segunda-feira, 16 de maio de 2011

los enamoramientos

Não há como se aproximar da prosa de Javier Marías e não sofrer um assombro. Dentre aqueles que conheço ele é o escritor vivo que melhor descreve ficcionalmente como operam e agem os homens. Ao mesmo tempo em "Los enamoramientos" ele faz um personagem dizer: '(...) o que ocorre em um romance é o que menos importa, pois nos esquecemos de quase tudo quando terminamos um livro. O interessante são as possiblidades e as idéias que os romances nos inoculam, e que eventualmente nos mostram como é o mundo - e nos mostram com maior nitidez que o fazem os casos reais que vivemos e observamos. Estas possibilidades e idéias é que nos fazem alcançar e valorizar aquilo que realmente é importante e fundamental na vida.' Em seu romance anterior, o monumental "Seu rosto amanhã", Marías descreve aspectos da hipocrisia, manipulação, corrupção e formas de operação do aparelho de repressão institucional, parte considerável da maquinaria do estado moderno, ao qual todos estamos submetidos quase sempre sem consciência alguma. Já "Los enamoramientos" é uma versão privada daquele raciocínio, ou seja, uma espécie de estudo de caso, onde ele descreve como também na vida privada dos homens são a mentira, a inconstância e o interesse objetivo de cada um que dominam todas as relações. Os enamoramentos descritos no livro (enamoramentos entre a narradora e tudo aquilo que ela vê ou sente; enamoramentos entre os personagens principais: Miguel e sua mulher Luisa, Luisa e Javier, melhor amigo de Miguel, Javier e Maria, a narradora; enamoramentos entre cada um de nós e os personagens que representamos) não são planos, não são rasos. Antes são complexos e sutis, reveladores dos câmbios constantes das relações de qualquer natureza entre as pessoas. Os diálogos de Marías ocupam um tempo interno, que refletem as reflexões de cada personagem, que são em geral muito mais longos que a passagem de tempo real. Saber a verdade última das coisas nunca é possível. Marías usa em suas argumentações idéias de dois textos ("Coronel Chabert", de Balzac, e "Os tres mosqueteiros", de Alexandre Dumas), além de explorar as possiblidades de uma passagem do Macbeth, de Shakespeare: "She should have died hereafter; There would have been a time for such a word." Os textos de Balzac e Dumas servem para ilustrar e exemplificar aquilo que acontece na trama inventada por ele, mas também para que os leitores (jovens, no caso de Dumas; já maduros, no caso de Balzac), comparem a memória destes livros, ainda que involuntária, com as reflexões de Marías. Já através de Shakespeare ele discute os possíveis planos temporais em que pode ser dividido um relacionamento (pessoal ou amoroso). O poder do cinema na imaginação de Marías nunca é trivial. Já sua preocupação com os usos e a precisão da linguagem, sua tentativa de apurar a comunicação entre os indivíduos, é genuína e muito bem utilizada na trama. Claro, a ironia, esta camada de verniz mental que utilizamos para nos poupar da mediocridade geral nestes tempos que correm, preenche todo o livro. Os personagens secundários também fazem a festa do leitor. Fiquei feliz em reecontrar neste livro Ruibérriz de Torres, aquele sujeito que no conto "Mala Índole" vê-se enredado em um apuro de vida e morte no interior do México. E também em ler, ainda que brevemente, algumas das bravatas do professor Rico. A passagem em que Maria Dolz ouve trechos da conversa entre Diáz-Varela e Ruibérriz lembra um tanto aquela em que Ranz (no "Corazón tan blanco") conta para sua nora detalhes de sua vida que furtou de contar ao filho (conversa que este filho acaba ouvindo por acaso). O livro é separado em quatro capítulos. Marías usa a estrutura básica da narrativa dramática (introdução, desenvolvimento, clímax e solução), mas faz saber ao leitor que não há solução possível (ou solução possível na vida que cada um de nós vive) que seja mais ou menos verdadeira que qualquer outra. Acrescento um contraponto mais entre "Seu rosto amanhã" e "Los enamoramientos". No primeiro o sofrimento causado à terceiros por nossos atos e palavras (quase sempre palavras, as mais efetivamente cruéis e destruidoras) nunca poderá ser cancelado ou aliviado quando conversamos sobre ele (como se faz na análise por exemplo). Já neste último romance, do sofrimento ou do mal causado à terceiros, por aquilo que sabemos, nenhuma culpa ou punição poderá advir, pois não há testemunhas de nossos pensamentos além de nós mesmos. Bueno, nenhum comentário substitui o prazer em ler "Los enamoramientos". Sensacional mesmo este livro. [início 12/05/2011 - fim 15/05/2011]
"Los enamoramientos", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones) , 1a. edição (2011), brochura 14x23 cm, 401 págs. ISBN: 978-84-204-0713-5 [esta foi oficialmente a 500a. resenha neste blog]

5 comentários:

Luiz Cavalcante disse...

Caro Aguinaldo:

Marías é mesmo espantoso. Hoje, por coincidência, antes de ler seu texto, eu havia acabado de ler o "Corazón tan blanco". Que experiência!

Bem, os meus Marías vou lendo-os aos poucos - e ainda tenho pela frente, além de "Los enamoramientos", também "Mañana en la batalla piensa em mí" e todo o "Tu rostro mañana", dentre algumas coleções de crônicas e ensaios. Material para mais algumas delícias.

Obrigado pelas dicas em relação às encomendas internacionais. Uma hora ou outra vou acabar pedindo alguma coisa, apesar do susto que é o preço do frete.

Abraços.

Andrezza Mansour disse...

Você só lê livros em espanhol?
Adorei o blog, adoro ler..Tenho todos da Danielle Steel, conhece?

Anônimo disse...

Nossa, que excelente ideia essa da reunião pra discutir literatura!! Deve ser sensacional!
Ano passado, influenciados pela teoria da Hst e pela metodologia - discliplinas altamente teóricas - alguns colegas e eu íamos pra o Botequim, ali no Caixeral, discutir sobre as filosofias da vida e ao que aprendíamos nas aulas... é maravilhoso esse tipo de encontro. Troca-se ideias, experiências, enfim. E como o Biasoli então, deve ser o máximo!!

Fiquei pensando agora.... sei que tu tem essas paixões: livros e matemática/ física. Como é pra ti, com conceitos totalmente empíricos e objetivos advindos das ciências exatas, equilibrar as subjetividades intrínsecas à parte das letras? Talvez seja preconceito meu, mas é que sei que o curso que escolhemos meio que nos envolve e "limita". Tanto que agora, depois de 1 ano e meio na hst, não consigo mais pensar matematicamente...

Até mesmo na parte objetiva da hst tenho dificuldade... mas enfim, depois desse texto, fica uma ideia a ser pensada (pelo menos pra mim)

=D

E obrigada por me acompanhar no blog tbm!!

Abraço!

Giovan Ferraz disse...

Uh! Não li todo o post porque me interessei pelo livro e fiquei com medo de saber demais sobre ele antes de ler. Por acaso, este não seria um dos livros que conta com o artifício ficcional conhecido por "Narrativa superficial" tratado por David Lodge em A Arte da Ficção?

Aguinaldo Medici Severino disse...

olá
não sei dizer. nunca li o lodge.
mas o marías é qualquer coisa, menos superficial.
abraços