quarta-feira, 30 de agosto de 2017

contos da tartaruga dourada

Estão reunidos neste livro os cinco "Contos da Tartaruga Dourada" remanescentes dos escritos produzidos pelo poeta coreano Kim Si-seup, no final do século XV. Essa obra é considerada o primeiro registro de prosa ficcional da literatura coreana. São histórias fantásticas, onde homens e divindades interagem, fantasmas procuram gente solitária ou em crise, onde magia e realidade são registros igualmente válidos, nas quais ensinamentos morais e análise sociológica se fundem, sutilmente. Os fundamentos expressos nos contos brotam do budismo, do confucionismo, do taoismo. A influência é sempre chinesa, dos clássicos chineses, na escrita, nas histórias que se contam e inspiram os personagens, nos mitos, mas o autor se sabe distinto dos chineses, sabe pertencer a um reino especial (Kim Si-seup viveu nos tempos do Grande Rei Sejong, o promulgador do código de escrita do alfabeto coreano). Os contos são escritos sim em prosa, mas há longas seções poéticas neles (talvez um quarto ou um terço do total do livro). A poesia é na verdade o instrumento utilizado pelos personagens quando interagem entre si, nenhuma ideia, nenhum conceito é verbalizado em prosa, quando não fazem reflexões para si mesmos eles expressam seus sentimentos através da poesia. Há um jogo licencioso em quase todas as histórias, uma sexualidade camuflada, um duplo sentido que elide a mecânica do ato sexual. Em geral são deidades femininas que se apresentam a homens, mas há também deuses que ficam curiosos de um destino humano e convocam o vivente para um colóquio divino, honrando neles sempre a sabedoria e a capacidade de expressão poética. Em "Um jogo de varetas no Templo das Mil Fortunas" um rapaz reza e pede a Buda uma noiva; Em "Yi espreita por cima da mureta" um rapaz seduz uma garota que vive encerrada em uma espécie de pavilhão dourado; em "Embriaguez e deleite no Pavilhão do Azul Suspenso" um belo rapaz se embebeda e passa uma noite de sonho com uma "mulher que não faz parte do reino dos homens", frase sempre repetida nas histórias de Si-seup; em "Visita à Terra das Chamas Flutuantes do Sul" um sábio estudioso do confucionismo é convocado para visitar o reino dos mortos e de alguma forma preparado para tomar o lugar daquele rei (lembra o mito de Éaco); e no conto "O banquete esvanecido no Palácio do Fundo das Águas" um outro estudioso é levado a um reino mágico, desta vez como convidado de honra, como se o rei do lugar quisesse mostrar a seus súditos que há sabedoria também no mundo dos homens. O livro inclui uns mimos: curtos ensaios que contextualizam vida e obra do autor e de seu país, a Coreia, uma bela apresentação assinada pelo poeta Nelson Ascher e uma nota explicativa da tradutora, Yun Jung Im, sobre os procedimentos e método que utilizou. Muito interessante.
Registro #1209 (contos #141)
[Início: 11/08/2017 - fim: 16/08/2017]
"Contos da Tartaruga Dourada", Kim Si-seup, tradução de Yun Jung Im, São Paulo: Estação Liberdade, 1a. edição (2017), brochura 13,5x19 cm., 175 págs., ISBN: 978-85-7448-284-2 [edição original: Geumo Shinhwa 금오신화 (Reino das manhãs calmas, Dinastia Joseon, Coreia) séc. XV]

