quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

nuvens de algodão

Pedro Fonseca, o tradutor destes poemas, diz em uma curta nota introdutória que neste "Nuvens de algodão" estão reunidos haikus de Abbas Kiorastami. Eu sou o menor dos anões desta paróquia, nada sei de persa, versificação, teorias sobre formas poéticas, métrica, mas prefiro dizer que tratam-se de versos livres, poemas curtos e sintéticos que exploram imagens do dia a dia, contrastam experiências,  aqueles espantos e epifanias que vivenciamos todos, mas nem sempre fruímos adequadamente. Abbas Kiorastami foi um respeitado e premiado cineasta iraniano. Também foi fotógrafo, produtor e roteirista. A edição, bilingüe, não faz menção a fonte original dos 90 poemas nela incluídos, se foram compilados de uma antologia, de uma coletânea, ou cousa que o valha. Paciência. Os poemas gravitam pássaros, insetos, pequenos animais, árvores em flor, lagos, coisas da natureza. Há vezes em que o poeta prescruta o céu, o infinito, as estrelas, noutras vê de longe um vivente em seu labor ou ofício, registra o cotidiano deles, em outras ainda o poeta fala de si, de suas culpas, dos fragmentos de memória que brotam, do ritmo da passagem do tempo e da estações. "Nuvens de algodão" merece dias calmos e tempo livre para ser apreciado devidamente, um leitor não ansioso, estressado, cansado. Enfim, um leitor com capacidade de viajar, de sonhar acordado, de ficar a sós consigo mesmo e um bom livro. Vale! 
Registro #1368 (poesia #104) 
[início 15/12/2018 - fim: 02/01/2019] 
"Nuvens de algodão", Abbas Kiorastami,  tradução de Pedro Fonseca, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #8), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 196 págs., ISBN: 978-85-92649-38-8

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

o homem provisório

Li um bocado de livros de poesia em 2018. Foram onze boas experiências: Ficowski, Britto, Andresen, Tranströmer, Aleixo, Hilst, Portella, Nooteboom, Moura, Medeiros e a Lira Argenta do Mendonça. Mas quando lemos poesia o tempo sempre é processado de uma forma diferente daquele que usamos para ler prosa, ficção, narrativas. Pelo menos isso sinto eu. Sempre leio dois, três, quatro ou mais livros simultaneamente, mas quando tento sobrepor um volume de poesia a um texto em prosa a cousa dificilmente funciona bem. Os poemas parecem cobrar atenção, dedicação plena, prioridade, forçam releituras cíclicas, devoção. Ao ler poemas sou obrigado a fazer mais desvios, consultar mais vezes os dicionários, experimentar lê-los em voz alta, coisas que nunca faço com livros em prosa. Por conta disto, deixei três ou quatro coleções de poemas que comecei a ler ainda no ano passado para revisitar neste janeiro chuvoso e melancólico. O primeiro destes é "O homem provisório", de  Cássio Pantaleoni, de quem havia lido apenas uns contos, reunidos no "A sede das pedras". São 36 poemas, numa edição bem cuidada da Besouro Box, que inclui interferências gráficas e belas ilustrações (assinadas por Marcos Cena). O narrador dos poemas vive e experimenta o mundo, curioso e algo apaixonado quase sempre, mas não uma paixão definida, por uma musa ou mulher, antes uma paixão pela aventura mesmo que é o enigma da vida. Trata-se de um narrador sensível que não parece sentir-se bem em movimento, parece estar em um balcão, uma varanda, observando o mundo, refletindo, acompanhando de longe os destinos das gentes. Suas viagens são ao infinito interno, à mente. O projeto gráfico do livro aposta num jogo de luz e sombras, jogos que também que são experimentados nos poemas. As imagens e metáforas são felizes. Não há melancolia ou euforia, apenas suspense, inação, tédio, o "Provisório" do título talvez. Interessante. Vale!
Registro #1367 (poesia #103) 
[início: 18/12/2018 - fim: 28/12/2018]
"O homem provisório", Cássio Pantaleoni, Porto Alegre: Edições Besouro Box, 1a. edição (2017), brochura 18x17 cm., 88 págs., ISBN: 978-85-5527-059-8

