Claro, fazer um balanço deste 2020 sem falar da pandemia de Covid19 é impossível. Mas primeiro eu vou falar dos livros que li. Nesse blog eu sempre falo mesmo é de mim, de Aguinaldo Medici Severino, do filho do Aguinaldo Severino e da Doña Victória Medici, do velho e cansado Guina, de meu igual Guina Medici, de "me, myself and I", e sempre falo pelo filtro dos livros que eu li ao longo de cada ano, os livros de minhas espraiadas bibliotecas, os livros, meus amigos, meus irmãos. Neste ano produzi registros de leitura de 20 romances, de 12 volumes
de crônicas ou de ensaios, de 16 livros de contos, de 16 de poesias, de 4 romances
policiais, de 6 novelas, de 9 livros de memórias, perfis ou relatos; de 8 livros de arte, de 6 boas peças de teatro e de 17 de outras classes de
divertimentos (catálogos de exposições, gastronomia, música, didáticos, aforismos, turismo, cartuns e mangás, e de livros dedicados ao público infantojuvenil). Fiquei feliz por ter lido quase tanta poesia neste 2020 quanto li em 2019, cousa boa. Li mais livros de arte e menos de gastronomia, li mais ficção, histórias e narrativas inventivas e menos livros de não ficção. Em minha idiossincrática classificação foram 61% de volumes de ficção (69 livros); 21% de não ficção (24 livros) e 18% de variados divertimentos (21 livros). Alcancei 114 novos registros de leitura, completando 1594 desde aquele já distante primeiro de janeiro de 2007, quando inaugurei oficialmente este canal de comunicação. Este número, 114, é exatamente a média dos quatorze anos de leituras (114 livros lidos por ano, 9 por mês, 2 por semana). Está bom para o meu gosto. Mantive minha cota de livros em espanhol, 28 deles, exatamente um quarto, e também 7% de livros em inglês (portanto, os demais 68% foram lidos no meu costumeiro e familiar português). Em 2021, provavelmente, alcançarei alguns números mágicos: 200 livros de contos, 400 romances, 300 livros de ensaios ou crônicas, 150 livros de poesia e os 1600 registros, que não quis alcançar neste 2020 por puro cansaço, um esgotamento temático (vou explorar melhor esse tema no ano que vem). Eu deveria terminar esse balanço aqui. Todavia, porém, entretanto, não obstante e, como não, apesar disto, agora, vamos a ver como é que é (vamos a ver o que realmente foi importante neste ano). Helga e eu fomos em fevereiro para a África do Sul. Foi uma viagem muito bacana e tive uma miríade experiências boas, sobre as qual já falei um tanto aqui (Clica!). Lá vi uma enorme exposição de William Kentridge, que sei agora valeu por tudo o que não foi possível ver ao longo do ano por conta da pandemia. E sobre a África do Sul aqui mais não digo. Logo após nossa volta ao Brasil a sombra da pandemia era visível demais para ser evitada, mesmo para nós, desgraçados brasileiros, povo mais lorpa do planeta, quase todos escravos mentais de criminosos condenados, mentirosos de todos os matizes e outras espécies de jaguaras. Pois logo após voltarmos ao Brasil, ao saber dos sucessos do Carnaval e do errático início das aulas, exatamente no aziago idos de março tomei a decisão de isolar-me nas terras altas de Itaara. Helga e Natália ficaram no apartamento citadino, com os gatos, e eu, em Itaara. Pareceu uma boa solução naqueles dias de início da pandemia, que falsamente prometiam ser curtos. Acontece (como diz aquele bom Fado), que fiquei