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

múltipla escolha

"Múltipla escolha" é uma espécie de acerto de contas de Alejandro Zambra com o Chile de sua infância e juventude, aquele da ditadura de Augusto Pinochet). Vou classificá-lo aqui como romance na falta de uma definição melhor. É um livro totalmente dispensável, que não vale o esforço de ser lido, nem os trinta e poucos dinheiros que se paga por ele. Lixo puro. Há um jogo irônico entre seu livro e a prova de aptidão verbal chilena, modelo de seleção utilizado para ascensão ao ensino superior de lá, entre 1966 e 2002. Tratava-se de um conjunto de testes de múltipla escolha, progressivamente mais longos e complexos (e ambíguos, e irrelevantes, e amalucados). Mas essa ironia, que explicita a estupidez e mediocridade do governo que patrocinava tal processo seletivo, esgota-se logo no primeiro conjunto de testes. O leitor entende o bizarro da coisa e fica a perguntar-se se não há ao alcance da mão um outro livro para dedicar-se a ler. Claro, Zambra não reutiliza os testes reais das provas, ele cria enunciados, conjuntos de asserções, argumentos, silogismos e pequenos contos, onde se fala algo do Chile daquela época (e certamente também sobre o Chile contemporâneo), mas aquilo que resta a ser decifrado no livro não me convenceu nem um pouco. Paciência. Seu livro anterior, de contos, "mis documentos", que é de 2014, já tinha me aborrecido um pouco; seu segundo  romance "la vida privada de los árboles", de 2007, era um tédio só; "bonsai", de 2006 e "formas de volver a casa" de 2011, defendem-se bem, mas não são nenhum portento. O livro dele que mais me interessou foi "no leer", de 2012, ensaios poderosos sobre literatura e arte, talvez essa seja mesmo sua boa vocação. Vou esperar um bocado antes de procurar alguma coisa nova dele. E segue o baile, a "Múltipla escolha" só resta ser esquecido em alguma esquina, para que tenha melhor sorte com um outro leitor, um leitor mais generoso do que eu posso ser.
Registro #1208 (romance #325)
[início: 22/07/2017 - fim: 01/08/2017]
"Múltipla escolha", Alejandro Zambra, tradução de Miguel Del Castillo, São Paulo: Editora Planeta, 1a. edição (2017), brochura 15x22,5 cm., 112 págs., ISBN: 978-85-422-0829-0 [edição original: Facsímil (Ñuñoa/Santiago/Chile: Editorial Hueders) 2015]

sábado, 26 de agosto de 2017

na ilha de falesá

Depois de ler os relatos de Stevenson sobre as viagens solitárias e as Cévennes, eis que encontrei essa sua história de aventuras dos mares do sul. O enredo lembra um tanto o fundamental "Coração das Trevas", mas não ele não alcança o tom trágico da história de Joseph Conrad, muito embora faça uma potente descrição do encontro de civilizações partindo do comportamento e escolhas de homens comuns (as "civilizações", lembremos, são apenas abstrações que inventamos para poder definir com algum apuro aquilo que lembramos da história de nós mesmos). Stevenson narra a chegada de um sujeito (Wiltshire) que assume um entreposto comercial em uma remota ilha do Oceano Índico (certamente um lugar semelhantes as ilhas Samoa, para onde ele emigrou, em 1888, pouco mais de seis anos antes de morrer). A ideia é vender aos ilhéus quinquilharias em troco da polpa seca dos cocos da região, para que seus contratantes ingleses possam posteriormente extrair deles óleo, um produto de grande valor no século XIX. Wiltshire chega à ilha após a morte de pelo menos três outros homens antes dele, mortes por loucura, doenças inexplicáveis ou suicídio. Trata-se de um mundo corrompido por missionários, padres, religiosos e agentes coloniais (da Inglaterra, Holanda, França, Alemanha, que competem entre si). Sem saber exatamente os costumes do lugar ele descobre-se estar sob a marca de mau olhado, uma proibição tribal, que impede que os ilhéus façam negócios com ele. Com engenho, diplomacia, alguma violência e arte ele descobre a origem das intrigas que fizeram com que ele fosse hostilizado desde sua chegada. A narrativa que se conta é retrospectiva. Já sabemos, no início do livro, que é um velho Wiltshire quem conta os sucessos desta fase remota de sua vida, de como não conseguiu jamais retornar a Londres, abrir uma taverna como planejava, tornando-se um velho das colônias, criando filhas mestiças, que imagina ser possível casar com homens brancos. Há uma não disfarçada melancolia neste final. Se pessoas como ele não forem para o inferno, filosofa ele, é porque o inferno não existe. Interessante. Esse livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing, das quais já li: "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre", "O colóquio dos cachorros", "Michael Kohlhass", "O véu erguido", "O homem que corrompeu Hadleyburg", "O homem que queria ser rei", "A pedra de toque" e "Stempenyu: um romance judaico"). Vale.
Registro #1207 (novela #69)
[início: 05/06/2017 - fim: 01/08/2017]
"Na ilha de Falesá", Robert Louis Stevenson, tradução de Bernardo Ajzenberg, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2017), brochura 13x18 cm., 136 págs., ISBN: 978-85-61578-62-6 [edição original: (London: The Illustrated London News) 1892]

