quarta-feira, 29 de abril de 2020

ensaio sobre o louco por cogumelos

A obra de Peter Handke é vastíssima (para o padrão dos escritores contemporâneos) Desde 1966 ele já publicou mais de setenta trabalhos diferentes, entre romances, contos, peças de teatro, ensaios, diários, novelas e roteiros para cinema. Cinco trabalhos, publicados entre 1983 e 2013, são explicitamente identificados nos títulos como Versuch no original alemão, ou seja, ensaios, mas não me parece que sejam narrativas que possam ser citadas como exemplos canônicos deste gênero. Já falei aqui algo sobre "Ensaio sobre a jukebox", de 1990, uma curta e estranha novela que trata sobretudo de obsessões e do ofício de escrever, de como inventar histórias e do distanciamento que um autor precisa ter dos avatares que se tornarão personagens das cousas que cria. Neste "Ensaio sobre o louco por cogumelos", o mais recente dos Versuch, publicado originalmente em  2013, acompanhamos a história de uma outra obsessão, a que um sujeito tem pelo ato de colher cogumelos, sobretudo as admiráveis trufas. Handke faz um narrador inominado, que o leitor pode ou não identificar como sendo ele mesmo, Handke, contar fragmentos da vida deste sujeito, deste amigo, desde sua infância, provavelmente nos anos do pós segunda grande guerra, até o dia de seu aniversário, no início da segunda década deste século XXI que vivemos. Nestes fragmentos o narrador conta que seu projeto é escrever um livro sobre o tal "louco por cogumelos", mas a fonte de quase todo o trabalho são as anotações que o sujeito fez sobre sua vida, pois era ele, um advogado de relativo sucesso, quem tinha como projeto escrever um tratado definitivo sobre a arte de colher cogumelos, e enriquecer com isso. Essa obsessão o faz afastar-se de todos, da mulher, do filho recém nascido, do emprego, dos amigos, até literalmente desaparecer. O narrador, nas páginas finais, nos conta qual é o desfecho de seu livro, qual foi o destino de seu biografado, que de alguma forma lembra os finais deus ex machina, os finais dos contos de fada, mas é de uma beleza realmente singular, um louvor ao exercício da amizade e da vida. Difícil de ler, mas muito interessante. Vale! 
Registro #1521 (novela #77) 
[início: 07/03/2020 - fim: 02/04/2020] 
"Ensaio sobre o louco por cogumelos: uma história em si", Peter Handke, tradução de Augusto Rodrigues, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2019), brochura 14x19 cm, 160 págs. ISBN: 978-85-7448-278-1 [edição original: Verusuch über den Pilznarren (Berlim: Suhrkamp Verlag) 2013]

domingo, 26 de abril de 2020

a triste balada dos herculóides contra as leis terrenas


Do Odemir Tex Jr. já havia lido os bons poemas de "Para uma nova didática do olhar", uma edição cartonera, de 2013. "A triste balada dos Herculóides contra as leis terrenas" é seu trabalho mais recente, publicado no final de 2019. Trata-se de uma reunião de 26 poemas, divididos em quatro conjuntos. As epígrafes desses conjuntos já mostram algo do caminho trilhado pelo autor, algo de sua proposta. São citações de Gilberto Mendonça Teles, Wilsawa Szymborska, Tim Burton e Jim Morrison. As duas primeiras, registros que tendem ao erudito, à alta cultura, as duas seguintes, de apelo popular, do "pop" do subtítulo do livro (uma poemática pop-barroca). Nos poemas acompanhamos um narrador que percorre caminhos da memória, de um passado de formação, de estímulos, sensibilizações, aprendizados. É um narrador que, seguindo o mote de Gilberto Mendonça Teles, já na primeira das epígrafes, avisa que "sempre há armadilhas no discurso". Assim, o controle das formas poéticas, virtuosismo, influências do cânone, se infiltram nos poemas, sem fazer alarde. Neles não há "palavras gordurosas", rebuscamentos bestas, léxico de alfarrabistas. O foco sempre está nos substantivos das frases, ou melhor, dos versos. Navegamos, guiados pelo narrador, por um mar de escolhos da juventude, num mundo idílico: histórias em quadrinhos, anúncios de televisão, desenhos animados, revistas pornográficas, coleções polimorfas, filmes em preto e branco, sessões de cinema cult, o desejo de um mundo bom. No último poema do volume o narrador poeta  confronta um velho anarquista, acusa a passagem do tempo, sente-se cansado, começa até acreditar que deve esquecer tudo que poetou antes, mas encontra consolo nas palavras sábias do velho anarquista que diz: "Cada homem traz dentro de si / toda uma época, / do mesmo modo que cada onda / traz dentro de si todo o mar". Evoé, don Tex, Evoé! Vale! 
Registro #1520 (poesia #128) 
[início: 13/04/2020 - fim: 17/04/2020] 
"A triste balada dos Herculóides contra as leis terrenas: uma poemática pop-barroco", Odemir Tex Jr., Jundiaí: Telucazu Edições, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 80 págs., ISBN: 978-85-69708-38-4

