domingo, 28 de agosto de 2016

la provincia del hombre

Cada uma das notas reunidas neste livro tem o poder de provocar assombro no leitor. As reflexões de Elias Canetti dificilmente são óbvias, nunca são platitudes, lugares-comuns, raramente deixam o leitor indiferente ou apático. Não se trata de aforismos (gênero no qual ele foi também um mestre). Antes são apontamentos sobre os fatos de sua época, proto ideias para seus livros, reflexões filosóficas, descrições de mitos e histórias antigas, comentários dos mais variados sobre arte, cultura, religião e sociedade. Canetti manteve por décadas blocos de anotações e deles selecionou o material desse robusto conjunto. Canetti nasceu em 1905, numa região onde hoje é a Bulgária, filho de judeus de origem sefardita. Sua vida é interessante e movimentada demais para ser resumida num registro como esse (o leitor curioso deve procurar a maravilhosa série de seus livros de memórias, como "A língua absolvida", "Uma luz no meu ouvido" e "Jogo de olhos"). Em meados dos anos 1930, ainda radicado na Áustria, ele publicou seu primeiro romance, "Auto-de-fé (Die Blendung)", mas já acalentava o projeto que lhe tomaria mais de vinte e cinco anos, escrever o ensaio "Massa e Poder", um dos fundamentais trabalhos sobre etnologia e sociologia do século XX. E é na Inglaterra, para onde emigra no início de 1938, em que ele escreverá não apenas "Massa e poder", como todos os demais volumes de sua obra, que inclui peças de teatro, ensaios, livros de viagem, biografias e de aforismos. Ele torna-se cidadão inglês nos anos 1950, recebe o prêmio Nobel de literatura em 1981 e morre em 1994. As notas reunidas neste "La provincia del hombre", publicado originalmente em 1973, correspondem às três décadas entre os anos 1942 e 1972. Escritor disciplinado, Canetti decidiu que enquanto não terminasse seu ambicioso projeto (Massa e poder), não se envolveria com nenhum outro livro. A tensão envolvida na produção daquela obra cobrava do autor uma válvula de escape, daí o início das notas destes cadernos. Pensadas originalmente como algo que jamais viria a ser editado e publicado elas exibem liberdade temática e de forma. Segundo ele mesmo diz no curto prefácio do livro o exercício diário de escrevê-las tornou-se indispensável e que uma parte significativa de sua vida, o registro fiel de sua consciência sobre aqueles anos, restava absoluto nelas. Mesmo depois da publicação de Massa e poder, em 1960, e do consequente envolvimento dele em outros projetos literários, as notas continuaram dominando sua rotina. Não há assunto relevante da segunda metade do século XX que não esteja comentado nelas. Há reflexões sobre a guerra e a morte; sobre psicologia e religião; sobre o método científico, o poder das palavras, a filosofia como ferramenta da vida prática, não como doutrina esotérica. Canetti vale-se dos mitos de dezenas de religiões, do que aprende sobre culturas primitivas, do que lê sobre a ciência das bombas atômicas e da conquista do espaço; das leituras de entretenimento; de sua voracidade por significados e pela história do homem. Após os anos terríveis da guerra lentamente surgem temas mundanos: a complexidade das relações afetivas; a amizade; a paternidade; a agitação dos cafés e restaurantes. Ele conta sobre o prazer absoluto que é a leitura e sobre a irrelevância de conceitos como sucesso e fracasso. Há textos longos onde ele descreve arquétipos de comportamento e personalidade (talvez antecipando aquilo que se tornaria o engraçado "Todo-ouvidos: Cinquenta caracteres / Der Ohrenzeuge. Fünfzig Charaktere") e outros bem curtos, onde ele propõe utopias, tipos radicais de sociedade, faz exercícios morais e testa o valor ético de algumas proposições. Em algum momento da leitura lembrei-me daquelas séries de gravuras de Goya (Los Caprichos, Los Desastres da Guerra, Los Disparates). Assim como Goya em suas águas-forte e águas-tinta Canetti nestes apontamentos parece demonstrar que entende completamente o homem que é seu contemporâneo (ou mesmo todo aquele que existiu antes dele), parece ser capaz de descrever cada homem e cada sentimento humano muito mais precisamente que cada um de nós alcançaria fazê-lo. Ao mesmo tempo nos lembra que a verdadeira unidade de uma vida é algo tão entranhado em cada um que nem o mais genial dos biógrafos seria capaz de decifrar uma única vida. Experimente ouvir o próprio Canetti narrando uma das notas incluídas neste "A provincia del hombre", uma sobre Kafka. Incrível [Último registro: Li boa parte deste livro no Acre, em Rio Branco, um lugar improvável, porém real, onde há brasileiros, como eu, já nos ensinou o Mário de Andrade].
[início: 06/08/2016 - fim: 28/08/2016]
"La provincia del hombre: Carnet de notas 1942-1972, Elias Canetti, tradução de Eustaqui Barjau, Madrid: Taurus Ediciones (colección Ensayistas #246) / Penguin Random House Grupo Editorial, 1. edição (1982), brochura 14x21 cm., 336 págs., ISBN: 84-306-1216-5 [edição original: Die Provinz des Menschen: Aufzeichnungen 1941-1972 (Munich: Carl Hanser Verlag) 1973]

