sexta-feira, 31 de julho de 2015

foe

"Foe" foi publicado originalmente em 1986. Coetzee constrói uma história que brota do "Robinson Crusoe", de Daniel Defoe, publicado em 1719. Não se trata de uma apropriação simplista dos dois conhecidos personagens do folhetim de Defoe: o náufrago Crusoe e o nativo Sexta-Feira (Friday). O que Coetzee faz é muito mais poderoso; exemplifica o que é metalinguagem, metaliteratura; brinca com as divisões clássicas das narrativas de ficção, num romance realmente instigante. Não consigo registrar algo sobre esse livro sem me abster de contar quase tudo de sua trama e desfecho, portanto pare aqui caso não seja o tipo de leitor que goste de antecipações selvagens do enredo de um romance (muito embora eu entenda que saber sua versão da história - principalmente porque todos sabem algo da história original de Dafoe, mesmo sem a terem lido - é apenas um detalhe na construção do romance de Coetzee). São três capítulos e uma espécie de coda (as cinco incríveis páginas finais). No primeiro capítulo acompanhamos a narrativa de uma mulher, Susan Barton. Ela conta para um ouvinte que nunca se manifesta as aventuras pelas quais passou desde que saiu da Inglaterra em busca de sua filha. Ela vive algum tempo no Brasil (em Salvador), embarca de volta a Bristol em um navio português cujos marinheiros se amotinam, matando seu capitão e abandonando-a nas proximidades de uma ilha, onde encontra dois velhos náufragos (um inglês chamado Cruso e um nativo chamado Friday). Após um ano, em que passa frustadamente tentando entendê-los, Susan e os dois são resgatados e levados de volta à Inglaterra. No caminho Cruso morre e ao chegar ela decide contratar os serviços de um escritor para contar sua história na ilha (ela imagina ganhar dinheiro suficiente para enviar o nativo Friday de volta à África - além de ficar famosa). No segundo capítulo o leitor encontra as cartas que Susan escreve para um arredio Sr. Foe. Se no primeiro capítulo é Friday quem não tem voz, nada narra, nunca se manifesta (pois teve sua língua cortada quando garoto), nesse segundo capítulo é Foe quem nunca contesta as indagações de Susan, jamais responde suas cartas ou dirime suas dúvidas sobre o andamento da produção do livro com suas aventuras. Susan e o leitor são apresentados a uma garota que afirma ser sua filha desaparecida, mas ela não a reconhece como tal. Segundo o teor das cartas de Susan Foe parece mais interessado nos detalhes de sua vida no Brasil, mas sobre esse assunto ela é reticente, recusa-se a contar. Susan (sempre acompanhada de Friday) admite que sua capacidade de expressão é limitada, que aquilo que se recorda dos tempos de náufraga talvez seja mesmo pouco para sustentar o interesse dos leitores. No terceiro capítulo Foe e Susan se reencontram (Foe vive escondido, tem problemas legais com as autoridades, relembra que esteve preso). Os dois continuam em seu impasse. A curiosidade de Foe é sobre o passado de Susan, enquanto a essa só os trabalhos de Cruso e sua relação com Friday na ilha interessam. Ambos, cada um a seu modo, tentam fazer Friday aprender a escrever e relatar afinal sua versão da história. Susan se imagina uma Musa a inspirar o escritor. Foe se entende como uma prostituta escravizada pela literatura. Se o livro terminasse assim o leitor ficaria apenas com seus temas mais óbvios: as questões de poder e de linguagem, de identidade e gênero, a questão colonial, o papel da escravidão, do desejo e da liberdade. Mas o leitor encontra ainda um curto quarto capítulo, uma coda final com duas passagens breves (que eu, escravo de minhas associações selvagens, entendo como uma repetição "Dal Segno al Coda" e outra "Da Capo al Coda", como se faz ao lermos uma partitura). Nelas o narrador é obviamente distinto daquele dos três capítulos anteriores. As imagens e o que se apresenta nelas de narrativa lembra as tentativas que o próprio leitor faz quando termina um romance complexo, que exige dele um esforço de imaginação para o entendimento (como se fosse possível ao entendimento construir-se sem racionalizações). São duas passagens belíssimas, que li várias vezes tentando extrair delas algo mais do que o prazer estético. Talvez eu deva empreender um projeto de releitura dos romances de Coetzee, talvez em ordem cronológica desta vez, para ver se aprendo algo mais. Logo veremos. 
[início: 28/07/2015 - fim: 29/07/2015]
"Foe", J. M. Coetzee, tradução de Alejandro García Reyes, Barcelona: editorial Random House Mondadori (Debolsillo - Contemporánea), 2a. edição (2013), brochura 12,5x19cm., 157 págs., ISBN: 978-84-9793-559-3 [edição original: Foe (New York: Viking Press) 1986]