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

não incentivem o romance

Há duas semanas terminei de ler e fiquei entusiasmado com os ensinamentos de Berardinelli que encontrei em "Direita e esquerda na literatura". Por conta disto resolvi ler um outro livro dele que repousava em meus guardados, o igualmente instigante "Não incentivem o romance". A origem dos ensaios reunidos neste livro é bem variada, na forma e na cronologia. O texto mais antigo é de 1992 e o mais recente de 2005. São nove textos; seis deles correspondem a conferências, dois a ensaios publicados em revistas e o último a uma entrevista publicada em jornal. O livro inclui um índice onomástico, que facilita o leitor a localizar informações sobre um determinado autor em particular (Berardinelli cita dezenas deles). Como li esse e o "Direita e esquerda na literatura" quase simultaneamente devo ter misturado um bocado das conclusões dos ensaios, que de fato podem ser lido separadamente, já que cada um deles ofece ao leitor uma impressão definitiva sobre um assunto, muito embora a leitura do conjunto de quase vinte ensaios somados dos dois livros produza um efeito de compreensão mais robusto de como Berardinelli entende a produção de ficção e de como opera a indústria cultural e a sociedade contemporânea. Como todo intelectual forte sua prosa oferece ao leitor várias sínteses, aforismos que passam habitar nossa memória e que ressurgem de tempos em tempos. Não quero acrescentar muito além do que já registrei sobre seu outro livro. Trata-se de um ensaísta que merece ser lido repetidas vezes, de cada leitura brota um viés diferente, uma abordagem mais clara sobre assuntos complexos e polêmicos. Deve ser divertido assistir suas conferências. De qualquer forma não posso deixar de registrar o quão facilmente se percebe que Berardinelli não tolera sobretudo artificialismos, jargões acadêmicos, a ilusão das teorias literárias, a existência de professores de literatura que não lêem ficção e sim teóricos e outros embusteiros, os "textos de museu ou de laboratório universitário". Ele vergasta Umberto Eco sem dó, identificando-o como um escritor de best-selller medíocre, no mínimo. Lembra muito o estilo cirúrgico de Coetzee em seus ensaios sobre livros, muito embora Berardinelli parece gritar como um bom italiano, enquanto Coetzee apenas sussurra e franze o rosto. Belo livro. Por fim registro que esta edição da Nova Alexandria é bem mais precisa que a da Âyiné, pois sabe informar ao leitor a origem dos ensaios. Os três primeiros "A poesia italiana após 1945", "A narrativa italiana após 1945" e "A ensaística italiana após 1945" correspondem a transcrição de conferências de Berardinelli proferidas na Universidad Autónoma de México, em 1996; "Dante ou Petrarca?, Pasolini ou Calvino? Uma teoria literária nacional", de 2005 e "O best-seller pós-moderno: De O Gattopardo a Stephen King", de 2003, são transcrição de conferências proferidas na Universidade de São Paulo e na Università Roma 3; "Clássicos do romance europeu: de Stendhal a Kafka" e "Não incentivem o romance" foram publicados, respectivamente, na revista de arte Lo Straniero, em 2002 e por uma editora universitária, Liberal Libri, em 1999; "O problema do personagem na narrativa do século XX" é um texto utilizado em uma conferência para professores e estudantes de ensino médio proferida na Itália, em 1992; e por fim,  "Entrevista", foi publicada no jornal Folha de São Paulo, em novembro de 2005. Se cabe ainda uma última citação, destaco sua opinião sobre a criação literária: "Ou ela é uma brincadeira - para crianças grandes - ou ela é nada". Como não concordar com esse ferino romano setentão. Vale! 
Registro #1366 (ensaios #244) 
[início: 03/09/2018 - fim: 08/09/2018]
"Não incentivem o romance e outros ensaios", Afonso Berardinelli, tradução de Doris Nátia Cavallari, Francisco Degani e Patrícia De Cia, organização de Lucia Wataghin, São Paulo: Nova Alexandria / Humanitas Editorial, 1a. edição (2007), brochura 14x21 cm., 206 págs., ISBN: 978-85-7492-168-6 [edição original: várias fontes]

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

la otra cara de la verdad

Donna Leon segue o ritmo das estações em seus romances policiais. Nesse "La otra cara de la verdad" encontramos Veneza no inverno, por vezes coberta de neve, a neve seca que logo após cair vaporiza-se, flutuando sobre as superfícies.  Apesar do excesso em número e da violência das mortes que o comissário Brunetti deve investigar, esse volume gravita questões morais, permitindo aos personagens longas sessões de reflexão sobre as razões de suas escolhas, de seus comportamentos, sobre a natureza perversa e inevitável do homo sapiens. O conte e a contessa Falier, Orazio e Donatella, sogros de Brunetti, mostram-se ser fundamentais para a solução da trama; ele, oferecendo ao comissário informações sobre a mundanidade, o mundo dos negócios e da política, bem como sobre a história de Veneza, história da arte e os hábitos de sua elite, e ela, ainda mais precisa, por revelar-lhe detalhes da vida privada de uma amiga íntima, informações que jamais tramitariam pelos despachos de uma unidade policial.  A trama envolve questões ambientais e de sustentabilidade, os maus hábitos de consumo dos indivíduos, o descarte de substâncias tóxicas e a responsabilidade da máfia italiana e do governo chinês nestes assuntos. Donna Leon faz um paralelo curioso entre a beleza artificial de uma mulher, alcançada por cirurgias plásticas, com a falsa prosperidade das sociedades consumistas. Ao mesmo tempo contrasta nosso mundo contemporâneo com aquele do apogeu da República de Veneza, por meio da arte e das regras sociais. Todavia, o que realmente torna a narrativa relevante são os interregnos entre vários crimes, os momentos em que os personagens debatem, trocam experiências, falam de literatura clássica, de cultura e arte. Donna Leon rouba dos Fastos de Ovídio a estrutura e os motivos para os crimes, enquanto Brunetti lembra de seu bom Cícero, de um de seus discursos, onde esse descreve quais são os deveres de um bom cônsul, mas também fala da sutil arte de fugir da verdade sem mentir. Enfim, eis que encontro neste décimo oitavo volume da série dedicada ao comissário Brunetti mais uma honesta e inventiva história de Donna Leon. Vale! 
Registro #1365 (romance policial #79) 
[início: 03/09/2018 - fim: 08/09/2018]
"La otra cara de la verdad" (Brunetti #18), Donna Leon, tradução de Ana Maria de la Fuente, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2011), brochura 12,5x19 cm., 327 págs., ISBN: 978-84-322-5058-3 [edição original: About Face (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2009]