sábado, 27 de agosto de 2016

tudo já foi dito

Conheci o Pedro Balboni em Porto Alegre, na última edição do Parada Gráfica, aquela feira de publicações independentes e artes gráficas onde sempre encontramos gente e produções bacanas. Desde 2008 ele produz suas joaninhas filosóficas em tirinhas bem humoradas (e o humor sempre é coisa séria). Atualmente elas são veiculadas em várias mídias (e podem ser acompanhadas no site "João & Joanas"). Curiosamente ele não é desenhista. Usa ferramentas digitais em suas ilustrações, mas seu foco é no roteiro, nas histórias. "Tudo foi dito" é resultado de um projeto. Pedro convidou dezoito jovens artistas plásticos e/ou ilustradores para dividirem uma história sua, que envolve uma conversa entre um mestre Zen e um efebo, um aprendiz. Cada um deles teve direito a ilustrar livremente uma página a partir de umas poucas frases do roteiro original. Nenhum teve acesso ao material produzido pelos demais antes da edição final (assinada pelo Pedro). As propostas são muito variadas. Há muitos desenhos tradicionais, a lápis, cera, grafite ou caneta preta; coisas feitas direto no Photoshop; peças finalizadas com tinta nanquim; originais pintados com tinta guache e posteriormente digitalizados. A cada página o leitor tem uma surpresa e precisa reconstruir parte do nexo da narrativa, pois tudo ali sofre contínuas metamorfoses, de cor, cenário e personagens. A ambientação que quase todos artistas criou gravita o mundo oriental, mas o argumento parece brotar do Tractatus Logico-Philosophicus do Wittgenstein: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar". A edição do livro foi viabilizada por financiamento coletivo (crowdfunding, em português). Interessante.
[início: 06/08/2016 - fim: 23/08/2016]
"Tudo já foi dito ou Minutos de silêncio ou Ensaio para algo bom", Pedro Hutsch Balboni (organizador), ilustrações de Daniele Postoiev, Fex, Yuri Amaral, Jack Paulo Salazar, Pedro Camargo, Guilherme Petreca, Renato Hirata, Fabio Lopes, Camila Mituzani, Herbert Berbert, Cenira Campos, Gustavo Borges, Renata Ribak, Marcio Aurelio Bertoli, Andre Forni, Milton Mastabi Filho, Erick Carges e Douglas Docelino, São Paulo: editora Catarse, 1a. edição (2014), brochura 16x23 cm., 62 págs., ISBN: 978-85-91-47836-1.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