quinta-feira, 30 de julho de 2015

daytripper

Depois de conhecer o impressionante trabalho de Fábio Moon e Gabriel Bá na adaptação de "Dois irmãos", texto original de Milton Hatoum , procurei outras produções desta curiosa dupla. Jesus, o industrioso proprietário da Zona Franca Comics de Santa Maria, conseguiu encontrar e me vender "daytripper", premiada graphic novel dos dois irmãos, publicada originalmente em 2010. A história é admiravelmente bem desenhada, uma festa para os sentidos, mas há algo que me incomodou naquela vertigem de imagens e eu acho que é o texto inventado por eles que fica devendo um tanto. As obsessões de "daytripper" são circulares: morte; relações entre pais e filhos; desapego pelas perdas; obituários que antecipamos; mortes que escolhemos (ou não). Bá e Moon criam dez futuros para um sujeito, que pode experimentar a morte ainda garoto, aos onze, ou continuar até os 76, encarnando várias outras metamorfoses (pois o leitor pode ter dificuldade em entender cada uma daquelas vidas dissociada das demais, cada capítulo dissociado dos demais - e é esse o ponto fraco do livro, penso eu). Sabemos que a vida é sempre um sopro, um detalhe e tudo se finda. Achei que parte das histórias é carregada demais por aquela atmosfera típica do Twilight Zone (série do início dos anos 1960), onde o bizarro torna-se realidade e o espectador é obrigado a decidir se é sua razão - antes de sua imaginação - que está sendo posta a prova pelo filme). De qualquer forma ler "daytripper" é um exercício mais do que prazeroso. Esses dois rapazes realmente dominam sua arte e sabem contar suas histórias. Vamos a ver o que eles nos oferecerão no futuro.
[início: 20/07/2015 - fim: 27/07/2015]
"Daytripper", Fábio Moon e Gabriel Bá, Dave Stewart (cores), tradução de Érico Assis, Barueri/SP: Panini Brasil Books, 1a. edição (2011), capa-dura 17,5x26,5 cm., 257 págs., ISBN: 978-85-7351-771-2 [edição original: New York: Vertigo Comics (A Warner Bros. Entertainment Company) 2010]