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

dias de feira

Ganhei esse "Dias de feira" de don Renato Cohen, amigo dos bons. São textos curtos, crônicas que brotaram da experiência profissional do autor, Julio Bernardo. Nascido em 1973 ele acompanhou desde pequeno os pais em feiras livres pela região da Lapa, em São Paulo, e também, já como feirante independente, nos municípios de Osasco, Cotia e Itapevi. Após a morte do pai, em 1997, Julio trabalhou como chefe de cozinha e DJ por uns dez anos. Depois manteve um blog de critica gastronômica (o botecodojb.blogspot.com) por oito anos, de 2007 a 2015. Aparentemente o blog alcançou grande repercussão e influência, sustentou polêmicas e recebeu centenas de comentários, tanto elogiosos quanto refratários. Todavia Júlio cansou-se das dificuldades, das reações às suas ácidas resenhas e do inevitável tédio que a manutenção deste tipo de trabalho. Atualmente ele mantém no ar suas crônicas gastronômicas no YouTube e começou um outro blog sobre gastronomia, vida noturna de São Paulo e outras insignificâncias, o edificiotristeza, bem mais sereno e reflexivo, senhor de si mesmo, sem se importar com os anônimos detratores, e em parceria com vários colegas de ofício. Mas vamos falar de seu livro. O "Dias de feira" reúne cinquenta crônicas. Eu diria que uma parte pertence ao plano da memória, da historiografia ligeira, do registro documental, mas há uma maioria que me parecem mais próximas ao território da invenção, da criação literária, da licença poética, da imaginação livre. Há verdade no texto, mas uma verdade mascarada, que ilude. Júlio trata do microcosmos das feiras livres, numa sociologia selvagem, confessional. Apresenta ao leitor o funcionamento das feiras, sua organização, suas regras e personagens típicos. Há violência, álcool, drogas, trambiqueiros, presidiários e sexo nas narrativas. E há também nelas humor e sarcasmo de sobra, quase sempre em estalos episódicos, em causos, que poderiam ser recontados rapidamente por qualquer um, como uma piada que se aprende e é incorporada a um repertório pessoal. Quase metade dos textos são curtas e livres biografias de sujeitos emblemáticos da memória afetiva de Júlio: seus pais, seus colegas e funcionários, os amigos de infância e do bairro, Vila Hamburguesa e adjacências, uma nau dos insensatos paulista, ou da Lapa, melhor dizendo. Algo das transformações pelas quais passou esse tipo de negócio está incorporada ao livro. Cabe dizer que as feiras continuam na paisagem paulista (são 120 por dia da semana, umas 900 por mês, não é pouco). Ele não chega a ser saudosista, sabe que a cada período de tempo novas regras, procedimentos, normas de conduta e regulação pública modificam esse oficio. Sujeito interessante. Vale a leitura.
Registro #1206 (cronicas e ensaios #214)
Inicio: 31/07/2017 - fim: 02/08/2017
"Dias de feira", Júlio Bernardo, São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 189 págs., ISBN: 978-85-359-2432-9

terça-feira, 22 de agosto de 2017

morte em terra estrangeira

Depois de ler o nono volume da série de Donna Leon dedicada as aventuras de seu comissário Guido Brunetti ("Nada como ter amigos influentes") resolvi ler preferencialmente os demais na ordem cronológica de sua publicação. O primeiro volume, "Morte no teatro La Fenice", já registrei aqui na semana passada. O segundo é esse "Morte em terra estrangeira". Assim como o anterior não é um romance policial convencional. O texto é longo, as digressões bem variadas e o desfecho não tem nada de heroico e brilhante, antes verossímil e falho, como na vida real costumam ser os desfechos dos crimes e seus desdobramentos mundanos. Brunetti investiga as circunstâncias da morte de um militar americano em Veneza. O que poderia parecer apenas latrocínio mostra-se algo bem mais complexo e sutil. A história envolve questões ambientais; a presença de militares americanos (milhares deles) em território italiano, como num mundo à parte; as diferenças entre o norte e o sul italiano; a influência da máfia na sociedade; os caminhos do dinheiro e do poder. Os detalhes curiosos da vida de um casal de venezianos, o comportamento de seus filhos adolescentes assim como as reflexões sobre as variantes dialetais da população e as regras de convivência entre as classes sociais dão estofo à narrativa puramente policial, de mistério, que se conduz no livro. A geografia da cidade, o labirinto movente suspenso nas águas, é como um personagem a mais na trama. Os diálogos entre os personagens são muito bons e a descrição do clima, da arquitetura e dos estados de espírito dos protagonistas igualmente bem construídas. Sim, haverá mais volumes desta curiosa escritora em breve. Vale.
Registro #1205 (romance policial #61)
[início: 26/07/2017 - fim: 28/07/2017]
"Morte em terra estrangeira (Brunetti #2)", Donna Leon, tradução de Luiz A. de Araújo, São Paulo: Editora Schwarcz (Grupo Companhia das Letras), 1a. edição (2004), brochura 12x18 cm., 339 págs., ISBN: 978-85-359-0585-5 [edição original: Death in a strange country (New York: Harper Collins) 1993]