elogio da leitura

Neste pequeno livro encontramos o discurso de aceitação do prêmio Nobel de literatura de 2010, recebido pelo peruano Mario Vargas Llosa. O texto é objetivo e rende homenagens tanto à sensibilidade e a memória afetiva de um escritor emocionado quanto à razão de um intelectual engajado, que sabe de seu papel ao defender opiniões. Vargas Llosa conta rapidamente suas errâncias e seus anos de formação. Ele dá conta de como aprendeu a ler; de suas influências e débitos literários; de seu ideário político; fala dos muitos povos de seu país, de suas variadas línguas e culturas, e de como ali se mesclaram; fala dos desafios, perigos e da complexidade inerente que é a vida no mundo contemporâneo (sobretudo do papel da literatura frente a estes desafios). Como ele mesmo diz: "Sem a literatura seríamos menos conscientes da importância da liberdade para que a vida possa ser vivida e do inferno em que ela se converte quando é controlada por um tirano, uma ideologia ou uma religião. A literatura cria uma fraternidade dentro da diversidade humana e eclipsa as fronteiras erguidas entres os homo sapiens sapiens, seja pela ignorância, seja pelas ideologias, religiões, idiomas ou pela estupidez. A leitura é mais que um entretenimento, mais do que um exercício intelectual que aguça a sensibilidade e desperta o espírito crítico. É uma necessidade imprescindível para a que a civilização continue existindo". Vê-se que ele é mesmo um otimista. Quem viver mais tempo verá se não será a ignorância e a barbárie quem terá a última palavra. O livro inclui também uma transcrição da entrevista que Adam Smith, editor-chefe do site da fundação Nobel (Nobelprize.org) fez com Vargas Llosa ainda na manhã do 7 de outubro de 2010, quando foi anunciado o prêmio. É curta, mas o leitor percebe que o sujeito sabe ser lúcido mesmo quando é pego desprevenido. Vale.
[início - fim: 11/08/2016]
"Elogia da leitura", Mario Vargas Llosa, tradução de Larry Fernandes, Santos: editora Simonsen, 1a. edição (2015), capa-dura 12x18 cm., 48 págs., ISBN: 978-85- [edição original: In praise of reading and fiction (New York: Farrar, Straus and Giroux (Macmillan group) 2011]

domingo, 21 de agosto de 2016

detetive à deriva

Foi o Galindo quem primeiro me falou do Pellanda, dizendo ser ele o bom cronista de sua Curitiba. Procurei por aí e fui garimpando o ouro fino que ele publica (encontrei primeiro o "Nós passaremos em branco", depois "O macaco ornamental" e por fim o "Asas de sereia"). "Detetive à deriva" foi lançado há poucas semanas. Reúne 68 crônicas, quase todas publicadas originalmente no jornal Gazeta do Povo. São crônicas recentes, de 2015, 2014 e 2013. O leitor não precisa ler muitas delas para se enredar nos feitiços do cronista e passar a acompanhar seu olhar e argumentos. Pellanda sabe controlar bem aquela ambiguidade típica das boas crônicas, onde pouco importa a veracidade ou exageros do registro, antes sim a qualidade do narrado, as imagens, alegorias e símiles que o artífice cria. Ele é um sujeito de hábitos, sempre o fiel camareiro de quem trabalha com prazos. Suas crônicas respondem a estímulos, poderiam ser organizadas em séries: há aquilo que se vê do terraço de seu apartamento, na parte central de Curitiba; há os sucessos das caminhadas com a filha pelas ruas, quando a leva para a escola; há o curioso que interage com as esfinges urbanas, os bêbados, drogados, loucos, notívagos e desesperados da cidade; há o escritor que reflete sobre a natureza de seu ofício, seus truques, influências, limites; há o sujeito que herdou uma sutil consciência ecológica, que o faz olhar sempre para árvores, animais ou pássaros; e, mais raramente, há o turista que viaja ou passa férias nas praias de Guaratuba, seja inverno ou verão. Ainda vamos descobrir que o Pellanda é um bruxo da Ébano Pereira que tem alma de poeta, e dos bons.
[início: 11/08/2016 - fim: 19/08/2016]
"Detetive à deriva", Luís Henrique Pellanda, Porto Alegre: Arquipélago editorial (coleção 'A arte da crônica'), 1a. edição (2016), brochura 14x21 cm., 224 págs., ISBN: 978-85-60171-76-7