quinta-feira, 23 de abril de 2020

os animais

Comecei a ler esse livro assim que terminei o seminal "O eremita viajante", de Matsuo Bashô. Desde então, a exemplo do que havia feito com os haikus de Bashô, tenho lido um punhado deles a cada vez, ao ritmo do acaso, da curiosidade, estado de espírito, humor. Nestas últimas semanas, isolado como quase todos, resolvi dedicar mais tempo a Kobayahi Issa. Em uma longa apresentação, o tradutor e organizador destes haikus, Joaquim M. Palma, nos ensina que Issa produziu aproximadamente vinte mil haikus, sendo que dois mil deles referem-se explicitamente a animais, faz deles protagonistas, mensageiros de sua sensibilidade. Issa viveu aproximadamente um século após Bashô, de 1763 a 1827, foi um monte laico budista (do grupo Jôdo Shinshu). Teve uma vida de muitas tragédias, perdas, dificuldades, mortes, assombros ("Chacun de nous a dans le coeur une chambre royale; je l'ai murée, mais elle n'est pas détruite", já nos ensinou Flaubert). Nesta antologia estão reunidos os haikus em que o poeta fala de animais com os quais teve alguma interação em termos sensoriais e emocionais. Ele fala de animais pequenos (abelhas, formigas, piolhos) e grandes (veado, polvo, falcão); fala de mamíferos, de aves, répteis, insetos, peixes, crustáceos, moluscos); fala sobretudo de sua tríade afetiva: a borboleta, o cuco e o rouxinol. A edição é muito bonita, organizada em ordem alfabética dos animais e incluindo um síntese cronológica da biografia de Issa, uma bibliografia e um índice dos primeiros versos dos quase dois haikus nele reunidos. Uma miríade de notas ajudam o leitor a entender passagens enigmáticas ou cifradas dos poemas, algum fato histórico de sua composição, contrastar interpretações e certas variantes. Que notável livro é esse. Vamos a ver se Joaquim Palma traduzirá também Yosa Buson e Masaoka Shiki, os outros dois grandes mestres desta forma poética. Se encontrei esse livro no início da chuvosa primavera passada, abandono-o (ou melhor, devolvo-o a estante, ainda deixando-o ao alcance dos olhos e das mãos) neste início de outono, nestes dias conspurcados por esta pandemia infernal. De qualquer forma, nestas últimas semanas senti-me como um Buda redivivo, cercado pelos animais de Kobayashi Issa, recluso, tendo minha pele de urso como companhia, Cappuccio e eu, sobretudo lembrando sempre deste haiku: "Javalis e ursos / são meus vizinhos / reclusão de inverno". Vale! 
Registro #1519 (poesia #127) 
[início: 15/06/2019 - fim: 10/04/2020] 
"Os animais", Kobayashi Issa, tradução de Joaquim M. Palma, Lisboa: Assírio & Alvim (Grupo Porto Editora), 1a. edição (2019), capa-dura 15,2x21,2 cm., 432 págs., ISBN: 978-972-37-2083-9