domingo, 20 de agosto de 2017

fraturas de relações amorosas

Acho que foi o Weaver Lima quem me falou do Cláudio Portella, mas não estou certo. Será que inventei uma amizade entre eles apenas pelo fato de ambos serem de Fortaleza e da mesma geração? Não sei dizer. De qualquer forma, um dia comprei esse "Fraturas de relações amorosas" e deixei-o numa pilha de guardados para ler mais tarde. Esqueci-me do livro, claro, mas reencontrei-o por acaso no mês passado, quando tirei uns dias para só viajar e ler, sem aborrecimentos. Trata-se de uma narrativa experimental, um monólogo teatral, um jogo dramático. Vou identificar o livro aqui nestes registros como romance, mas talvez o Portella o classifique de outra forma. São 417 cantos curtos, numerados em algarismos romanos, onde se faz um censo dos dias do relacionamento entre dois sujeitos, das metamorfoses pelas quais passam seus corpos, das facetas do amor entre eles. O narrador (Felipe) vive amasiado com um travesti, Marcelo, que depois torna-se Cassandra. Entretanto Felipe também vive com uma mulher, Aparecida, com que tem um filho, que em algum momento morrerá. Marcelo não tem ciúme de Aparecida ou das outras mulheres com quem Felipe se relaciona, mas não suporta a ideia de que ele se envolva com um outro travesti. O narrador a quem Portella dá voz não tem pudor, diz como Felipe e Marcelo fazem sexo e amam, afinal sexo e amor são o sal da vida, precisam ser praticados para que a vida tenha sentido. O narrador conta sem medo sua odisseia particular, se desnuda, expõe-se, faz uma autoanálise selvagem de si e de seus atos, garimpa sua memória e a mistura com aquilo que parece inventar. Seu monólogo é uma forma de suportar os desastres desta vida. No livro não há julgamento, cabotinismo, hipocrisia, moralismos bestas. Apenas uma realidade lírica. No mundo selvagem, fragmentado e doido que o Portella nos apresenta, reinam sim o amor e a vontade. Sujeito curioso esse Portella. Há outros livros dele por aí. Vou procurar. 
Registro #1204 (romance #324)
[início: 06/06/2017 - fim: 02/08/2017]
"Fraturas de relações amorosas", Cláudio Portella, Fortaleza: Edições CP, 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 100 págs., ISBN: 978-85-420-0767-1

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

solidão e outras companhias

Com esse seu "Solidão e outras companhias", o jovem jornalista Márwio Câmara foi finalista de um prêmio literário fluminense no ano passado. Recentemente  alcançou ser editado pela boa Oito e meio. São treze contos, quase todos bem curtos, mas suficientemente bem escritos para que Márwio mostre seu domínio do ofício. Os contos gravitam o mundo da cultura, notadamente em suas expressões mundanas, da literatura, da música, do cinema. Todos os narradores, homens ou mulheres, têm ambições literárias, projetos de ficção, refletem sobre o processo e as técnicas de construção dos livros. Num dos contos ("Luz nas pupilas") encontramos uma boa e original variante daquele aforismo de Chuang-Tzu, em que o filósofo se pergunta se sonhou ser uma borboleta ou é afinal uma borboleta que sonha ser homem. Similarmente, todos os contos podem ser lidos como histórias que um autor inventa (histórias que de certa forma acaba descartando, abandonando, por preciosismo) ou fragmentos da vida de um autor que ama a literatura e experimenta na ficção uma espécie de fuga da realidade. As histórias tratam também de relações familiares, do tédio na vida, da educação sentimental, do cotidiano dos jovens universitários que estudam ou tem trabalhos provisórios. Mesmo quando Márwio flerta com clichês (memórias de amantes em Paris, a musa literária travesti, o sexo acrobático, a história ouvida do taxista, o consultório de psicanálise como palco) ele se safa bem e salva muito bem os contos. Ojo, esse é um jovem autor que vale a pena acompanhar. Vale.
Registro #1203 (contos #140)
[inicio: 15/07/2017 - fim: 30/07/2017]
"Solidão e outras companhias", Márwio Câmara, Rio de Janeiro: editora Oito e meio, 1a. edição (2017), brochura 13,5x20,5 cm., 93 págs., ISBN: 978-85-5547-043-1