sábado, 19 de janeiro de 2019

kumurõ: banco tukano

Meses atrás, envolvido em uma missão de trabalho, tive a chance de conhecer uma cidadezinha da Amazonia. Por uma daquelas tragédias que definem bem o quê é o Brasil, muito pouco de cultura indígena ou artenato podia ser encontrado na cidade, contrariando minhas expectativas mais pessimistas. Encontrei sim fartos desmatamentos, provas factuais de desperdício de dinheiro público, populações miseráveis e políticos canalhas (a simbiose perfeita que governará esse desgraçado país por mil gerações ainda). Por acaso, ao despachar a bagagem no aeroporto, encontrei esse belo volume, que trata da construção de bancos cerimoniais dos Tukanos, tribo que vive no noroeste brasileiro, nos arredores do Rio Tiquié, que fica perto da fronteira com a Colombia e a Venezuela. Repleto de belas fotografias, o livro registra toda a artesania dos bancos, o processo de entalhe, acabamento e pintura. Como toda nobre arte, cada etapa precisa ser diligentemente executada, desde a retirada das toras na mata, a escolha das ferramentas, os cuidados, as medições, o processo de tingimento, escolha dos corantes e fixadores naturais, a revelação final das pinturas dos grafismos com argila. O livro descreve também a mitologia deste objeto cerimonial, algo de sua história e a forma como a técnica - após um período de quase desaparecimento - voltou a ser praticada e ensinada em oficinas de fabricação, divulgação e comercialização. Esse movimento de apoio foi coordenado pela Federação das Organizações Indiginas do Rio Negro, a FOIRN.  Um leitor curioso encontrará no site da FOIRN  não apenas reproduções das imagens dos bancos e do processo de fabricação, mas também informações sobre o projeto e as parcerias que viabilizam sua continuidade e a comercialização dos bancos (a ONG Instituto Socioambiental é a mais conhecida). O livro inclui também um glossário de termos técnicos e notas sobre a grafia das palavras na língua Tukano. Belo projeto. Vale! 
Registro #1364 (livro de arte # 28) 
[início 11/10/2018 - fim: 13/10/2018] 
"Kumurõ: Banco Tukano", Aloísio Cabalzar, fotografias de rosa Gauditano, São Gabriel da Cachoeira: FOIRN/ISA, 2a. edição (2015), brochura 10x15 cm., 64 págs., ISBN: 978-85-8226-033-3

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

benito cereno

"Benito Cereno" é uma novela que realmente prende o leitor. Trata-se de uma história curta na qual acompanhamos o relato do experiente capitão de um navio baleeiro americano, chamado Amasa Delano, sobre as circunstâncias de seu encontro com um navio negreiro espanhol comandado pelo jovem capitão Benito Cereno. Os sucessos da narrativa acontecem basicamente nas proximidades de uma ilha na extremidade sul do Chile, na costa do Pacífico Sul portanto, no final do século XVIII. Prefiro não contar nada da trama, que se baseia em um duelo psicológico, em como o capitão Delano lentamente compreende os conflitos reais e imaginários do capitão Cereno e as razões para seu errático comportamento e ambivalente boas maneiras. Melville alcança manter o suspense sobre o quê de factual aconteceu ao navio do capitão Cereno antes de aproximar-se da ilha, bem como daquilo que decorre a partir do momento em que os dois ficam juntos no navio negreiro. A história propriamente dita é contada (compreendida talvez seja o termo mais correto para se usar) em pouco menos de doze horas, que é o tempo em o capitão Delano fica a bordo do navio do capitão Cereno. Em umas poucas páginas finais, cerca de um quinto ou um sexto do livro, Melville faz uso literário de relatórios, declarações juramentadas, cartas e transcrições de relatos para sugerir ao leitor os últimos desdobramentos da trama e propor verossimilhança ao que Delano apurou sobre Cereno. Com nossa sensibilidade contemporânea é fácil enquadrar esta novela na categoria de criações politicamente incorretas, discriminatórias, xenófobas, o que seria uma solene bobagem. O método de Delano, quase científico, de sutil observador e capaz de poderosa capacidade de síntese, parece contaminar o leitor, que seguimos a narrativa como se fosse um artigo acadêmico. De resto, Melville sabe provocar no leitor reflexão madura sobre temas complexos. Muito interessante. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing, das quais já li: "Mathilda","Michael Kohlhass", "A ilha de Falesá", "O homem que queria ser rei", "O homem que corrompeu Hadleyburg", "O colóquio dos cachorros", "Stempenyu: O romance judaico", "A lição do mestre", "A pedra de toque", "A briga dos dois Ivans" e "O véu erguido"). Haverá mais das boas novelas da Grua por aqui. Vale!
Registro #1363 (novela #73)
[início: 03/01/2019 - fim: 04/01/2019]
"Benito Cereno", Herman Melville, tradução de Bruno Gambarotto, São Paulo: Grua livros (Coleção a Arte da Novela), 1a. edição (2018), brochura 13x18 cm., 148 págs., ISBN: 978-85-61578-73-2 [edição original: Benito Cereno (New York: Putnam's Magazine) 1855]