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

pato macho

Esse pequeno livro assinado por Claudio Ferlauto é muito especial. Trata-se de um registro da aventura que foi editar um jornal alternativo em  Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no início dos anos 1970 (como se trata de um registro sobretudo gráfico, vou marca-lo como "livro de arte"). "Pato macho" foi comercializado em bancas durante um curto período, de 14 de abril a 21 de julho de 1971. Suas quinze edições, em formato tablóide, chegaram a ter uma tiragem de 5.000 exemplares, com os mesmos anunciantes típicos da mídia tradicional da época. Quem tiver interesse sobre a história do jornal pode consultar os textos longos da Aline Strelow (acadêmica especialista no assunto, que já defendeu uma dissertação sobre o tema) ou acessar o conteúdo de todas as edições, que foram digitalizadas e depositadas no acervo do NUPECC (Núcleo de Pesquisa em Ciências da Comunicação da PUCRS). A história é curiosa. Durante o período militar centenas de jornais alternativos, com ou sem apelo humorístico, foram editados no Brasil ("O Pasquim" é de longe o mais conhecido deles), mas o grupo de jornalistas, arquitetos, fotógrafos, artistas plásticos e publicitários que editaram o "Pato macho" talvez tivessem como principal alvo apenas discutir o provincianismo de Porto Alegre, sua paralisia cultural e jogar Simandol, um jogo que vinha encartado no jornal e ensinava os caminhos para sair da cidade. Claro, um ou outro dos depoimentos incluídos neste livro salienta o papel do jornal frente a situação política do país, os desdobramentos terríveis da ditadura militar e os problemas que o jornal teve a partir do terceiro número, com a censura prévia de suas edições. Todavia o que Claudio Ferlauto oferece é uma espécie de instalação, um happening visual e literário, uma galeria de bolso na qual o leitor acessa uma miríade de informações sobre o jornal do qual foi um dos editores e idealizadores. Há depoimentos de mais de uma dezena de antigos colaboradores, reproduções do expediente e das capas das 15 edições do jornal, de entrevistas, cartuns, anúncios, cartazes, layouts de convites, material audiovisual de divulgação e de artigos de outros jornais onde a existência do "Pato macho" repercutiu. Sua abordagem enfatiza o interesse dos não jornalistas do grupo em aspectos semióticos, da teoria da informação, que poderiam (e foram) utilizados na produção do jornal. Ferlauto fala também das influências gráficas do jornal, de seus cartunistas, da ironia que alicerçava o time de colaboradores e inclui um bom conjunto de referências (além de uma divertida seção que ele chama de ficções e esquisitices da web, onde desnuda aquele povo que adora associar seus nomes a alguma glória passada ou falar sobre o que desconhece quase completamente). Parabéns ao Ferlauto, que não vejo há trinta anos, desde o fim daquelas minhas visitas rápidas à Itararé para roubar um café e prosa com a Sibele e o Gilson. Vale. 
[início: 05/08/2016 - 16/08/2016]
"Pato macho #16: Quinze semanas que abalaram a Província", Claudio Ferlauto, São Paulo: editora Rosari / Cachorro louco, 1a. edição (2016), brochura 13,5x17,5 cm., 124 págs., ISBN: 978-85-8050-035-6

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

viva o alegrete

As vinte e uma crônicas curtas de Sergio Faraco reunidas nesse "Viva o Alegrete!" são quase sempre divertidas. São causos que exploram a singularidade absoluta que pode ser o gaúcho em geral (e um alegretense em particular): gente maneirista; zelosa de sua história, tradições, hábitos; afeita à vida no pampa; ainda saudosa dos sucessos da revolução farroupilha. Faraco faz o censo das personalidades do lugar; canta o avô italiano; o advogado tinhoso; o poeta trágico que cometeu suicídio; o louco da aldeia; a garota que foi miss; o primo estudioso; os colegas de um círculo literário; o farmacêutico abobalhado; os imigrantes "turcos"; o pedreiro que em um dia o levou a um circo; o médico que guardava um segredo; o dentista de má fama; o estancieiro assanhado; os frequentadores de um clube social. Ele fala sempre da quase paralisia do lugar, não tem saudades, antes dá conta da sorte de ter saído de lá em tempo. A maioria das histórias tem uma chave cômica, mas há espaço para crônicas sentimentais, que apelam para a memória e falam da rivalidade do Alegrete com a cidade vizinha, Uruguaiana. Divertido. Para se ler ouvindo o Canto Alegretense, claro.
[início - fim: 07/08/2016]
"Viva o Alegrete!: Histórias da fronteira", Sérgio Faraco, Porto Alegre: editora L&PM, 2a. edição, ampliada (2015), brochura 13x20 cm., 104 págs., ISBN: 978-85-254-3280-3 [edição original: 2001]