segunda-feira, 20 de abril de 2020

proseando aqui e acolá

Conheci Sinvaline Pinheiro no início de março, nos domínios do Memorial Serra da Mesa, às margens do enorme lago da hidrelétrica Serra da Mesa, quando estive em uma missão de trabalho no interior de Goiás, em Uruaçu. Sinvaline é escritora, pesquisadora, ativista cultural e memorialista de sua região (que não se restringe ao seu Norte de Goiás natal, pois se expande por todo o estado de Goiás, também o Tocantins e outros caminhos do Cerrado brasileiro. Neste seu "Proseando aqui e acolá" a autora faz 30 registros breves sobre indivíduos e seus ofícios; sobre músicos e artistas plásticos; sobre romarias, saberes populares, festas tradicionais; sobre remotas tribos indígenas, superstições e causos. É o resultado de uma pesquisa etnográfica, onde fez-se a coleta de depoimentos de pessoas que vivenciaram genuínas manifestações culturais goianas, sobretudo no século passado. Em muitos destes registros Sinvaline tenta grafar a linguagem utilizada por seus interlocutores, quase sempre gente simples, pessoas não educadas formalmente, mas detentoras de conhecimentos ancestrais ou ricas - e por vezes dramáticas - experiências de vida. Cada uma das histórias é acompanhada de um registro fotográfico, que oferece ao leitor a oportunidade de contrastar o indivíduo real ali retratado com o que é, a partir da narrativa, pelo leitor construído, imaginado, absorvido. O livro inclui também alguns poemas assinados por Sinvaline, onde ela canta seu amor por sua cidade, Uruaçu, e sua região. Eu, sempre um vinagre pessimista, acredito que o Brasil não merece pessoas assim, que com tanta generosidade guardam o que há de mais belo e verdadeiro da alma brasileira, o que há de mais rico e forte em nosso povo, bem mais que vilipendiado, roubado e corrompido, sem pudor, por legiões de canalhas, há cinco séculos. Paciência. Parabéns a Sinvaline Pinheiro por sua obra, seu exemplo, sua luta. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1518 (perfis e memórias #94) 
[início: 05/03/2020 - fim: 31/03/2020] 
"Proseando aqui e acolá", Sinvaline Pinheiro, Goiânia: Editora PUC-GO / Editora KELPS, 1a. edição (2012), brochura 14x20 cm., 108 págs., ISBN: 978-85-8106-297-6

sábado, 18 de abril de 2020

meu lote

Neste bom livro estão reunidos 121 textos de Nei Lopes inicialmente publicados em um blog (também chamado Meu Lote), entre 2003 e 2008, e selecionados por Marcus Fernando, produtor musical e cineasta carioca. De Nei Lopes já havia lido dois bons livros de ficção: um romance (O preto que falava iídiche) e um de contos (Nas águas desta baía há muito tempo). Suas crônicas são deliciosas. "Meu lote" trata daquilo em que o multitalentoso Nei Lopes é mestre: música, literatura, carnaval, cultura negra, história da África, do Brasil e do Rio de Janeiro (ele tem uma obra vastíssima centrada na temática africana e afro-originada, a da diáspora africana, como ele gosta de grafar). São crônicas realmente boas de ler, super informativas, bem escritas, aprende-se um bocado nelas, sobre uma miríade de assuntos. Algumas são mais caras à memória, a sua Irajá fundamental, ao registro de perfis biográficos de músicos, personalidades, influências; outras são mais engajadas, falam da necessidade de se discutir a questão negra no Brasil, com coragem, sem medo, como uma das muitas questões sociais que nós sempre adiamos por aqui; noutras ainda ele fala dos carnavais, do samba, de seus encontros com o povo da música; há ainda registros de falares brasileiros, influências das muitas línguas africanas que se fundiram no léxico do português; há também listas de verbetes bem humorados, que tratam de nossas alegrias e misérias cotidianas, além de sempre bacanas fragmentos biográficos. Grande estilista, ele inclui um bocado de ironia dos textos, sempre que é necessário fazer-se bem ler e bem ser respeitado. Livro muito interessante mesmo. Vou procurar mais cousas deste sujeito. Vale! 
Registro #1517 (crônicas #269) 
[início: 04/04/2020 - fim: 12/04/2020] 
"Meu lote", Nei Lopes, Rio de Janeiro: Editora Numa, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm, 312 págs. ISBN: 978-85-67477-25-1