segunda-feira, 27 de julho de 2015

dublin literary pub crawl

Essa pequena jóia, super bem editada, repleta de histórias memoráveis, incríveis, além de incluir reproduções fotográficas realmente boas certamente carrega algo de Dublin em suas páginas. De todos os mimos que trouxe de lá esse é o que mais me ajuda com a geografia afetiva da viagem. Claro, "Jewish Dublin" e "The shadow of James Joyce" são duas maravilhas que não me canso de apreciar, mas "Dublin literary pub crawl" tem o sabor de ter sido o primeiro livro que comprei em Dublin, poucas horas após ter me instalado em um hotel e caminhado até o The Duke para participar de uma memorável apresentação. Chamo de apresentação pois se trata de um passeio guiado pelas ruas de Dublin, interrompido por uns quatro ou cinco sketches teatrais de dez ou quinze minutos cada um. Após cada uma das paradas você é convidado a explorar as redondezas (a região de Temple bar e do Trinity College) ou entrar em um pub e apreciar algo estimulante/refrescante. Os passeios acontecem desde 1988 e já recebeu atores consagrados como convidados especiais. Três atores acompanharam os espectadores/turistas quando participei (o próprio Quilligan - autor do livro - e também Derek Reid e Frank Smith). Eles entregaram o que o título promete: uma série de histórias sobre os escritores e os pubs da cidade. Além dos nobelizados Samuel Beckett, Bernard Shaw, William Yeats e Seamus Heaney ele falam também de Oscar Wilde, James Joyce, Patrick Kavanagh, Brendan Behan, Bram Stoker, Flann O'Brien e tantos outros. O livro, publicado originalmente em 2008, inclui curtas biografias de quinze escritores, poetas e dramaturgos irlandeses; a história de vinte e oito pubs de Dublin (que tem cerca de 1000 estabelecimentos deste tipo) e uma generosa introdução que descreve tanto a tradição literária da cidade quanto algo da mítica atmosfera literária dos pubs. Encontramos também uma descrição das esculturas do St Stephen's Green (um dos parques públicos da cidade) e uma bibliografia honesta. Um turista acidental irá se divertir um bocado nesse passeio e terá sempre algo dele ao folhear essa beleza de versão impressa. Em tempo: é possível agendar visitas através do site dublinpubcrawl.com e apreciar algo do clima da festa no YouTube. Bom divertimento. Sláinte.
[início: 02/02/2015 - fim: 16/06/2015]
"Dublin literary pub crawl: The story of Dublin pubs and the writers they served", Colm Quilligan, Dublin: Writer's Island, 3a. edição (2013), brochura 13x20cm., 160 págs., ISBN: 978-0-9559327-0-0 [edição original: 2008]

segunda-feira, 20 de julho de 2015

o que não existe mais

Nos sete contos reunidos neste pequeno volume Krishna Monteiro sabe mostrar seu domínio da linguagem e uma imaginação realmente poderosa. Numa história ele dá voz a um homem em coma ("As encruzilhadas do doutor Rosa"); noutra a um galo de rinha ("Quando dormires, cantarei"); noutra a um cão ("Um âmbito cerrado como um sonho"); noutra ainda a consciência de um suicida ("O sudário"). Nas demais o narrador é alguém mais crível, verossímil, familiar: um jovem angustiado com as memórias de seu pai ("O que não existe mais", que dá nome ao livro); um rapaz que conta o amor e as memórias compartidas de um avô (em "Monte Castelo", o mais longo dos contos do livro) ou um outro rapaz que descreve um mundo que desmorona e brota das lembranças de sua avó ("Alma em corpo atravessada"). As dúvidas de todos os narradores são metafísicas, pouco contato têm com a vida prática, com os problemas do cotidiano. De fato Krishna Monteiro escreve bem, mas os contos parecem artificiais demais, impessoais demais, exercícios estilísticos ou divertimentos de alguém que aprendeu a usar uma técnica e não sabe exatamente o que fazer com ela. Mas não são assim todos os livros de estréia? Talvez seja o caso de acompanhar o que irá oferecer no futuro esse habilidoso autor de nome improvável.
[início: 13/07/2015 - fim: 15/07/2015]
"O que não existe mais", Krishna Monteiro, São Paulo: editora Tordesilhas, 1a. edição 92015), brochura 14x19 cm., 110 págs., ISBN: 978-85-8419-027-0