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

os prazeres dos lugares inóspitos

Esse livro faz parte da boa coleção da Relógio D'Água dedicada a relatos de viagem. Foram publicados já uns quinze volumes, dos quais registrei aqui apenas dois: "Homenagem a Barcelona", de Colm Tóibín, e "Veneza: Um interior", de Javier Marías. Neste estão reunidos dois textos de Robert Louis Stevenson, o conhecido autor de "A ilha do tesouro" e de "O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde". O primeiro texto é o ensaio que dá nome ao livro, "Os prazeres dos lugares inóspitos", publicado originalmente num jornal escocês, em 1874. O segundo é um relato de viagem propriamente dito, "Viagens com uma burra pelas Cévennes", publicado em livro em 1879. Se no ensaio o leitor acompanha reflexões e argumentos teóricos, derivados de experiências de viagem e do entendimento prático da solidão dos viajantes, no segundo encontramos algo menos cerebral, algo muito vívido, já que se tratam das transcrições de um diário de viagem. No ensaio Stevenson propõe um paradoxo estóico: para ele qualquer lugar é suficiente bom para nele habitarmos, mas apenas em uns poucos alcançamos passar horas realmente agradáveis. Ele fala da quase impossibilidade de explicar a alguém o prazer das viagens. Ora é apenas o conforto de uma sombra que marca todo um conjunto de sensações, ora as epifanias chegam por conta de uma paisagem ordinária, comum, dos vapores de uma torta recém preparada, do som difuso do voo dos pássaros, do crespo e sombrio mar ou de nossa imaginação, que teima em provocar associações sem fim entre a paisagem e nosso mundo interior, nosso continuamente mutável estado de espírito. No relato da viagem pela Cévennes, região montanhosa da parte sul do maciço central francês, ao norte de Montpellier, acompanhamos doze dias de aventuras de Stevenson. Ele não era exatamente jovem na época deste passeio, início do outono de 1878 (tinha já quase trinta anos). Cévennes é conhecida por ter sido palco de uma importante rebelião de protestantes calvinistas no início do século XVIII, a dos Camisards. Exatamente por isso boa parte das reflexões de Stevenson contrasta os hábitos católicos e protestantes, assim como a geografia acidentada daquele lugar e de sua Escócia natal. Nos doze dias de viagem, Stevenson percorre cerca de 200 Km, de Le Puy-en-Velay a Saint-Jean-du-Gard, quase sempre rumo ao sul, acompanhado de uma burra, Modestine, que tem um papel relevante nas histórias, dada a inaptidão de Stevenson como condutor de animais. O ambicioso projeto de Stevenson é "uma aventura puramente descomprometida, tal como aquela dos viajantes heroicos dos primórdios", que oferecesse a ele a experiência de "encontrar-me sem saber orientar-me, tão pouco familiarizado com o que me rodeasse como o primeiro homem na terra, qual náufrago explorando um território". Pioneiro do que hoje chamamos de camping selvagem, Stevenson percorre colinas e vales, frequentemente longe dos vilarejos, perde-se e retorna às trilhas do lugar, testa a confiança e desconfiança dos habitantes, pouco acostumados a forasteiros que não fossem vendedores (ele sempre se apresenta como um "autor"). A maioria das noite ele dorme no campo, mesmo quando venta forte ou chove. Em algumas encontra abrigo em estalagens e em um monastério trapista. O registro de Stevenson lembrou-me de dois outros diários de viagem que li recentemente: o de Heine em sua "Viagem ao Harz" e os de Josep Pla, pela catalunha, em seus "Cartas de lejos", "Cinco historias del mar", e pela Itália no "Cartas de Itália". Interessante mesmo.
Registro #1202 (crônicas e ensaios #213)
[início: 25/07/2017 -  fim: 28/07/2017]
"Os prazeres dos lugares inóspitos", Robert Louis Stevenson, tradução de Frederico Pereira, Lisboa: Relógio D'Água Editores (coleção Viagens), 1a. edição (2016), brochura 13x20 cm., 169 págs., ISBN: 978-989-641-651-4 [edição original: On the Enjoyment of Unpleasant Places (Edinburgh: Portfolio) 1874; Travels with a Donkey in the Cévennes 1879]