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

direita e esquerda na literatura

Alfonso Berardinelli é escritor e crítico literário italiano, nasceu em 1943. Houve um tempo em que foi professor universitário, mas abandonou a cátedra há mais de 20 anos. De qualquer forma seus textos não disfarçam a vocação pedagógica, didática, professoral. Não se trata de um ensaísta que relativize suas opiniões. Em todos os textos encontramos afirmações concretas, pontos de vista que permitem diálogo e eventual contestação, mas nunca desdém, nenhum soa vago, incerto, mal fundamentado. A edição não precisa a época em que foram produzidos, mas acredito que eles devem ter sido retirados de "Casi critici: Dal postmoderno alla mutazione", publicado em 2007 pela "Quaderni Quodlibet", todavia pelas informações do índice esse último parece bem mais extenso, de forma que a edição da Âyiné deve ter pinçado dele apenas o primeiro terço dos ensaios. O assunto é literatura, a definição do que é pós-moderno na literatura e a proposta de um novo termo para definir o que se faz atualmente na ficção, que ele grafa como a "era da mutação". Antes de dedicar-se a esses temas ele define aqueles que são identificados ou se auto intitulam intelectuais, chegando até a classificá-los, com verve e ironia, sarcasmo, deboche até. Apesar de seus exemplos gravitarem o mundo da literatura italiana, as reflexões facilmente podem ser adaptadas a qualquer grupo literário, à literatura de qualquer pais. O livro é dividido em oito capítulos curtos, onde ele se debruça a tópicos mais ou menos autônomos. A linha de chegada é a definição do papel dos escritores neste ocaso da pós-modernidade, a inserção deles em novas vanguardas artísticas. Talvez eu esteja limitando muito ao restringir suas idéias apenas ao mundo da literatura. Berardinelli também faz uso de exemplos pertinentes ao mundo do cinema, das artes plásticas, da musica. Mais que tratar da apreciação estética da literatura ou das teorias acadêmicas que se arvoram explicar os mecanismos de construção poética, Berardinelli fala da recepção das obras literárias, do fenômeno cultural que dá aos leitores, aqueles que de fato lêem, alguma presciência sobre aqueles que não lêem. Todavia esse verniz de alta cultura, quando apenas filtrado pela mídia, professores e intelectuais, quase sempre medíocres, nada mais é que uma triste e cúpida ilusão. Somos enfeitiçados como marinheiros pelas sereias no mar. Perdemos nosso tempo e dinheiro. Nos ensaios faz-se digressões sobre literatura e sociedade, história, filosofia. Ele antes faz perguntas, instiga o leitor a pensar sobre uma miriade de fenômenos: o que é um intelectual; em que medida o público de massa dos grandes eventos culturais mudou seu próprio comportamento; se as escolhas destes indivíduos em relação aos livros são de fato autônomas; se existe relação entre a participação ou acesso a estímulos culturais e a capacidade de assimilar as informações propaladas neles; sobre quantos de fato têm tempo e hábito de ler livros. Berardinelli escreve certamente antes da hegemonia das redes sociais na psique humana, mas de alguma forma antecipa tendências e fatos. Cousas como a extraordinária proporção de autores dentre os leitores, a existência de escritores que não lêem, e a própria idéia de que qualquer pessoa pode escrever seu livro (aprendendo técnicas em oficinas literárias) tem algo de vulgar. O número de leitores nunca cresce, jamais cresceu de forma significativa. Esse livro complementa um que li há décadas, o bom "Livros demais", do Gabriel Zaid, que trata dos milhares de livros que são publicados por dia. Ri um bocado das diatribes de Berardinelli dirigidas aos filósofos metafísicos; às patotas de auto-ajuda literárias;  à cumplicidade tola entre editores ambiciosos, jornalistas venais e escritores ruins; a vã esperança que a industria cultural parece ter na literatura; a inutilidade quase criminosa que é o oficio de ensinar e entediar estudantes com literatura. Gostei tanto deste volume que já li um outro livro dele editado no Brasil, mas isso fica para um outro registro. Vale!
Registro #1362 (crônicas e ensaios #243)
[início 28/12/2018 - fim: 04/01/2019]
"Esquerda e direita na literatura", Alfonso Berardinelli,
 tradução de Pedro Fonseca, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #11), 1a. edição (2016), brochura 10,5x15 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-92649-11-1 [edição original: ???]