domingo, 12 de julho de 2015

lendo j. m. coetzee

Na introdução de "Lendo J. M. Coetzee" os organizadores lembram que Coetzee não é exatamente um autor muito conhecido, lido e discutido no Brasil (apesar de já ter ganho prêmios literários importantes - como o Nobel, em 2003, e ter praticamente toda sua obra já traduzida para o português). A ambição explícita do livro é modificar esse quadro. Kathrin Rosenfield e Lawrence Pereira foram muito felizes na seleção que fizeram dos ensaios reunidos no livro. Trata-se de um conjunto robusto e consistente que abrange quase a totalidade da produção ficcional de Coetzee. O tom dos ensaios é quase sempre sóbrio, analítico; a linguagem sofisticada e as ponderações técnicas. Felizmente tais propostas de leitura e reflexão não chegam a ser herméticas ou impenetráveis demais para o leitor médio, aquele não exatamente familiarizado com o jargão acadêmico. Isso torna esse livro realmente fundamental. Cabe registrar que mesmo um leitor que não tenha lido todos os romances de Coetzee alcançará acompanhar bem os textos (muito embora terá mais proveito caso tenha lido sobretudo "Desonra" ("Disgrace", no original), "Diário de um ano ruim" ("Diary of a bad year") e "Cenas da vida provinciana" ("Scenes from provincial life: Boyhood, Youth, Summertime"), que são as narrativas mais detalhadamente analisadas no volume. Encontramos nele quinze ensaios e uma entrevista. Cinco textos foram produzidos originalmente em inglês e traduzidos (Adriane Veras, Rosalia Garcia, Carlos Roberto Ludwig, Enéias Tavares, Sandra Sirangelo Maggio e Elaine Barros Indrusiak assinam as traduções). Sete autores digressam majoritariamente sobre "Desonra", texto de 1999. Cada um deles o aborda de uma forma distinta: Kathrin Rosenfield faz uma análise fina da trama do livro; Ian Glenn pergunta-se sobre o quão perene o livro pode ser; Lawrence Pereira discute as injunções histórico-políticas que se seguiram ao lançamento do livro (e utiliza muito bem o seminal "Giving offense: Essays on censorship", de 1996); Rejane de Oliveira debruça-se mais sobre técnica literária e o compromisso ético do autor; André Klaudat em seus aspectos morais e éticos; Maria Esther Maciel nos limites do humano ali propostos (e de resto também nas demais obras de Coetzee); José Ghirardi em aspectos derivados da teoria do direito discutidos no livro. Os demais concentram-se em outros textos: Kim Worthington e James Meffan analisam detalhadamente "Foe", romance publicado em 1986; Gunter Axt  e Lucia Helena focam sobretudo "Diário de um ano ruim", de 2007; Maria da Glória Bordini a trilogia quase-biográfica "Cenas da vida provinciana", publicada originalmente em 1997, 2002 e 2009; Adriano Schwartz faz uma síntese de três romances ("Diário de um ano ruim", "Homem lento", "Elizabeth Costello"); Derek Attridge apresenta, num excelente ensaio comparativo, os romances mais representativos do engajamento de Coetzee à pauta racial sul-africana e discute o impacto deles na psiquê dos leitores à época do lançamento (ele destaca o romance "A idade do ferro", de 1990, todavia há digressões poderosas sobre as escolhas e o desenvolvimento da voz autoral de Coetzee ao longo do tempo); David Attwell e Elleke Boehmer, dois reconhecidos especialistas, partilham uma entrevista onde discutem "Doubling the point", um texto de David Attwell dos anos 1990 que consegue captar algo da "persona" de Coetzee como talvez nenhum texto posterior alcançou fazer. Numa curta introdução assinada pelos organizados o leitor dá-se conta da proposta de cada ensaio. O livro termina com curtas biografias de cada autor. Não há como negar a oportunidade desse lançamento. Eu, o menor dos anões dessa província, imagino as possibilidades de transformar "Lendo J.M. Coetzee" em um "The EDUFSM Companion to J.M. Coetzee". Para tanto pediria aos organizadores quatro ou cinco textos mais: uns que dessem conta da produção inicial de Coetzee ("Dusklands"; "In the heart of the country"; "Waiting the barbarians"; "Life and times of Michal K.", "The master of Petersburg"), lateralmente citados nos ensaios (ou mesmo neles ignorados); outros que citassem e/ou comentassem os soberbos ensaios literários de Coetzee reunidos em "Stranger Shores" e "Inner Workings"; e outros ainda que discutissem algo da produção mais recente dele (o romance "The childhood of Jesus", as cartas de "Here and Now" trocadas com Paul Auster; e os contos de "Three stories"). Vamos a ver. Cumprimentos a Kathrin e ao Lawrence por reunirem textos tão bons assim.
[início: 06/05/2015 - fim: 11/07/2015]
"Lendo J. M. Coetzee", Kathrin H. Rosenfield, Lawrence Flores Pereira (organizadores), textos de Kathrin H. Rosenfield, Lawrence Flores Pereira, Rejane Pivetta de Oliveira, André Klaudat, Maria Esther Maciel, José Garcez Ghirardi, Kim Worthington, James Meffan, Gunter Axt, Lúcia Helena, Maria da Glória Bordini, Adriano Schwartz, Derek Attridge, David Attwell e Elleke Boehmer, traduções de Adriane Veras, Rosalia Garcia, Carlos Roberto Ludwig, Enéias Tavares, Sandra Sirangelo Maggio, Elaine Barros Indrusiak, Santa Maria: editora da UFSM, 1a. edição (2015), brochura 16x23 cm., 320 págs., ISBN: 978-85-7391-225-8