terça-feira, 16 de agosto de 2016

jeito de matar lagartas

No início do ano passado fui a Salvador, reencontrei o David e a Graça, caminhei pelo Rio Vermelho e conheci "Cine Privê", livro de contos do irmão mais velho do David, o Antonio Carlos Viana. (Digo mais velho mas não estou certo, pois o David parece ter feito um pacto com o diabo, sempre aparenta remoçar ao invés de envelhecer). Realmente fiquei impressionado com os contos do Antonio Viana. O sujeito domina a técnica como poucos e tem uma imaginação dos diabos. "Jeito de matar lagartas" é seu livro de contos mais recente. São vinte e sete histórias, quase todas muito boas. Viana fala das alegrias e da errância da juventude; da ruína da velhice; canta os amores velhos, que se acabam num sopro; fala do tédio que alicerça certas convivências amorosas; apresenta mulheres sós, mas que têm suficiente autoestima e enfrentam a vida sem medo, sem submissão; faz seus personagens habitarem um mundo não exatamente antigo, mas também não corrompido pelos excessos do contemporâneo. Ele nunca se trai (nunca trai seu projeto melhor dizendo), nunca apela a hipocrisia, ou tem compaixão pelo destino de seus personagens. Permanece sempre distante, como um observador discreto que apenas registra o quê vê, ou o cientista que disseca algo meticulosamente. Com duas ou três frases Viana já constrói personalidades complexas, personagens que um mau artífice talvez gastasse muitos parágrafos para descrever. Em seu mundo a vida é miúda; a sexualidade um fardo; as crianças cruéis; a solidão entranhada; o tempo implacável. Vou sim procurar seus livros mais antigos, garimpar mais contos dele. Vale.
[início: 05/08/2016 - 07/08/2016]
"Jeito de matar lagartas", Antonio Carlos Viana, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2015), brochura 14x21 cm., 148 págs., ISBN: 978-85-359-2551-7

sábado, 13 de agosto de 2016

pizzas artesanais

Comprei esse livro e dei de presente de aniversário para doña Jamila, mas não resisti a também ter um exemplar. O livro é assinado por um casal de chefs: Giuseppe Mascoli e Bridget Hugo. As pizzas que eles ensinam a fazer são aquelas que um turista apressado encontra na rede de pizzarias londrina "Franco Manca" por seis ou sete libras. O livro funciona (ao menos experimentei um par de vezes e doña Naty aprovou). A ideia deles é ensinar a fazer pizzas artesanais, em casa, usando uma frigideira de ferro ou um forno a gás. Se o sujeito tem a paciência e o tempo necessários para esperar que os processos químicos dos processos de fermentação da massa e fusão dos tomates aconteçam corretamente a cousa dá certo. Claro, você gostaria de ter um forno romano no seu quintal e galhos de carvalho para aquecê-lo na temperatura certa, mas isso é impossível. Ler o livro é um prazer. Os textos são objetivos, sem filosofias transcendentais e/ou histórias engraçadas. A edição é bacana, super ilustrada e cheia de reproduções fotográficas dos resultados possíveis para as dezenas de receitas de pizzas que contém. O básico é sempre o mais importante. Com planejamento um sujeito aprende a comprar os ingredientes certos e frescos, seguindo o ritmo das estações; a escolher boas farinhas e a preparar a massa adequadamente; a preparar seu próprio molho de tomate; escolher bons queijos; utilizar os óleos e gorduras de boa qualidade. Iniciativa e criatividade ajudam na hora de decidir quais ingredientes utilizar na cobertura das pizzas: salames, pancettas ou linguiças; pimentões, escarolas, brócolis ou cogumelos; queijos fortes ou suaves; anchovas, alcaparras ou azeitonas; vegetais ou legumes; endívias ou berinjelas; manjericão ou alho. Tudo é possível, claro, menos usar coisas doces, chocolates, destruir tudo com ketchup, mostarda ou maionese. A pizza mesmo é só uma boa massa preparada com as próprias mãos, um fresco molho de tomates no ponto certo, azeite de oliva e orégano (talvez alho, talvez um queijo mozzarella, talvez um queijo parmesão ralado, dependendo da região italiana que reivindique a receita ou a história). O resto é inspiração (e silêncio). Os autores contam também a gênese da proposta, que é recente, de 2008 (mas que segue os passos de um outro Franco, o original, que manteve uma pizzaria de inspiração napolitana no distrito de Brixton de onde saiu a primeira Franco Manca. É certo. Aprender a cozinhar bem é sempre uma festa para os sentidos e um exercício que visa antes de tudo proporcionar prazer e alegria aos demais. Vale. Bom divertimento. 
[início: 11/04/2016 - fim: 10/08/2016]
"Pizzas artesanais: Receitas irresistíveis para fazer em casa", Giuseppe Mascoli e Bridget Hugo, tradução de Eric Heneault, São Paulo: Publifolha (Empresa Folha da Manhã), 1a. edição (2015), capa-dura, 19,5x24 cm., 128 págs., ISBN: 978-85-68684-10-8 [edição original: Artisan Pizza (London: Kyle Boooks) 2013]