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

sobre a frança

A edição indica 1941 como a data de finalização deste curto texto, mas isso pode não ser correto. Trata-se de um ensaio de Emil Cioran, filósofo romeno radicado na França, publicado postumamente (a bem da verdade foi publicado há dez anos, e Cioran já é morto desde 1995). De qualquer forma é um ensaio fragmentado, uma coleção de longos aforismos, no qual são registradas reflexões de um homem que justifica de alguma forma porque abandonará sua língua natal e passará a escrever na língua do país que adotará e no qual viverá mais da metade de sua vida. Portanto, não é algo que possa ser julgado em sua totalidade. Há repetições, óbvios defeitos, e aquela fragilidade típica de quem tateia compreender algo complexo, esboça hipóteses e conclusões. Acrescente-se a isso a explícita arrogância de um sujeito da periferia que vê com olhos mordazes e insolentes a grande cidade que o acolhe, mas que certamente também o assusta e provoca. Hoje, neste inicio do seculo XXI, quase oitenta anos após o registro e quase 25 da morte de Cioran, as camadas de realidade ofuscam ainda mais as verdades que o livro pretende explorar. A França que Cioran descreve está derrotada, pelo nazismo, pela ocupação, por si mesma. Ele faz apontamentos sobre a história e a psique francesa, sobre a força de sua cultura, seus valores, suas fragilidades. Diz que a decadência francesa é tão lógica que não pode espantar um estudioso sério, que as invasões bárbaras que experimentaram os romanos deveriam ter alertado os franceses de seu óbvio destino. Ele fala daquilo que é fecundo na decadência, algo profundo, algo que conquista a imaginação das pessoas. Os ciclos históricos são inevitáveis, tumba e berço fazem parte de um mesmo laço, o fenômeno da decadência é algo natural, algo que precisa ser vivido plenamente, como uma faceta de qualquer civilização e de qualquer indivíduo. Os fragmentos, talvez nunca corrigidos, servem para entendermos como opera a mente de intelectual de calibre, um pensador inventivo, original. "Acomodar-se no cinismo", a resposta que ele se dá retoricamente quando se pergunta sobre o que faria caso fosse francês, serve para qualquer indivíduo neste amargo início de século. Tudo é tedioso, nenhuma ação é possível, talvez o belo e a arte mitiguem um tanto a alma. Abraçar o cinismo talvez tenha sido mesmo o que a França reiteradamente fez após o desenlace da segunda grande guerra. E talvez esse mesmo cinismo tenha provocado as metamorfoses que tornaram a França o quê é hoje, palco de contínuas crises e conflagrações sociais. Se a notária simpatia de Cioran pelo nazismo não é explícita no texto, seu tom não disfarça sua obsessão com a derrota, sobretudo moral, dos franceses, como faz aquele sujeito menor que tenta roubar a glória alcançada por alguém de fato poderoso. No final do ensaio ele abraça o destino decadente da França, aceita-o como também seu, como de qualquer outro imigrante, que um dia também foi seduzido pelo idílico, pela imagem de lar ideal que aquele país parecia emanar. E, aparentemente, continua seduzindo, nenhuma decadência tem prazo de validade afinal de contas, nunca saberemos até que ponto uma civilização se corrompe e se modifica, até o ponto de tornar-se indistinguível. Curioso. Vale!
Registro #1361 (crônicas e ensaios #242)
[início 21/11/2018 - fim: 10/12/2018]
"Sobre a França", Emil Cioran, tradução de Luciana Persice Nogueira, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #03), 1a. edição (2016), brochura 10,5x15 cm., 122 págs., ISBN: 978-85-92649-03-9 [edição original: De la France (Paris: Editions de l'Herne) 2009]

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

la chica de sus sueños

Por supremíssimo e pessoano cansaço deixei de ler Donna Leon. Fiquei um tempo sem pensar nas aventuras de Brunetti e sua turma. Acho que tenho três ou quatro volumes dela já lidos, mas não me animei em registrá-los aqui. A bem da verdade deixei tanto bons livros para trás como outros algo frouxos, uma salada dos diabos. Paciência. "La chica de sus sueños" foi publicado originalmente em 2008. Assim como nos demais volumes que já li desta série, o comissário Brunetti sempre resolve um  ou dois crimes cometidos em sua Veneza fundamental, todavia a narrativa é apenas um subterfúgio para que Donna Leon desvele seu entendimento de algum aspecto condenável da sociedade italiana, algo que não necessariamente seja um mal absoluto, mas que talvez pudesse ser praticado de uma forma diferente (talvez seja exatamente por isso que ela não permite que seus livros sejam traduzidos para o italiano). Trata-se de uma fórmula, óbvio, mas que fórmula! Mulher realmente interessante essa Donna Leon. Neste volume Brunetti precisa investigar a morte de uma garota cigana que aparece morta,. afogada em um dos canais venezianos. A morte da garota só aparece no livro no final do primeiro terço do livro. Digo isso para exemplificar o quão secundário são os crimes para Donna Leon, seu interesse é mesmo sociologia selvagem de sua cidade de adoção, e também do país onde vive. Essa trama inicial - a morte da garota cigana, punguista que sobrevive de pequenos golpes pela cidade - se confunde com outra, que envolve negócios escusos entre a máfia e o filho de um importante ministro italiano. A narrativa aborda questões que hoje, dez anos após a publicação original do livro, mostram-se fundamentais: a questão da legião de imigrantes que chegam à Europa, a banalização das leis italianas, o conflito entre o entendimento comunitário, europeu, e o local, italiano, sobre o quê é realmente importante e necessário, urgente. O Brasil aparece numa nota amarga, como exportador de novelas de gosto popular e duvidosos (culebrones, é o termo espanhol) e também de prostitutas. O inspetor Vianello, braço direito de Brunetti, e a signorina Elettra, eficiente como sempre, o ajudam na solução dos crimes. Outros personagens ganham relevo, algum estofo, um humor inusitado. O romance se define em função das questões morais que apresenta. Não mais digo sobre os sucessos do livro. Vale! 
Registro #1360 (romance policial #78) 
[início: 05/05/2017 - fim: 20/07/2017]
"La chica de sus sueños" (Brunetti #17), Donna Leon, tradução de Ana Maria de la Fuente, Barcelona: Booket (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2013), brochura 12,5x19 cm., 317 págs., ISBN: 978-84-32250-022-4 [edição original: The Girl of His Dreams (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2008]