quinta-feira, 16 de abril de 2020

um fausto

O texto - anônimo - que deu origem ao mito de Fausto foi publicado em 1587. Christopher Marlowe escreveu a primeira versão dramática deste mito entre 1589 e 1592, mas não é certo que a peça chegou a ser encenada em vida do autor (sabe-se que foi publicada após sua morte, em diferentes versões, em 1604 e 1616). De qualquer forma esse mito literário tem sido reimaginado e reinventado desde então. Há versões para todos os gostos (de Goethe a Thomas Mann, de Fernando Pessoa a Puchkin, de Murnau a Berlioz, de Gounod a Liszt, de Paul Valéry a David Mamet, dentre tantos outros). A história é citada ou homenageada em uma miríade de mídias, formas e contextos da cultura. Tempos atrás fiz um registro de um romance de Sidney Garambone ("Fausto tropical"), jornalista  e escritor carioca, que adaptou a história a seu Rio de Janeiro fundamental. Mas hoje quero fazer o registro de uma versão curitibana, produzida a quatro mãos, pelos poetas Antonio Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos: "Um Fausto", publicado provavelmente em 1994. Esta adaptação acompanha de perto os sucessos da primeira parte da versão de Goethe (bem diferente da versão de Marlowe e sem a conclusão popularmente conhecida, com Deus vencendo a aposta que fez com Mefistófeles pela alma de Fausto, elevando-a aos céus, mas isso pouco importa). Na primeira das dez cenas em que "Um Fausto" é dividido, um editor, "à beira da falência, tenta convencer seu melhor poeta a escrever um best-seller" e o leitor descobre como esse poeta é estimulado por sua musa a aceitar o encargo. Após espiar o pacto entre Mefistófeles e Deus, o poeta nos conta como Mefistófeles apresenta-se a Fausto e oferece seus serviços, e como a menina Margarida é vagarosamente seduzida pelas artes infernais até por fim cair em desgraça e ser aprisionada. É um texto gostoso de ler, bem divertido, movimentado. Por ser uma versão debochada, em versos e curta, e por ser o resultado de boas leituras, de sujeitos que sabem equilibrar registros eruditos e populares, a cousa me parece funcionar, ou seja, me parece encenável, conferindo dignidade e valor à longa tradição de adaptações deste mito literário. Evoé rapazes, Evoé. O livro inclui algumas ilustrações de Roberto Carlos Jubainski. Bacana. Sigamos o baile macabro deste outono. Quem viver, lerá. Vale! 
Registro #1516 (drama #19) 
[início: 06/04/2020 - fim: 07/04/2020] 
"Um Fausto", Antonio Thadeu Wojciechowski e Sérgio Viralobos, Curitiba: Lagarto Editores, 1a. edição (1994?), brochura 12x18 cm, 48 págs., sem ISBN