terça-feira, 9 de agosto de 2016

el bosco

Não se sabe quando exatamente Hieronymus Bosch nasceu (por volta de 1450 é o que se aceita), mas sabe-se que morreu há 500 anos, num 9 de agosto, como hoje. Diz-se que ele nunca saiu de 's-Hertogenbosch, sua cidade natal. Mesmo para quem não associa nome e obra seus quadros e gravuras são bastante conhecidos. Quem os vê um dia guarda sempre forte impressão. Foi o que aconteceu com Cees Nooteboom em 1954 quando esteve pela primeira vez em Madrid e visitou o Museu do Prado. O jovem Nooteboom continuava ali sua errância pelo mundo, desta vez para o mundo das artes plásticas em seus esforços por entender o enigma da luz. Num livro de ensaios que já registrei aqui, Nooteboom não se reconhece exatamente um crítico de artes, mas sabe descrever com muita objetividade e precisão a experiência única, súbita e completa, ao mesmo tempo racional e espiritual, que é recepção e percepção de uma proposta artística. Todo aquele que já tenha visitado o Prado sabe que não se pode eleger dali um único quadro como o melhor, o mais importante, o que inspira mais assombro e admiração. Pois lá o jovem Nooteboom viu Goya e Velázquez, El greco e Zúrbaran, Caravaggio e Botticelli, Tintoretto e Rafael, Picasso e Dali. E viu, claro, aqueles fantásticos e apocalípticos trípticos de Bosch. Sessenta anos depois ele volta com um objetivo ambicioso, começar ali uma série de viagens a museus para celebrar os 500 anos da morte de Bosch, definido por ele como o mais misterioso dos pintores. No Prado ele reencontra "A adoração dos magos", "O jardim das delícias" e "O carro de feno" e no Palácio Real de Madrid ele revê "Cristo carregando a cruz". Mas há, claro, quadros fundamentais de Bosch fora da Espanha. Ele vai até Lisboa (Portugal), no Museu Nacional de Arte Antiga, onde está "As tentações de santo Antônio"; a Ghent (Bélgica), no Museum voor Schone Kunsten, onde revisita "São Jerônimo em oração"; a Rotterdam (Holanda), no Museum Boijmans van Beuningen, onde reencontra "São Cristovão carregando o menino Jesus". Os ensaios são curtos, mas sempre seminais. Há lirismo e poesia em suas descrições. Sua capacidade de associações é sempre muito poderosa. Seus olhos capturam as imagens daquele seu conterrâneo habilidoso e genial, mas seu intelecto sabe que está numa Europa em crise, que novamente parece assombrada, como se mais uma vez (como no 1500 de Bosch) fosse inevitável a possibilidade de um Apocalipse. A edição é muito bem cuidada. A designer (Regine Kaiser) optou por uma solução muito boa: Dada a impossibilidade de poder oferecer num livro a mesma experiência que obtemos quando estamos próximos aos quadros, o livro inclui dezenas de detalhes deles. O leitor acompanha texto e imagens simultaneamente. Quem não tem a vocação para viajar para tantos lugares diferentes como Nooteboom pode aproveitar até 11 de setembro para ir a Madrid e ver a maior exposição de quadros de Bosch já reunida ou fazer apenas uma visita virtual à exposição, muito boa mesmo. Vale a pena conferir. Pois se Bosch está morto, longa vida a Bosch! 
[início: 01/08/2016 - 05/08/2016]
"El Bosco: Un oscuro presentimiento", Cees Nooteboom, tradução de Isabel-Clara Lorda Vidal, Madrid: Ediciones Siruela (coleccíon El ojo del tiempo #90), 1a. edição (2016), capa-dura 21x24 cm., 80 págs., ISBN: 978-84-16638-68-0 [edições originais (simultâneas): Een duister voorgevoel: Reizen naar Jheronimus Bosch (Amsterdam: De Bezige Bij) 2016 e Reisen zu Hieronymus Bosch. Eine düstere Vorahnung (München/Deutshland: Schirmel/Mosel Verlag) 2016]

