quarta-feira, 12 de setembro de 2007

velhice


Este é um dos últimos livros de J.M.Coetzee, prêmio Nobel de 2003. Já li vários livros dele e todos são muito interessantes mesmo. Este "Hombre Lento" não foge a regra. A ação se passa na Austrália. O enredo parte de um acidente bobo de estrada, em que um ciclista já sexagenário é atropelado por um carro e acaba por perder uma das pernas. Deprimido pelo sofrimento e perda da rotina, durante o processo de recuperação no hospital decide não utilizar uma prótese. Já de volta a sua casa, em uma das sessões de fisioterapia que tem, percebe-se algo apaixonado pela fisioterapeuta que o atende. Esta é uma emigrante croata que já está radicada na Austrália há muitos anos, mãe de três filhos e cujo marido trabalha com mecânica de automóveis. Neste ponto da narrativa (algo próximo da primeira metade do romance) aparece uma personagem que já se fez presente em vários outros livros de Coetzee: Elisabeth Costello, uma espécie de alter ego do próprio Coetzee. A partir daí o livro demostra a maestria do escritor em manipular as várias camadas (vamos dizer assim) de personagens de ficção. Elisabeth Costello é onisciente como só um autor sabe ser, mas desde o Quixote já estamos acostumados com estes truques narrativos. É um livro instigante, pois discute como nossa economia mental nos prepara para a velhice e para as limitações físicas. Há vários temas que são tratados mais ou menos surperficialmente: o estranhamento daqueles que não estão em sua própria terra natal (o próprio ciclista sexagenário é descendente de franceses e não um australiano autêntico); a função das fotografias (profissão original do ciclista, um colecionador de fotos antigas e raras) em uma sociedade plena de informação; a ambiguidade da experiência amorosa pura e da reflexão sobre esta experiência. Ao final do livro não há exatamente um final, mas sim um reposionamento dos personagens, talvez esperando que a vida real os tire daquela configuração. A companhia das Letras já publicou a tradução para o português (ISBN: 9788535910353).
Hombre Lento, J.M.Coetzee, tradução de Javier Calvo, editorial Nuevas Edicones de Bolsillo, 1a. edição (2007) ISBN: 978-84-8346-1327-2

domingo, 9 de setembro de 2007

minúsculas


Nos anos 80 uma edição do antigo Folhetim, suplemento literário da Folha de São Paulo trazia em letras grandes "I leaf falls on loneliness", mas não escrito assim, na horizontal, mas sim em linhas de um ou dois caracteres, tomando toda a vertical da página de jornal. Havia também parênteses, um número um que lembrava uma letra ele, pontos e vírgulas solitários. Foi uma surpresa visual que naquela época me tomou por completo. "Uma folha cai, solitude", dizia a tradução do Augusto de Campos, também na vertical, ao lado. Que arrebatamento. Desde então sempre tenho um cummings ao lado, pronto para me surpreender. Recentemente um grupo de poetas e tradutores curitibanos resolveu enfrentar o mestre e eis que agora sai este pequeno livro de poemas, em edição bilíngue. São apenas 30 deles, recolhidos desde os mais antigos, de 1922, até os publicados postumamente, em 1983. Em cummings sempre encontramos seus temas mais caros: o amor e a morte, o ritmo do tempo nas estações, as perguntas retóricas, as lembranças e a timidez. As traduções me pareceram muito honestas, em que pese o fato de não serem exatamente literais. Uma das soluções para a tradução de um dos poemas, grafado em minha memória com uma outra balada, causou-me estranheza: eu gosto mais do "isso é meu, disse ele; você é meu, disse ela", enquanto que Adalberto Müller preferiu: "valeu! ele disse; é Meu, ela disse." Bobagens. Este é um reparo bobo. Trata-se de um belo livro de poemas, que encantará todo aquele que ainda não conhece a obra de cummings e trará belas lembranças as fiéis leitores de outros tempos. No prefácio, escrito por um outro poeta curitibano, também participante do grupo de estudos de tradução dos outros três, li uma coisa realmente instigante. Trata-se de uma idéia que explica como cada um de nós foi separado fisicamente da escrita com a invenção da tipografia e de como agora, nestes tempos de tanta interferencia digital entre a idéia de literatura e sua fruição por um hipotético leitor, este mesmo distanciamento novamente se apresenta. Estaremos todos ficando fisicamente equidistantes das palavras a ponto delas ficarem menos fortes e menos caras a nossos corações? Esta é uma cousa para se pensar.
O Tigre de Veludo, e.e.cummings, tradução de Adalberto Müller, Mario Domingues e Maurício Cardoso, editora da UnB, 1a. edição (2007) ISBN: 978-85-230-0948-9