terça-feira, 14 de abril de 2020

verifique se o mesmo

"Verifique se o mesmo" é um livro de ensaios. Nuno Ramos, que é artista plástico, poeta, pensador da cultura brasileira, oferece ao leitor, neste seu volume mais recente, dois conjuntos de textos. O primeiro, que corresponde a aproximadamente 40% do livro, enfeixa dois longos ensaios [No Palácio de Moebius e Trança (ainda Moebius)], aquele publicado originalmente na revista Piauí, em novembro de 2013, e esse último, inédito, finalizado em dezembro de 2018. Nestes ensaios o autor trata de criadores brasileiros modernos e contemporâneos que alcançaram, nas palavras dele, "(...) uma fonte de potência capaz de reverter a desgraça em liberdade extrema". Todavia, essa fonte de potência é também uma poética narcísica, que autolimita sua generalização, sua universalização (ele usa metaforicamente a curva de Moebius para ilustrar essa dificuldade de exteriorização, de expansão, de algo que é intrinsecamente moderno e valoroso, mas que acaba "voltando-se para dentro, por absoluta falta de ressonância do objeto cultural na vida em que se insere"). Esses brasileiros são João Gilberto, Lygia Clark, Graciliano Ramos, Mira Schendel, Hélio Oiticica, Milton da Costa, Machado de Assis, Glauber Rocha, Caetano Veloso (a primeira parte das composições de Caetano) e Tunga. São ensaios detalhistas, de um articulista que se preocupa com a validade de suas premissas, com o encadeamento lógico de seus silogismos, com os entendimentos possíveis de suas reflexões e conclusões.  Os ensaios funcionam também como "cifras e modelos de leitura", nas palavras dele, da produção plástica, literária, cinematográfica ou musical de seus sujeitos em análise. São textos muito bem escritos, mas que cobram um bom tempo de leitura. Não são ideias de almanaque ou repetição de lugares comuns (cousas que lemos o tempo todo nos cadernos culturais que ainda sobrevivem por aí). O segundo conjunto de ensaios reúne apenas um inédito (uma análise muito boa mesmo sobre a obra de Oswaldo Goeldi, o genial gravador brasileiro). São 19 ensaios  que foram publicados entre 2008 e 2018, e correspondem a 60% do volume. Esse segundo conjunto é de propostas mais focadas, menos panorâmicas ou sintetizadoras que as anteriores (muito embora algumas se encaixam no modelo de infinito da curva de Moebius, de "voltar-se para dentro por falta de ressonância", proposto por ele na primeira parte). Os temas são variados, ma non troppo. Há sobretudo reflexões sobre artes plásticas. Quatro são sobre suas exposições e o impacto delas  ("Bandeira branca", aquela dos urubus na Bienal de Artes de São Paulo de 2010, é notável). Cinco textos são sobre outros artistas, produzidos para catálogos de exposições. Encontramos também um robusto texto sobre Beckett; dois sobre futebol (o sujeito é santista e boleiro confesso); dois sobre música brasileira (que ele diz ecoar em sua obra, sobretudo em função de sua admiração pelos sambas de Nelson Cavaquinho); dois políticos/engajados ("Suspeito que estamos" e "Gente frouxa", que demonstram que ele sabe enxergar longe politicamente, mas suspeito que ele sabe que é uma espécie de Cassandra tropical); um sobre arquitetura (sobre Oscar Niemayer e o tédio que brota de suas construções) e dois meio híbridos (um conto - acho eu, e uma reflexão sobre sua experiência com turismo, contrastando os anos 1970 com o agora). Um último texto, "Loser", corresponde a uma palestra que ele proferiu na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em 2015. Trata-se de um resumo híbrido, emocional e racional ao mesmo tempo, de sua produção plástica, suas ambições e suas influências. Enfim, material muito bom mesmo para se ler e refletir nestes dias de outono. Lembrei-me de quando vi os trabalhos do povo da Casa 7 (do qual ele fez parte) na Bienal de 1985, naquele corredor da "Grande tela"; lembrei-me do Samuca, que é citado em um dos textos; lembrei-me da Luciane, que viu comigo uma outra Bienal; lembrei-me das muitas exposições que vi nestes meus anos de errâncias e viagens, lembrei-me das gravuras da Helga. Bueno, uma parte da produção plástica dele pode ser conferida no site Nuno Ramos. É hora de seguir fugindo do baile macabro, da contagem dos mortos, desta histeria contida. Vale! 
Registro #1515 (ensaios #269) 
[início: 18/10/2019 - fim: 11/04/2020] 
"Verifique se o mesmo", Nuno Ramos, São Paulo: Editora Todavia, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm, 304 págs. ISBN: 978-85-88808-74-4