terça-feira, 7 de julho de 2015

senhor das moscas

Depois de ter experimentado reler a trilogia "Fundação" (de Isaac Asimov) e o "Laranja Mecânica" (de Anthony Burgess) resolvi voltar a um outro texto que havia lido nos anos 1970/1980. "Senhor das moscas" é um romance curto e realmente poderoso. O leitor é apresentado aos desdobramentos das relações de uma configuração inicial de pessoas. Como num selvagem experimento sociológico (uma espécie de Gedankenexperiment, uma experiência mental) acompanhamos como um grupo de pessoas se relaciona ao longo do tempo. O resultado do experimento é algo impressionante, terrível. Um grupo de garotos muito jovens sobrevive a queda de um avião em uma ilha deserta. Eles estavam sendo transportados para um lugar seguro, longe dos desastres de uma guerra. William Golding faz seu narrador descrever como os garotos recriam inicialmente uma organização social que lhes parece adequada e boa (estruturada hierarquicamente como aquela que conheciam, com um líder, divisão de tarefas, regras morais) e como essa estrutura passa a metamorfosear-se em versões progressivamente violentas, bárbaras, sombrias, caóticas, destruidoras. Trata-se portanto de uma alegoria sobre a condição humana, sobre os limites da razão e das possibilidades de convívio social. Golding parece perguntar se a civilização, o estado organizado ou a sociedade são construções perenes do homem ou coisas frágeis demais, necessariamente condenadas a auto-destruição. Claro, viver é um experimento destrutivo por excelência. Jamais temos a chance de voltar a um determinado ponto do passado e reparar um erro, refazer uma escolha, desviar de uma armadilha. Aparentemente o homo sapiens sapiens, mesmo tendo alcançado tantas maravilhas em 200 ou 300 mil anos, é apenas um animal furioso, irresponsável, programado geneticamente para a rápida involução. Os personagens de Golding são esquemáticos: há o aquele que pode ser visto como o representante da ciência, da razão; outro que faz as vezes de democrata, de ordenador político; outro que flerta com o fascismo e a violência; outros que se convertem à disciplina, em uma força militar; um que experimenta a fé religiosa ou o paganismo; e ainda aqueles que se reduzem voluntariamente em massa de manobra, como cães ou ovelhas. O livro foi publicado originalmente em 1954, logo após os sucessos terríveis da segunda grande guerra mundial e hoje é reconhecidamente um dos mais seminais romances já escritos. Nesse início de século XXI mesmo os mais otimistas dentre nós parecem reconhecer que talvez as relações entre o homens ou entre os povos sejam complexas demais para que possamos um dia alcançar de fato paz, equidade de fortuna e direitos. Talvez a felicidade coletiva não seja algo que possa ser engendrado a partir de nosso genoma. Quem sabe (ou realmente se importa)? 
[início: 16/06/2015 - 06/07/2015]
"Senhor das moscas", William Golding, tradução de Sergio Flaksman, Rio de Janeiro: editora Objetiva / Alfaguara / Grupo Prisa, 1a. edição (2014), brochura 15x23 cm., 223 págs., ISBN: 978-85-7962-287-8 [edição original: Lord of the Flies (London:Faber and Faber) 1954]