quase seis meses por lá, de março a agosto, com poucas interações, conversas ou contatos. Foram dias de introspecção, de uma administrada solidão e logo de chuva, vento e frio, de dias de longas caminhadas, de muitas leituras (ora caóticas, ora sistemáticas). Foram dias de ouvir muita música e descobrir podcasts (dos quais recomendo fortemente o "Agora, agora e mais agora", de Rui Tavares; o Cenáculo, de dois jovens porto-alegrenses: Miguel e Guilherme; o De modo geral (boa invenção do Paulo Scott) e o maravilhoso PodCastizo, que fez-me viajar a Madrid uma vez mais, desta vez conduzido pela sempre querida Mnemósine). Foram também dias de fotografar muitas vezes o céu, acompanhar os arrebóis, as nuvens e os pássaros, de sentir a presença solitária da araucária que seguramente me guardava, ali de perto. Neste período, Helga e Natália trouxeram-me Cappuccio, um pequeno gato, que agora já faz parte de minhas cotidianas alegrias. No 16 de junho, não pude organizar o Bloomsday Santa Maria, como faço desde 1994 aqui, porém participei virtualmente de dois eventos, um produzido em Dublin e outro em São Paulo. No segundo semestre, já de volta à cidade, retomei as aulas de forma remota, mas ninguém jamais será capaz de me convencer da validade pedagógica destas aulas, pois de hipocrisia eu entendo e, ademais, sou velho demais para acreditar em mágica. Paciência. A ignorância é sempre um doce bálsamo, que mitiga as misérias da maioria das gentes. Em novembro, tive um raro privilégio, ser entrevistado por um dos gigantes da
cultura gaúcha, don Sergius Gonzaga. Falamos sobre livros e literatura, sobre arte e ciência, sobre a vida vivida. Foi mesmo uma festa e uma das alegrias mirradas deste ano aziago. Bueno. Em 2021 pretendo recomeçar os registros de leitura. Tantos e tantos projetos já foram baldados por mim mesmo ao longo dos últimos quatorze anos. Vamos a ver o que acontecerá. Só me resta agradecer a companhia que essa melancólica vilegiatura de 2020 proporcionou-me: Canetti e Coetzee, Marías e Pérez-Reverte (que soberbo "Línea de Fuego" ele publicou neste ano), Cave e Coleridge, Tokarczuk e Handke, Schwob e Hughes, Stevens e Busato, Bashô e Issa, Camilleri e Donna Leon, Massao Ohno e Augusto de Campos, Aleixo e Benet, Shakespeare e Hilst, e tantos outros que carregarei comigo para fora deste 2020 e levarei a 2021, sempre em minha memória. Sem eles os dias seriam menores, menos férteis, pouco valorosos, muito tristes, insuportáveis. O espírito deste tempo é algo que só os antropólogos (ou paleontólogos) do século XXV entenderão. O jornalismo nunca mostrou-se tão medíocre e irresponsável. A estupidez parece que encontrou o terreno fértil onde vicejar. Alas! Há pouco fez um ano que morreu Salen, nosso Buda revivido e privado. Já se passaram quatro anos da morte de doña Vic e
três do
primeiro e verdadeiro Guina. Em 2021 organizarei novamente as estantes, os 4 ou 5 mil livros das prateleiras, estantes, nichos, para colocá-los ao alcance da mão e do acaso. Os livros sabem me encontrar por
aí, brotar dos guardados, como sempre acontece. Agora é verão. Verão. William Carlos Williams já nos ensinou, quando é verão nenhuma dúvida é permitida, pois nós somos apenas mortais e sendo mortais devemos desafiar nosso destino. Saúdes para todos e para cada um. Boa sorte. Nos vemos em 2021. E, sempre, Thalatta! Thalatta!