sábado, 11 de abril de 2020

el sabor de venecia

Nestes dias absurdos, onde flanar pela cidade é um ato temerário, procurei os volumes que estavam perdidos em meus guardados, esperando uma segunda chance, um eventual desfecho, uma decisão de abandoná-los ou não. Nos últimos anos aprendi a ler Donna Leon, acompanhá-la pelas Calli, Campielli e Canali de Veneza, a aprender alguma coisa sobre a geografia da cidade que ela adotou há mais de três décadas, sobre as regras de conduta e etiqueta dos venezianos (já fiz vinte e oito registros de leituras de livros dela: clicka!). Um dos livros que havia deixado para ler mais tarde era esse "El sabor de Venecia". Trata-se de um livro de receitas, de receitas de pratos tradicionais italianos, sobretudo aqueles mais caros aos venezianos (são 91 delas no total). Quem assina as receitas é Roberta Pianaro, uma das amigas venezianas mais antigas de Donna Leon. Todavia, "El sabor de Venecia" é também um livro de ensaios e de transcrição de passagens dos livros nos quais Guido Brunetti e os demais personagens inventados por Donna Leon compartilham mágicos momentos de prazer gastronômico. São seis capítulos, temáticos, que tratam dos antepastos, dos primeiros pratos, das saladas, dos peixes e frutos do mar, das carnes e das sobremesas. Em cada capítulo Donna e Roberta escrevem algo sobre um determinado conjunto de receitas. As notas de Roberta são curtas, focadas nos temas das receitas. As de Donna mais filosóficas, inventivas, caras a sua memória afetiva.  A acompanhamos pela cidade que se transforma, que perde lojas tradicionais para redes multinacionais de quinquilharias; em um dia na ilha de Sant'Erasmo, que ela passa colhendo tomates e ameixas; descreve seu encontro com um experimentado capitão de longo curso, que a ensina reconhecer os bons peixes no Rialto; aprendemos sobre a agressividade das anciãs venezianas demonstram todas as vezes que querem furar fila nos mercados, agressividade que os genuínos venezianos reconhecem de longe e deixam ser dirigida aos turistas. Os ensaios - que são algo amargos - fazem um contraponto justo ao deleite que as receitas provocam. Várias vezes as autoras retomam temas que são importantes. A memória destes dias de pandemia global, especialmente a lembrança da devastação italiana, os tornam ainda mais verdadeiros: devemos todos valorar os momentos em família, ao redor de uma mesa; querer bem os produtos sazonais, produzidos nas redondezas de onde vivemos; saber da necessidade de respeitarmos o tempo, o nosso e de todos os demais, aqueles de nossa vila, comunidade, região, país. Não é pouco para um livro despretensioso de receitas. Grande Donna Leon. Vale! 
Registro #1514 (gastronomia #43) 
[início: 15/01/2018 - fim: 29/03/2020]
"El sabor de Venecia: a la mesa con Brunetti", Donna Leon e Roberta Pianaro, tradução de Pedro Donoso e Guadalupe Ramírez, Barcelona: Seix Barral / Biblioteca Formentor (Editora Planeta S.A.), 1a. edição (2009), brochura 13,5x23 cm., 343 págs., ISBN: 978-84-322-3205-6 [edicão original: A Taste of Venice: At Table with Brunetti (Zürich: Diogenes Verlag AG) 2011]

