talvez produzir, a rotina das locações onde as filmagens são feitas, lugares e ambientes de
vidas provisórias, de gente que aprende a ser nômade e se entranha de despojamento, de desapego. Quando criança ela imaginava poder ser golfista
ou veterinário, como foi possível tornar-se ator? Ele fala da experiência com drogas (há uma passagem no livro envolvendo overdose e fuga que é bem bacana). Cada episódio ou registro termina e começa como no cinema clássico, com fade ins e fade outs, nos quais imagens desaparecem por completo, escurecendo a sala de cinema, antes que outras imagens voltem à tela. Uma garota aparece, tentando chantageá-lo. Sua velha caminhonete e seus cães parecer ser os únicos por quem ele tem algum carinho e respeito. O sujeito se embriaga e sonha, sonhos que parecem realistas demais, complicados demais. Sabe de uma amiga que cometeu suicídio, lamenta-se disto, pensa na morte e no amor. Passado e presente se fundem. E um crime precisa ser desvendado. O livro inclui uma apresentação de Patti Smith, multitalentosa artista americana que o conhecia muito bem. Romance algo teatral, que fala de sentimentos entranhados, que parecem precisar da experiência do leitor para serem devidamente escavados. Vale!
Registro #1278 (romance #337)[início: 19/02/2018 - fim: 21/02/2018]
"Aqui de dentro", Sam Sheppard, tradução de Denise Bottmann, São Paulo: Estação Liberdade, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 208 págs., ISBN: 978-85-7448-286-6 [edição original: The One Inside (New York: Knopf Doubleday Publishing Group) 2017]
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