acho melhor não


Esta belíssima edição da Cosac e Naify já assombrava minhas estantes há meses, sem que eu me dignasse a continuar a leitura do ponto em que parei assim que comprei o livro. Acontece que a edição envolvia duas capas literalmente costuradas e folhas que por sua vez deveriam ser separadas por um estilete de plástico que acompanha o livro. Eu havia lido o posfácio de Modesto Carone meses atrás e havia deixado o curto texto da novela de Melville para dias de mais concentração. Eis que este dia apareceu quando meu amigo Luiz-Olyntho mandou-me um e-mail dando conta do quão boa era a leitura do "Bartleby e companhia" de Enrique Vila Matas. Prometi ao Luiz que leria o livro e faria alguns comentários, mas como ler o Vila Matas antes do original Melville? Foi o que fiz nestes dias quentes de feriado. Que livro estupendo. É uma história curta cujo desfecho nós mantem em suspense até o final. O recorrente "Prefiro não fazê-lo" (ou "acho melhor não", na versão de Irene Hirsch) fica nos incomodando (da mesma forma que incomoda o narrador). Pois Bartleby aparece na vida deste narrador, incomodando-o (como de resto a todos a sua volta) e por fim morrendo sem queixas e recriminações, como acontece quase sempre com pessoas cuja vida já ultrapassou toda a sorte de aborrecimentos e que se deixam levar pelo marasmo e destino. O que torna esta curta novela em algo realmente forte é a capacidade de Melville de sintetizar um comportamento limite em rápidos parágrafos, sem nos deixar com alternativas e rotas de fuga mentais. Por que é mesmo que por vezes fugimos dos problemas simplesmente os ignorando, parece nos perguntar Melville. Belo livro, bela edição. Agora vou ter mesmo de enfrentar o Vila Matas e postar algo aqui sobre o natural contraste com esta obra original.
"Bartleby, o Escrivão", Heman Melville, tradução de Irene Hirsch, editora Cosac Naify, 1a. edição (2005) ISBN: 85-7503-446-4

praça mauá


A capa é muito bonita, as indicações da contracapa generosas, os selos discretos do Jabuti e do prêmio Nestlé de literatura reluzindo como excelentes abre alas, mas eu não gostei deste livro. É um romance policial clássico: há um crime e um sujeito ambíguo demais para parecer um bom detetive se apresenta para resolver o problema após uma sucessão de sustos. Este formato funciona com Poirot, com Maigret, com Sherlock Holmes, com Miss Marple, com San Spade (principalmente quando Humphrey Bogart o interpreta) e, é claro neste ano espanhol, com o detetive, gastrônomo e catalão Pepe Carvalho. Claro que este "O Silêncio da Chuva" é bem escrito e tem passagens boas de se ler, mas não há como comparar a irônia e modacidade do Carvalho, por exemplo, com o Espinosa de Garcia-Roza. Os contrastes do Rio de Janeiro que todos conhecemos são bem descritos no livro, ficamos curiosos com os possíveis desfechos, mas eu, bem antes do meio do livro, já havia pensado que o assassino natural do livro seria o sujeito que ao fim é revelado pelo detetive. Isto não é exatamente um problema, mas deixa um travo na boca. As tramas dos romances policiais são sempre rocambolescas e repetitivas mas muito neste livro pareceu-me artificial demais para eu me tornar um viciado em Garcia-Roza como tornei-me do Vazquez Montalbán. Claro que vou dar outras chances ao Garcia-Roza (não sou tão definitivo assim). Há ao menos uma outra meia dúzia de títulos onde o detetive Espinosa se apresenta diretamente do 1o. DP (na praça Mauá) para levantar o tapete das sujeiras cariocas. Vamos acompanhá-lo pois neste que também é o ano dos romances policiais.
O Silêncio da Chuva, Luiz Alfredo Garcia-Roza, editora Companhia das Letras, 3a. edição (2005) ISBN: 85-7164-612-0

inquisição

Conhecia o Pérez-Reverte de ouvir falar, principalmente de um livro chamado "A carta esférica". Isto já faz alguns anos. Depois vi um filme na televisão baseado em um de seus livros de aventuras. Quando vi este "Limpeza de Sangue"na vitrine da livraria argumento resolvi experimentar. Vamos a ver do que se trata, pensei. Pois é um livro para se ler de uma sentada só. O enredo parece já ter sido escrito para ser um dia filmado, as imagens são fortes, a descrição da espanha seiscentista muito rica, as reflexões sobre a natureza da maldade nos homens algo mais que superficiais. De qualquer forma trata-se de um livro que já alcançou tiragens enormes no mundo inteiro. Este em particular é o segundo volume das aventuras do Capitão Alatriste (no cinema foi interpretado por Viggo Mortensen, um dos heróis membros da Sociedade do Anel, da série Senhor dos Anéis, para quem não sabe). Pois o Capitão Alatriste é o tipo do sujeito que a despeito de todas dificuldades salva o dia, a moçinha, mata o vilão bigodudo, graçeja com o cardeal gorducho, corteja a duquesa dos zanzóis. Um modelo de herói para filmes da sessão da tarde. Deixando o cinema de lado, voltemos ao livro. O livro em si deixa-se ler muitas dificuldades. É escrito retrospectivamente por um sujeito que em sua juventude deixou-se prender pelo Santo Ofício e foi torturado, escapando das chamas do auto-de-fé graças a engenhosidade do Capitão Alatriste e de seu lugar-tenente, ninguém menos que o poeta Francisco de Quevedo. Com isto não há climáx possível no livro pois sabemos que nem o narrador, nem o Capitão, nem seu amigo poeta sofreram dano algum, pois no tempo em que o narrador conta sua história já estão envolvidos em outros sucessos em outras terras (Flandres e Sicília, principalmente). Ficamos em suspense apenas no tocante a forma como o garoto será salvo das chamas e como os malvados de plantão serão punidos. De qualquer forma todo aquele interessado em história da Espanha tem neste curto livrinho uma fonte de inspiração para leituras mais consistentes e robustas. Mas do que isto não há muito o que esperar. Vou ainda experimentar o outro livro da série publicado no Brasil, mas não acho que seja muito diferente deste. Veremos.
"Limpeza de Sangue", Arturo Pérez-Reverte, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2007) ISBN: 978-85-359-1023-0