segunda-feira, 6 de julho de 2015

o pintor de batalhas

Estava a ler esse "O pintor de batalhas" quando recebi "Hombres Buenos", o livro mais recente de Arturo Pérez-Reverte. Interrompi a leitura, troquei o antigo pelo novo (que já foi resenhado aqui) e depois acabei terminando outros volumes que a exemplo desse já se empilhavam pelas estantes. Não é o mais robusto Pérez-Reverte que já li. A história é interessante, o sujeito sabe convencer o leitor que aplicou-se nas pesquisas factuais e técnicas que antecedem a escritura do livro, há boas discussões sobre ética e moral, arte e ciência, mas falta algo nele que empolgue de fato o leitor. De certa forma "O pintor de batalhas" é um acerto de contas de Pérez-Reverte com seu passado de correspondente de guerras (atividade que ele exerceu por mais de vinte anos, tendo feito reportagens de boa parte das guerras que aconteceram na última quarta parte do século XX: Líbano, Malvinas, Angola, El Salvador, Moçambique, Sudão, Golfo Pérsico e Balcãs). Na trama, Faulques, um sujeito que atuou como fotógrafo de guerras é apresentado como o "pintor de batalhas". Ele vive solitário num farol abandonado da costa da Andalucía espanhola. O povo do vilarejo e os eventuais turistas sabem que ele está a produzir um grande mural nas paredes internas do farol. Logo no início do livro um crota chamado Ivo Markovic apresenta-se a Faulques e afirma que está ali para matá-lo. A narrativa alterna registros da história de cada um. Faulques conta suas aventuras pelo mundo das guerras, sua paixão por uma colega jornalista, sua obsessão pela pintura e pela ciência, seus passeios por cidades e museus italianos. Markovic oferece detalhes de sua tragédia pessoal, a ruína de sua família, cidade e país durante a guerra que fragmentou a antiga Iugoslávia, parece tentar entender a psicologia de Faulques e os motivos que o fizeram aposentar-se da fotografia e das guerras e também os porquês dele dedicar-se a pintura daquele mural. Desde o início do livro sabemos que Markovic entende que uma fotografia tirada por Faulques como que roubou-lhe o futuro. Faulques é ambíguo ao lamentar a perda da mulher que amava. Longas conversas sobre questões morais e sobre as técnicas da pintura e da fotografia se alternam. O leitor antecipa o final do livro e as razões que justificariam o comportamento dos antagonistas. É pouco. Talvez seja hora de parar de ler Pérez-Reverte por uns tempos e dedicar-se a outros autores. Vale.
[início: 05/05/2015 - fim: 03/07/2015]
"O pintor de batalhas", Arturo Pérez-Reverte, tradução de Sérgio Molina, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2008), brochura 14x21 cm., 250 págs., ISBN: 978-85-359-1325-5 [edição original: El pintor de batallas (Barcelona: Alfaguara / Random House LCC) 2006]