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

acre

Flanando por São Paulo nestes dias de intervalo entre semestres letivos, eis que soube do lançamento de "Acre", segundo romance de Lucrecia Zappi e um dos primeiros livros editados pela recém fundada todavia, spin-off da cia das letras, digamos assim. A sessão de autógrafos do livro, lá na boa livraria da vila (madalena), foi precedida por um bate papo rápido entre a autora e Michel Laub, autor dos bons "Diário da queda" e Tribunal da quinta-feira. Ele soube perguntar, extrair de Lucrecia algo da gênese do livro, de seu processo inventivo e ambição, deixar a audiência curiosa sobre a narrativa. O livro é curto e se deixa ler com calma. Nele se contrastam questões ambientais e transformações na paisagem urbana; a violência mais natural do campo com aquela que se preferiria fosse invisível numa grande cidade; o tolo cabotinismo da classe média com os ardis de quem acostumou-se com a aspereza da vida; a memória idílica de uma juventude em Santos (uma Santos provinciana dos anos 1980) com a realidade da São Paulo contemporânea, cidade que talvez não tenha mais a capacidade de devorar deserdados sem regurgitar uma grande maioria. Uma sequência de coincidências percorre os capítulos (e se você não gosta de spoilers abandone agora mesmo esse registro): um sujeito volta para São Paulo após quase trinta anos justamente para o apartamento lindeiro ao de um casal que ele conheceu muito bem na juventude; esse sujeito presencia um crime que lhe granjeará uma vantagem indevida na relação com esse casal; sempre há alguém no livro que oportunamente torna-se uma espécie de coro grego, esclarecendo o protagonista do que se passa na trama (no seu drama, afinal). "Acre" é de fato um livro bem escrito, notadamente pela forma de fundir os diálogos no corpo do texto, mas me senti incomodado em vários momentos (e não pelos temas  que surgem na trama, mas sim por uma frouxidão constante que talvez se corrigisse esclarecendo menos, tornando as escolhas dos personagens mais ambíguas, menos previsíveis). Talvez o que o livro mais acertadamente nos lembre é que ninguém fica casado trinta anos impunemente. Ojo, vamos a ver o que essa curiosa autora nos preparará no futuro.
Registro #1201 (romance #323)
[Inicio: 01/08/2017 - fim: 03/08/2017]
"Acre", Lucrecia Zappi, São Paulo: editora Todavia, 1a. edição (2017), brochura 13,5x21 cm., 204 págs., ISBN: 978-85-93828-00-3