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

o preto que falava iídiche

Por acaso descobrir e ler "O preto que falava iídiche" foi umas das grandes alegrias que tive em 2018 (já falei disto quando registrei aqui no final do ano passado algo sobre seu bom livro de contos, "Nas águas desta baía há muito tempo"). Pois "O preto que falava iídiche" é um romance especial, bastante inventivo e movimentado. Nei Lopes criou um personagem interessante, Lindonor, o Nozinho da Gamboa, uma espécie de Macunaima carioca, de quem se conta cousas desde seu nascimento até a espécie de transfiguração mítica que experimentará na velhice, nos confins da Africa (se é que ele não morreu de morte matada em algum momento, bem antes desta velhice). O narrador é um advogado carioca, que tornou-se tutor do jovem negro sem pai nem mãe, para impedir que ele fosse enviado ao cárcere. Esse advogado conta causos da vida de Nozinho, quase sempre em um bar, ou também ouve historias fabulosas de terceiros sobre seu protegido. Essas historias se confundem com histórias reais da cidade do Rio de Janeiro e do Brasil no inicio do século passado: a convivência de negros e judeus no centro da cidade, que compartlham o mesmo tipo de marginalização e preconceito, a ascensão da zona do meretrício, a geografia da cidade, a reinvenção do candomblé, a invenção da bateria, do samba, fala sobre o teatro de revistas, o carnaval, a invenção dos sambas-enredo, a destruição do morro do Castelo, a história dos Orixás, a marcha da coluna Prestes, sobre o tráfico negreiro, a especulação imobiliária e expansão da cidade, a semana de arte moderna paulista, a história dos negros nos EUA, a historia do futebol e dos times cariocas, a rivalidade entre Rio de Janeiro e São Paulo, as histórias de negros, muçulmanos e falashas judeus na Africa. Essa miriade de informações gravita o jovem Nozinho, que posto a trabalhar como aprendiz em um armarinho de um proprietário judeu na praça Onze carioca, apaixona-se por Raquel, filha do dono, que acaba sendo exilada na distante Porto Alegre gaúcha, enquanto ele foge para o Irajá carioca, obrigando o herói do livro passar sua vida perseguindo o sonho de reencontrá-la (e até virar argumento em uma peca teatral que teria sido escrita pelo abolicionista José do Patrocínio). Nesta busca ele deambula por lugares onde os judeus brasileiros floresceram: Porto Alegre, São Paulo, Bahia, mas me parece que é a história dos negros na sociedade brasileira que se está sendo melhor contada. De qualquer forma a história que realmente importa é a da busca de um amor perdido. Apesar das muitas citações eruditas a leitura é leve, o texto flui como poucos, ri-se das aventuras do sujeito. Há bons personagens secundários, uns velhinhos divertidos. Adorei a encrenca que Nozinho provoca entre o sofisticado paulista Décio de Almeida Prado e uma importante mãe de santo carioca, Mãe Mocinha. No final do livro se alcança um tom de fábula, um amigo de Nozinho argumenta, num transe mítico, que esse tornou-se uma espécie de imperador da Africa, unindo finalmente suas raízes negras e judaicas, servindo de exemplo, resgatando a importância e valor de todo o povo negro. O narrador confessa que escreveu um livro sobre os sucessos de Nozinho, que reencontrou próspero, protegido de Getulio Vargas nos tempos do Estado Novo, autor velado da Lei de Segurança Nacional, mas esse livro foi rejeitado por várias editoras por um pretenso antissemitismo. Que romance bom. Vou procurar mais cousas deste Nei Lopes. Vale!
Registro #1359 (romance #354)
[início 26/09/2018 - fim: 29/09/2018]
"O preto que falava iídiche", Nei Lopes, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 255 págs., ISBN: 978-85-01-11325-2

domingo, 6 de janeiro de 2019

atlas de la españa imaginaria

Esse "Atlas de la España imaginaria" lembra um tanto o "Dicionário de lugares imaginários", do Alberto Manguel, que nunca registrei aqui, mas que sempre consulto quando quero me divertir com as invenções amalucadas que o povo cria e os escritores imortalizam em mito, em lenda. Llamazares fala de sete pequenas cidades espanholas que estão associadas a ditos populares, a frases feitas, a expressões usadas coloquialmente, mas que brotaram de peças de teatro ou livros antigos, histórias do século de ouro espanhol. As versões originais destas sete crônicas foram publicadas originalmente no jornal La Vanguardia, entre 2004 e 2005. Há algo de mítico, de lenda, de fábula nestes lugares. As sete expressões são: "estar en Babia", "entre Pinto y Valdemoro", "la ínsula de Barataria", "las Batuecas", "todos a una como Fuenteovejuna", "Jauja" e "los cerros de Úbeda". Babia é uma cidade do norte espanhol, da região fronteiriça entre León e Astúrias, lugar para onde antigamente reis e nobres se refugiavam para caçar, tornando a expressão "estar en Babia" metáfora de distração, alheamento. O mesmo pode ser dito de "estar perdido em las Batuecas", que fica na região de Salamanca. Neste caso a distração envolvia mais mistérios, perigos, pois tratava-se de uma região bem mais isolada, pobre, onde apenas havia bosques impenetráveis e mosteiros. Pinto e Valdemoro são cidades da comunidade de Madrid separadas por um pequeno riacho. A expressão "estar entre Pinto e Valdemoro" está associada a indecisão, dúvida ou mesmo ao entorpecimento provocado por drogas ou álcool. Quem já leu Don Quijote deve lembrar de Barataria, a ilha do rio Ebro que foi oferecida como reino a Sancho Pança, prêmio por seus serviços prestados a seu senhor. A peregrinação de Llamazares passa também por Jauja, uma cidadezinha da Andaluzia associada a Cocanha, o lugar mítico do medievo europeu dedicado a fartura, a riqueza, a prazeres sem fim. Ir "a los cerros de Úbeda", que é uma região próxima a Jaén, na Andaluzia, significa perder-se num lugar isolado, perder o o fio da meada em uma conversa ou discussão. Por fim Llamazares fala de "Fuenteovejuna", que é uma peça de Lope de Vega onde se discute responsabilidades morais individuais e coletivas, e cuja ação se dá na cidade de Fuente Obejuna, na região de Córdoba, também na Andaluzia. Além das narrativas de Llamazares sobre os sete povoados reais que inspiraram as sete expressões linguísticas, o livro inclui ilustrações, assinadas por Diego de las Heras, e fotografias, de José Manuel Navia. Esses três registros não parecem funcionar muito bem juntos. As fotografias são bonitas e expressivas, mas excessivamente conceituais, dificilmente um neófito da geografia e história daqueles lugares os identificaria com os lugares ou frases. Já as ilustrações lembram aquelas de livros de contos de fada, são ingênuas demais. Paciência. O texto salva o livro, pois Llamazares alcança oferecer ao leitor o resultado de suas conversas com as pessoas das cidadezinhas, revelar algo da passagem do tempo, que provoca metamorfoses na geografia, na memória, na imaginação e na própria linguagem. Vale!
Registro #1358 (crônicas e ensaios #241)
[início 26/11/2018 - fim: 28/11/2018]
"Atlas de la España imaginaria", Julio Llamazares, Madrid: Nordica Livros, 1a. edição (2015), capa-dura 15x21 cm., 120 págs., ISBN: 978-84-16440-27-6