quinta-feira, 2 de julho de 2015

jewish dublin

Asher Benson nasceu em Londres em 1921 e mudou-se para Dublin ainda jovem, logo depois do fim da segunda grande guerra. Atuou como jornalista  e escritor, editou um jornal até o final dos anos 1980 e foi um dos fundadores do Irish Jewish Museum de Dublin. Há aproximadamente dez anos começou a organizar registros sobre a comunidade judaica de Dublin (fotografias, documentos, cartas e ilustrações retiradas de jornais e revistas) e, com a ajuda de amigos, conseguiu editar esse belo "Jewish Dublin", livro-irmão do 'The shadow of James Joyce", de Motoko Fujita, que já resenhei aqui. O livro inclui aproximadamente 150 fotografias, acompanhadas de textos curtos que oferecem resumos biográficos dos retratados (ao contrário do livro de Motoko Fujita, que apresenta paisagens e registros arquitetônicos, no livro de Asher Benson encontramos sobretudo fotografias de pessoas). As notas de Benson são bem humoradas. Ele sempre faz comentários divertidos sobre seus biografados ou sobre as circunstâncias em que determinada fotografia foi feita. Encontramos no livro artistas, escritores e músicos, políticos, comerciantes e visitantes ilustres da cidade, mas a maioria é de trabalhadores comuns, gente simples em seu cotidiano. Na fotografia da capa encontramos o pintor Gerald Davis, sujeito que costumava vestir-se como Leopold Bloom nos Bloomsdays em Dublin (o 16 de junho imortalizado por Joyce no Ulysses) e tornou-se um entusiasta dessas celebrações. Ainda haverá por aqui mais sobre os livros que encontrei em minha peregrinação à Dublin em fevereiro. Vale.
[início: 31/01/2015 - 16/06/2015]
"Jewish Dublin: Portraits of Life by the Liffey", Asher Benson (org.), Dublin: A. and A. Farmar Ltd. 1a. edição (2007), brochura 24x24 cm., 114 págs., ISBN: 978-1-906533-00-1

quarta-feira, 1 de julho de 2015

bom dia, camaradas

De Ondjaki só havia lido "os da minha rua", publicado em 2007, uma boa coleção de causos travestidos de contos (ele os chamou de 'estórias'). "Bom dia, camaradas" é um de seus primeiros romances, de 2001. É um livro simples, quase ingênuo demais, de um autor que parece ainda aprender seu ofício e as possibilidades de seus métodos. Trata-se de um livro claramente autobiográfico. Ele emula a voz de um menino, um jovem estudante, não mais que 12, 13 anos, que narra o que vê de seu entorno. Mas o leitor sabe que apenas um adulto entenderia de fato aquele entorno terrível que é a capital de Angola, Luanda, do final dos anos 1980. Angola vive os momentos finais de uma guerra civil que tomou 25 anos e provocou centenas de milhares de mortos. O que o menino vê é algo terrível, violento, infernal, mas como ele não tem consciência disso, poupa o leitor de boa parte da crueza e desperdício daquilo tudo. Ondjaki brinca com a língua, tenta fixar no texto a oralidade veloz de seus colegas de escola e os diferentes registros que cada personagem adulto utiliza, principalmente os professores cubanos do menino, que se fazem entender por um espanhol aportuguesado. Os alunos são avisados da visita iminente de um inspetor geral do governo central, mas eles parecem mais interessados em saber se um grupo conhecido por "Caixão Vazio"  - o que hoje poderíamos sem medo chamar de um bando de terroristas - irá atacar ou não a escola. Apesar dos sucessos desse ataque ser o ponto central do romance gostei mais de como Ondjaki descreve a estranheza entre o menino e uma tia portuguesa, que não entende nem o linguajar nem as regras de comportamento daquele país (uma patética ditadura comunista, claro). Mais interessante que o registro cômico dessas conversas entre menino e tia são as aparições de um agregado da família, o camarada Antônio, uma espécie de faz-tudo que é a personagem mais discreta e poderosa do livro. Os episódios que o menino vê e interpreta se sucedem rapidamente. Em algum ponto o narrador como se cansa de sua história e termina o livro. Não se tratava de algo muito empolgante mesmo mas, de qualquer forma, procurarei algo recente de Ondjaki para tentar entendê-lo melhor. Vale.
[início: 17/06/2015 - fim: 29/06/2015]
"Bom dia, camaradas", Ondjaki, São Paulo: editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 135 págs., ISBN: 978-85-359-2376-6 [edição original: Bom dia, camaradas (Lisboa: editorial Caminho / Grupo LeYa) 2001]