quinta-feira, 31 de dezembro de 2020
terça-feira, 1 de dezembro de 2020
o imperador de sorvete
Nesta antologia, bilíngue, estão reunidos poemas de Wallace Stevens publicados originalmente entre 1923 (quando ele já tinha 43 anos) e 1957 (póstumos, pois ele morreu em 1955). São trinta e seis poemas, sete ou oito deles especialmente longos, que são os que mais cativam o leitor. As propostas de Stevens são quase sempre complexas, cerebrais, de uma abstração que confunde e espanta, porém que também nos enfeitiça e encanta. Há muitas reflexões sobre o ofício do poeta, sobre estética, sobre a capacidade de plasmar com palavras conceitos, ideias, a essência última das coisas. "The poem must resist the intelligence / Almost successfully. Ilustration: (...)", ele diz, no início de Man Carrying Thing. Noutro poema ele lembra que a poesia "Deve ser abstrata, deve mudar, deve dar prazer", mas a organização, seu método, tem algo de campanhas militares, de preparativos para uma guerra. Stevens povoa seus poemas com coisas simples: as cores, os sons, a noite, os rios, as aves, os frutos e árvores, a aurora, o tempo e a velhice. Todavia, a simplicidade das coisas que evocam sua musa é uma ilusão, pois seus poemas sempre cobram do leitor atenção, seja ao rico vocabulário, às imagens e aos jogos sonoros, seja às associações, os contrastes e aos veios de ouro puro e fino de imaginação. Os embates poéticos que aparecem são sempre entre um deus difuso e o homem, eterno e velho fantoche. Lembro de ter lido uma outra versão desta antologia, em meados dos anos 1980 (uma coleção poderosa, que incluía volumes de William Carlos Williams, W.H. Auden, Seamus Heaney, Marianne Moore, Eugenio Montale, Elizabeth Bishop, W.B. Yeats). Paulo Henriques Britto, que já assinava a tradução do livro naquela época, acrescentou novos poemas à antologia original e corrigiu "coisas abomináveis", em suas próprias palavras, que havia feito há quarenta anos. Ele também assina uma apresentação, notas e uma boa discussão sobre seu
projeto de tradução (aprende-se um bocado). Aliás, vale a pena ver essa entrevista feita com ele e seu colega Caetano Galindo, sofre o ofício de Tradução literária. Esse foi uns dos volumes que acompanhou-me em meu exílio pandêmico, lá nas terras altas de Itaara. Como toda boa literatura, ajudou-me a suportar os dias de solidão, de frio, de ensimesmamento, de medo. Depois, já novamente aquerenciado ao apartamento citadino, continuei com ele à mão, relendo os poemas que mais me impressionaram, como este, que transcrevo aqui: "The Planet on the Table: Ariel was glad he had written hist poems. / They were of a remembered time / Or of something seen that he liked. // Other maskings of the sun / Were wasste and welter / And the ripe shrub writhed. // His self and the sun were one / And his poems, although makings of his self, / Were no less making of the sun. // It was not important that they survive. / What mattered was that they should bear / Some lineament or character, / Some affluence, if only half-perceived, In the poverty of theirs words, / Of the palanet of which they were part." (Paulo Henriques Britto traduziu assim: "O planeta na mesa: Ariel gostou de ter escrito seus poemas. / Eram de um tempo relembrado / Ou de algo visto que o agradara. // Outros feitos do sol / Eram a gruta e tumulto / E o arbusto maduro retorcido. // Seu ser e o sol eram um só / E seus poemas, embora feitos de seu ser, / Não eram menos feitos do sol. // Que perdurassem não era importante. / O importante era que portassem / Algum traço ou caráter, // Uma afluência, mesmo quase imperceptível, / Na pobreza de suas palavras, / Do planeta do qual faziam parte"). Vale!
Registro #1594 (poesia #139)
[início: 02/04/2020 - fim: 30/11/2020]
"O imperador de sorvete e outros poemas", Wallace Stevens,
tradução de Paulo Henriques Britto São Paulo: editora Schwarcz (Grupo Penguin Random House / Companhia das Letras), 1a. edição (2020), brochura 14x21 cm., 332 págs., ISBN: 978-85-359-3008-5 [edição original: Stevens: Collected Poetry and Prose (New York: Library of America) 1996 e (New York: Alfred A. Knopf/Doubleday Group/Penguin Random House) 1997]
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