sábado, 5 de janeiro de 2019

sushi: sabor milenar

No início da primavera do ano passado, dois amigos queridos, a Derany e o Laerte, falaram-me com entusiasmo de alguns livros que haviam lido, frutos de suas peregrinações gastronômicas e de aprendizado. Curioso, encomendei três deles. Um veio de um sebo mineiro, outro de um sebo paulista e o último de um sebo de João Pessoa. Hoje vou falar sobre o que veio de Belo Horizonte: "Sushi: sabor milenar", de Sérgio Neville Holzmann. Trata-se de um volume pequeno, no formato 14x17, ilustrado com fotografias de Claudio Wakahara e repleto de mimos: um bom glossário, sugestões de leituras, notas com explicações detalhadas. Holzmann é um empresário que tornou-se também escritor (já publicou dois romances). Talvez por conta de suas viagens e dos longos períodos em que viveu fora do Brasil, tornou-se especialista em gastronomia, apreciador da boa comida, sobretudo a japonesa. Seu livro é didático, indicado para quem procura refinamento e conhecimento, mas que também oferece informações bastante úteis às pessoas já familiarizadas com a nobre arte da cozinha japonesa. O livro é bem escrito e dosa bem o relato de experiências pessoais com o ensino da técnica e a descrição objetiva de alguns pratos (muito embora não se trate de um livro de receitas). "Sushi: sabor milenar" é um volume dedicado apenas ao sushi e o sashimi, não é exaustivo, sobre toda a culinária japonesa, todavia é bastante completo, pois inclui um universo de experiências. Sempre há algo novo para aprender, parece nos ensinar o autor. Os curtos capítulos são temáticos, superpondo história e sociologia, psicologia e arte, etiqueta e aforismos, algo de filologia, técnicas e sugestões descompromissadas. Holzmann é detalhista. Elenca uma miríade de informações que dificilmente encontraríamos num livro mais simples. Em um dos capítulos ele lista uma centena de peixes e frutos do mar, informando as denominações mais comuns em japonês, português e inglês. Além de falar sobre sushi e sashimi ele também informa sobre o ritual correto das degustações, algo sobre as bebidas mais apropriadas a serem apreciadas, sobre o arroz, os temperos e especiarias utilizadas no preparo do sushi. O livro é bem humorado. Holzmann parece ter uma das grandes qualidades apreciadas pelos japoneses, a capacidade de ser generoso, de compartilhar seu conhecimento, sem medo de ensinar o que sabe bem. Deve ser um sujeito divertido à mesa, bom companheiro de viagens, aquele tipo de pessoa que encanta qualquer jantar. Kampai, don Holzmann, kampai.Vale!
Registro #1357 (gastronomia #35)
[início 20/10/2018 - fim: 22/10/2018]
"Sushi: sabor milenar", Sérgio Neville Holzmann, São Paulo: Publifolha (Grupo Folha de São Paulo), 1a. edição (2006), brochura 14,5x17 cm., 180 págs., ISBN: 978-85-7402-754-5