sábado, 12 de agosto de 2017

across the land and the water

Os poemas reunidos em "Across the Land and the Water" foram escritos por W.G. Sebald entre 1964 e 2001. Trata-se de um livro de 2008, publicado postumamente, organizado pelo editor Sven Meyer. Estão nele reunidos tanto poemas que já haviam sido incluídos em produções anteriores, como material inédito, hoje depositado nos arquivos Sebald da "Deutsche Literaturarchiv Marbach". Os dois livros de poemas dele que já registrei aqui: o pequeno e belo "Sin contar / Unerzählt", de 2003, e o longo e ambicioso "Del natural / Nacht der Natur", de 1988, não fazem parte desta seleção. Os poemas foram traduzidos, do alemão para o inglês, por Iain Gaibraith. Os quatro conjuntos de poemas (Poemtrees, School Latin, Across the Land and the Water, The Year Before Last) falam de fronteiras, viagens e paisagens, de leituras e registros do passado, do tempo e da memória, de mitos, lendas e tradições alemãs, do conforto da erudição, da experiência do exílio. Alguns destes poemas foram publicados em revistas e jornais anteriormente, mas nunca em livro. É difícil dizer se há um padrão neles (vamos combinar: sou o menor dos anões quando se fala em ler sistematicamente poesia; li esses poemas traduzidos e meu inglês é apenas regular; não se aprende muito das sutilezas de uma proposta poética apenas com a leitura ligeira que meu método de leitura utiliza; como sintetizar quarenta anos de produção poética, considerando que todos nos metamorfoseamos continuamente?). Todavia foi com a inteligência afetiva (em termos proustianos) que me aproximei destes versos. Os 88 poemas deixam-se ler e encantam. Estão distribuídos cronologicamente. Ora o narrador fixa nos versos uma epifania, cerebral ou mágica, ora uma bobagem qualquer, corriqueira, que nós, os não-poetas, nunca somos capazes de sentir, e ver, e escrever, mas entendemos quando lemos, como se fosse algo preso dentro de nós, subitamente revelado. Sempre só e curioso, fala do mundo e de si, congelando o tempo. Os poemas crescem em tamanho ao longo do tempo: os mais antigos são curtos, crípticos; os mais longos acadêmicos, intrincados sim, mas com sutis chaves de leitura. O título, retirado de um dos conjuntos de poemas, provavelmente escrito ainda nos anos 1980, dá conta daquela experiência que temos ao viajar sobretudo em trens, quando a paisagem se movimenta relativamente a nós em grande velocidade, tirando o foco de quase tudo, mas preservando uns pontos de referência, cinzas, verdes e azuis quase sempre, escolhos da vegetação e das águas que cortamos, como o deus Mercúrio corta o ar. O livro inclui um longo apêndice onde as alusões mais crípticas dos poemas são explicadas pelo tradutor. Um leitor verdadeiramente interessado na obra poética de Sebald tem nestas notas farto material de interpretação. Um Ulisses brota de um poema, a memória de umas férias em Marienbad doutro; o passageiro em trânsito vê da janela um mundo que passa veloz e pensa, inventa mundos, faz associações. O mundo mágico de Sebald é elástico, contém multidões whitimanianas, surpreeende sempre o leitor. Num poema, talvez em um erro tipográfico, aparece Saõ Paulo, ao invés de São Paulo, quando ele faz o censo das tribos viajantes de um aeroporto. Saõ Paulo, eh, Saõ Paulo, mas que diabo quer dizer isso?. Quando soube da morte de meu pai, o legítimo Aguinaldo Severino, no último 11 de julho, um domingo aziago, às 21h30min, fiz os preparativos de viagem, levando na bagagem até São Paulo apenas esse Sebald para ler. Logo após o sepultamento, há exatos dois meses, num início de tarde, como agora, 14 horas mais ou menos, do 12 de junho, eu repetia mentalmente, como um mantra, as palavras de Sebald: "Life is beautiful, but my day is truly wrecked".
Registro #1200 (poesia #85)
[início: 19/12/2016 - fim: 11/07/2017]
"Across the Land and the Water: Select poems, 1964-2001", W.G. Sebald, tradução de Iain Galbraith (do alemão para o inglês), London: Penguin Books, 1a. edição (2012), brochura 13x20 cm., 213 págs., ISBN: 978-0-141-04486-6 [edição original: Über das Land und das Wasser. Ausgewählte Gedichte 1964–2001 (München: Carl Hanser Verlag) 2008]