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

cinco esquinas

Um bom escritor sempre tem a última palavra. Mario Vargas Llosa inventa em seu mais recente romance, "Cinco esquinas", uma sátira divertida sobre o Peru dos anos Fujimori. Seus personagens são reais ou ao menos compartilham o mesmo nome de pessoas reais, mas a narrativa segue as regras da ficção, afinal mesmo a realidade precisa ser algo inventada. A história é conhecida. Em 1990 Vargas Llosa decide concorrer a presidência de seu país, tem a maior fração de votos num primeiro turno mas perde por uma grande margem para Alberto Fujimori no segundo. As advertências que fez durante a campanha se confirmam. Durante dez anos Fujimori torna-se um ditador de fato, destrói a economia, implanta com seu braço direito Vladimiro Montesinos um aparato de repressão sanguinário e corrompe completamente o Peru. Julgado e condenado por vários crimes, cumpre até hoje sua pena de vinte e cinco anos de prisão (pelo menos ficamos sabendo que no Peru existe uma sistema judiciário que funciona). Enquanto isso, em meio a tantos sucessos, Vargas Llosa seguiu sua vida, escreveu vários livros e ganhou vários prêmios, entre eles o Nobel de literatura de 2010. O que se conta em "Cinco esquinas" é rocambolesco, lembra muito um folhetim, uma alegoria sobre um país distante e fantástico, uma sarcástica história de detetives. Ele se esforça por apresentar os diferentes matizes da miséria ética e a degradação de toda a sociedade peruana daquele tempo, mas não há rancor, o tom nunca é panfletário, a violência poucas vezes deixa de ser apenas um conceito terrível que se prefere evitar. Com a exceção de Juan Peineta, um velho recitador de versos, todos os demais personagens do livro são desprezíveis, ou mesquinhos, ou alienados, ou corruptos, ou oportunistas ou simplesmente maus (e há dezenas deles, alguns que apenas acompanhamos por um parágrafo, onde eles nos ajudam a elucidar alguma cousa boba da trama, afinal somos o detetive escondido no livro). Claro, estamos lidando com um autor que domina completamente o seu ofício. Os diálogos são muito bem escritos e as várias técnicas narrativas utilizadas surpreendem pela inventividade. Há uma generosa cota de erotismo em "Cinco esquinas", o sujeito sabe excitar, sem insultar, o leitor (o resultado literário das descrições de sexo sempre é um bom teste para avaliar o quão talentoso é um escritor). O romance não é nem de longe o mais espetacular de Vargas Llosa que já li, mas inegavelmente ele deixa-se ler quase de uma vez só sem aborrecimentos. Vargas Llosa nunca perde o ritmo e a capacidade de surpreender o leitor. Ele utiliza a história do livro, que é parte da história de seu país, sobretudo para enfatizar o nefasto comportamento daqueles jornalistas que, corrompidos pelo poder ou simplesmente vocacionados para o sórdido, achincalham e mentem, usam seus espaços em jornais e revistas, rádios e programas de televisão para destruir qualquer um que se oponha aos desejos de uma pessoa poderosa, de um tiranete de plantão. Funciona durante algum tempo e o custo social é sempre alto, mas acabamos por enxergar cada ator do cenário político de um país, inclusive dentre os jornalistas, sem os véus do embuste e da impostura. Nem é preciso dizer que qualquer brasileiro minimamente inteligente já cansou desse tipo de canalha. Vale.
[início: 02/08/2016 - fim: 03/08/2016]
"Cinco esquinas", Mario Vargas Llosa, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2016), brochura 15x24 cm, 318 págs. ISBN: 978-84-204-1896-4