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

com borges

Nesse pequeno livro Alberto Manguel conta algo sobre os dias em que foi um dos leitores de Borges, um daqueles afortunados que puderam privar horas de proximidade com ele. Manguel era jovem, tinha pouco mais de dezesseis anos em 1964 e trabalhava em uma livraria de Buenos Aires. Borges, já cego naquela época, frequentador da livraria, perguntou-lhe um dia se teria tempo livre para ler para ele à noite. Os encontros foram intermitentes, duraram de 1964 e 1968, algumas vezes por semana. Manguel não era o único dos leitores noturnos de Borges, vários outros indivíduos tiveram em algum momento esta função. De qualquer forma  a experiência de conviver com Borges marcou o jovem Manguel, que tornou-se afinal também ele um escritor, alguém que sobretudo escreve e fala de livros, de bibliotecas, de escritores, do gênio humano que se plasma nos livros. Assim, em "Com Borges", o leitor encontra descrições dos encontros, de como Manguel era recebido na casa habitada por Borges, sua mãe nonagenária e uma empregada. Ele fala de seu perene assombro com a memória e a riqueza que brotava dos comentários feitos por seu empregador. Não havia projetos, planos de leitura ou ordem. A cada noite, dependendo do humor do dia, Borges pedia que se lesse um de seus autores favoritos, sobretudo aqueles que aprendeu a amar ainda jovem, quando estudava em Genebra, na Suiça: Kipling, Heine, Virgilio, De Quincey, Novalis, Kafka, Platão, Cioram, Shakespeare. Manguel diz não ter feito naquela época anotações dos encontros, apesar das sugestões de uma tia. O livro alterna dois tipos de registro. Uns em terceira pessoa, outros em primeira pessoa, algo confessionais, como se ele emulasse fragmentos de memórias daqueles dias, mas sabemos que se trata de invenção. Cabe lembrar que Manguel escreveu esse curto ensaio quando tinha já 56 anos. Há passagens líricas e outras divertidas, comentários sobre convenções sociais e a personalidade das pessoas. Borges não tinha paciência com a burrice e fugia de gente obtusa, confiava no acaso dos ordenamentos dos livros nas bibliotecas. Em algum momento Manguel registra aquele que talvez seja um dos maiores ensinamentos de Borges, sempre repetido em seus livros, que felizmente aprendi já há tantos anos: É nosso dever moral sermos felizes e a felicidade pode sim ser encontrada nos livros. Belo livro. Vale!
Registro #1356 (perfis e relatos #86)
[início 10/12/2018 - fim: 11/12/2018]
"Com Borges", Alberto Manguel, tradução de Priscila Catão, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #03), 1a. edição (2018), brochura 12x18 cm., 72 págs., ISBN: 978-85-92649-31-9 [edição original: With Borges (Madison: Thomas Allen Publishers / University of Wisconsin) 2004]

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

las cuevas del orotava

Há livros que compramos e que ficam nos guardados, nos acompanhando de longe, anos a fio, antes que seja possível nos dedicarmos verdadeiramente a eles. Comprei esse volume em uma da viagens que fiz a Barcelona para ver Helga e Natália, tempos atrás, há pelo menos um lustro, cinco anos, diria um espanhol com mais facilidade do que nós, mas que existe no léxico português e também funciona bem. Trata-se de um registro produzido em 2004 em homenagem aos 75 anos de um restaurante que fez história em Barcelona, o "Orotava", mas que logo depois deixaria de funcionar. Fundado em 1929, em seu apogeu foi respeitado tanto pela gastronomia quanto por ser um local de encanto, de encontros, de arte, de tertúlias memoráveis. Era ponto de encontro de escritores e artistas plásticos e seu proprietário, José Maria Luna, era um entusiasta das artes plásticas e tornou seu restaurante uma espécie de galeria informal. Durante o período da ditadura franquista o restaurante foi obrigado a mudar de nome (chamou-se El Hostalillo, pois o catalão estava proibido oficialmente).  Em 1979, novamente com sua denominação original, já na redemocratização espanhola e para os festejos do cinquentenário do restaurante, seus proprietários produziram um livro arte, uma espécie de catálogo ilustrado de seu famoso cardápio. Não se tratavam de ilustrações ordinárias, comuns, e sim obras de arte produzidas especialmente para a ocasião, obras de artistas identificados com a Catalunha naquela época, como Llorens Artigas, Salvador Dalí, Jorge Castillo, Josep Maria Subirachs, Eduardo Arroyo, Salvador Espriu, Modest Cuixat, Montserrat Guriol, Pablo Picasso, Joan Tharrats, Alfonso  Pérez Esquivel, Antoni Clavé, Riera Aragó, Antoní Tápies, Oswaldo Guayasamín, Xavier Corberó, Josep Guinovart, Eduardo Chillida, Antonio Vives Fierro, Ràfols Casamada, Joan Miró, Amélia Riera e Benjamín Palencia. Miró produziu também um mosaico, que ainda pode ser visto na fachada do prédio número 335 da carrer Consell de Cent. O livro arte de 1979 foi organizado por Manuel Vázquez Montalbán, um dos grandes escritores catalães do século passado. O livro de 2004 inclui fac-símiles daquele livro arte original,  dezenas de fotografias, assinadas por Toni Catany, e vários textos curtos, produzidos por antigos frequentadores do restaurante. O longo texto de Montalbán se destaca. Segundo os editores trata-se do último texto produzido por ele, que morreu no final de 2003, na Tailândia, antes de ver o livro impresso. Os demais textos incluídos no livro também tem seu encanto. Pois o Orotava encerrou suas atividades em 2005 e as centenas de obras de artes e antiguidades reunidas nele foram leiloadas. Restou esse belo livro que guarda algo da magia que devia acontecer todas as noites em seus salões. Curiosamente o volume que comprei contém uma dedicatória do próprio José Maria Luna, endereçada a Joan Laporta, antigo presidente do Barcelona. Pelo jeito as palavras gentis de Luna na dedicatória, "amb tot el meu reconixement i afecte", não encontraram em Laporta o devido acolhimento. Sorte a minha. Como registrei no último livro que incluí no "Livros que eu li" em 2018, um ano sem voltar a Espanha é um ano perdido, ainda mais se Barcelona, a bela feiticeira do Mediterrâneo, não estiver no roteiro de viagem. Começo assim, com um livro dedicado à Barcelona, minha jornada pelos livros em 2019. Vale!
Registro #1355 (perfis e relatos #85)
[início: 01/06/2018 - fim: 25/11/2018]
"Las cuevas del Orotava: 75 anos de buen comer en Cataluña", Manuel Vázquez Montalbán, Barcelona: Editora Planeta, 1a. edição (2004), capa-dura 30x30 cm, 351 págs. ISBN: 978-84-08-05510-0