terça-feira, 8 de agosto de 2017

morte no teatro la fenice

Impressionado com a boa prosa de Donna Leon, após ter lido "Nada como ter amigos influentes" resolvi procurar outros livros dela. Encontrei entre tantos seu primeiro livro da série dedicada aos sucessos do comissário Guido Benetti, "Morte no teatro La Fenice". Não é um romance policial convencional, daquele tipo em que um problema é apresentado e rapidamente os passos lógicos da dedução do crime se seguem, com um ou outro pequeno desvio narrativo (ou uma questão política, sociológica, moral ou até mítica). O texto é longo, quase quatrocentas páginas. Donna Leon descreve os estados de humor, fisionomia e caráter dos personagens em detalhe e não se furta fazê-los divagar de quando em quando, abandonando completamente o problema ou crime a ser resolvido. Neste volume o leitor é apresentado a morte de um famoso maestro alemão durante os atos de uma peça no teatro La Fenice, emVeneza (uma joia sereníssima, que vale uma visita se o sujeito está por lá). A geografia da cidade e sua arquitetura dominam o livro. Brunetti cruza várias vezes os canais entre as ilhas da cidade para estabelecer o nexo entre às circunstâncias da morte do sujeito e sua história, que remonta os tempos da ascensão do nazismo, seus casamentos, seus admiradores e detratores. Como usualmente acontece neste tipo de livro, mesmo os suspeitos mais óbvios são afinal suspeitos que devem ser investigados. Brunetti conta com a colaboração de um eficiente médico legista, Rizzardi, o apoio de sua mulher, Paola, uma professora universitária e com a pressão de um cabotino procurador, Patta. Preciso ler mais livros dela para completar esse elenco, mas esse tipo de personagens são caricatos ao limite nos romances policiais. Brunetti não, parece ser um personagem com estofo, com invulgares qualidades morais e habilidades próprias de seu ofício. Ao contrário de seu congênere ficcional, o comissário Montalbano, de Andrea Camilleri, Brunetti nunca se exalta, é cordato e educado, porém firme em suas decisões. O livro aborda muito bem uma questão de gênero, ou melhor, as várias facetas das relações entre homens e mulheres no século XX. Acho que continuarei sim a ler livros desta "grande senhora do crime", como seus editores costumam chamá-la. Logo veremos. 
[início: 08/07/2017 - fim: 13/07/2017]
"Morte no teatro La Fenice (Brunetti #1)", Donna Leon, tradução de Lídia Geer, Lisboa: Planeta Manuscrito (Grupo Planeta), brochura 12,5x19 cm., 365 págs., ISBN: 978-989-657-198-2 [edição original: Death at La Fenice (New York: Harper Collins) 1992]

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

nombre falso

Li uma ou outra cousa do Piglia há muitos anos. Lembro-me sobretudo de "Respiração artificial" e de um livro de ensaios sobre literatura que comecei, mas não cheguei a terminar, "Formas breves". Sei que está nos guardados, mas onde?, ai de mim. Depois que ele morreu, no início deste ano, resolvi procurar novamente seus livros. Encomendei também os volumes dos Diários de Emílio Renzi, sua autobiografia disfarçada, mas como ler esses volumes antes de voltar às primeiras encarnações de Renzi e de Piglia? Encontrei "Nombre Falso" na última feira do livro de Santa Maria, pelas mãos, claro, de don Miguel, lá da Calle Corrientes. Trata-se de contos antigos, produzidos em 1975. A bem da verdade "Nombre falso", que da nome ao livro, é uma novela. O leitor acompanha os sucessos da gênese e descoberta de um raro manuscrito atribuído a Roberto Arlt, importante escritor argentino, da geração imediatamente anterior a de Piglia. Em ritmo de histórias policiais a narrativa homenageia Arlt, misturando trechos realmente inventados por Arlt com pastiches, situações rocambolescas e reflexões sobre o processo de criação literária e o mercado dos livros. Os contos propriamente ditos são cinco. Em "El fin del viaje" acompanhamos um sujeito que viaja de ônibus pelo interior argentino e conversa com mulher, que teria sido cantora de ópera e que aparentemente cometerá suicídio; "El Laucha Benítez cantaba boleros" é uma história de amor e morte entre dois boxeadores; "La caja de vidrio" é o relato de um rapaz aprisionado em uma relação com uma pessoa mais velha, um sedutor que reflete todas as misérias que o rapaz imagina serem dele; em "La loca y el relato del crimen" um jovem repórter de jornal decifra um crime através do entendimento da linguagem de uma mulher perturbada, mas a situação é bizarra demais para ser publicada por seu editor; por fim, em "El precio del amor", uma mulher recebe a visita de um amante, que lhe furta um bibelô junto com a ideia do amor entre ambos. Com uma dessas histórias ("La loca y el relato del crimen"), Piglia ganhou um curioso prêmio literário em 1975: duas passagens para Paris e quinze dias de estadia pagos. Apesar de não ser propriamente um iniciante, pois já havia publicado dois ou três livros antes, esses dias de escritor premiado em Paris deram-lhe a ilusão ou auto estima que faltava para começar a exercer seu ofício com maior disciplina. Todavia, ele ficou boa parte do tempo da viagem com medo de ser desmascarado como escritor medíocre. Sujeito divertido esse.
[início: 14/05/2017 - fim: 05/07/2017]
"Nombre falso", Ricardo Piglia, Buenos Aires: Debolsillo / Random House Mondadori (coleccíon Contemporánea), 1a. edição (2014), brochura 13x19 cm., 184 págs., ISBN: 978-987-566-979-6 [edição original:  Buenos Aires / Argentina: Siglo Veintiuno Editores, 1975]