quarta-feira, 8 de abril de 2020

la tentación del perdón

Veneza no outono (estação singela e pura, dizia aquele samba enredo da Mangueira) é outra cidade. Turistas e batedores de carteiras partiram juntos, deixando a cidade para os habitantes regulares, que estão descansados pelas férias, ainda bronzeados, de bom humor. Uma eventual neblina cobre a cidade de vez em quando, lembrando todos da necessidade de preparar-se para o inverno. Brunetti recebe em seu gabinete a visita de uma colega professora de Paola, preocupada com o aparente vício em drogas de seu filho. Não há muito o que fazer, pensa o comissário. Dias depois, em uma coincidência improvável, o pai deste rapaz aparece caído próximo a uma das pontes da cidade, com o crânio esmagado, condenado ao coma e a morte. O leitor acompanha em "La tentación del perdón", vigésima sétima aventura de Brunetti engendrada por Donna Leon, os desdobramentos da investigação das circunstâncias da queda deste sujeito. Quase todos os personagens recorrentes de Donna Leon têm seu protagonismo neste volume: o assistente Lorenzo Vianello; a secretária Elettra Zorzi; a comissária Griffoni; o vice-questor Patta; a mulher de Brunetti, Paola Falier; seus filhos Raffaele e Chiara. A história gravita questões morais, os conceitos de lei, justiça e equidade social. Brunetti passa boa tempo do livro relendo Antígona (de Sófocles), com seu senso de dever dividido entre a sociedade e a tentação de chamar para si o poder de perdoar. Contrapor uma reflexão clássica sobre um tema complexo e sua aplicação prática no mundo contemporâneo é um dos artifícios literários usuais da autora, sempre antenada, engajada, mordaz. No desenvolvimento da trama descobrimos algo sobre o sistema de saúde pública italiano (basicamente, sobre as formas de corromper esse sistema, usualmente aproveitando-se de brechas na enorme burocracia, algo que todo brasileira também conhece muito bem). Metaforicamente, o sujeito que caiu na ponte e ficou em coma é como o estado italiano: imobilizado, preso a regras e tradições, muito além da salvação, da cura, sofrendo as consequências - sempre imprevisíveis - de uma miríade de más decisões. Narrativa repleta de mimos para os entusiastas da série, com descrições das caminhadas pela cidade; das rápidas paradas para reflexão em cafés; dos registros das diferenças entre o Sul e o Norte italiano; do domínio da linguagem, que aproxima e afasta as pessoas; do papel das mulheres na sociedade italiana; da importância da ficção na psique dos homo sapiens. Belo livro. Voltei a Donna Leon e a Brunetti por conta das notícias assustadoras sobre a pandemia do covid-19 na Itália. Pelo jeito vou gastar os últimos livros dela que tenho nestes dias. Vale! 
Registro #1513 (romance policial #94) 
[início: 16/03/2020 - fim: 19/03/2020] 
"La tentación del perdón", Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Seix Barral / Booket Biblioteca Formentor (Editora Planeta S.A.) Crimen y Misterio, 1a. edição (2018), brochura 12,5x19 cm., 336 pág., ISBN: 978-84-322-3483-5 [edicão original: The Temptation of Forgiveness (Zürich: Diogenes Verlag AG) 2018]

domingo, 5 de abril de 2020

minha pequena irlanda, my little ireland

Dirce Waltrick do Amarante, ativa pesquisadora das cousas que gravitam o mundo de James Joyce, produziu uma peça, "Minha pequena Irlanda", que mescla elementos do oitavo capítulo do Finnegans Wake joyceano (último capítulo do primeiro livro do Finnegans Wake) com algumas das cartas ditas pornográficas de James Joyce enviadas a Nora Barnacle, sua mulher. O oitavo capítulo pode ser lido aqui: clika1!. E as cartas de Joyce aqui: clika2!. A peça de Dirce do Amarante foi apresentada pela primeira vez em junho de 2019, no Teatro da Universidade Federal de Santa Catarina. Trata-se de um texto curto. A peça encenada dura cerca de 35 minutos, a leitura dela pode durar um tanto menos (vale registrar que o próprio Joyce lia esse capítulo em menos de dez minutos: clika3!. No livro o editor optou por oferecer duas versões, em português e em inglês. Todavia, ao menos no meu exemplar, um erro de montagem dos cadernos fez com que o texto em português ficasse pela metade. Paciência. O leitor pode ler todo o texto em inglês e, de resto, pode acompanhar um gravação integral da peça, disponível no YouTube: clika4!. Trata-se de uma proposta interessante. Funciona como dramaturgia, mesmo para o espectador não familiarizado com o universo joyceano, o contexto das cartas e do capítulo. Neste capítulo duas lavadeiras de roupas trabalham às margens do Liffey e conversam (fofocam talvez seja o termo mais adequado). Elas fazem troça do estado das roupas de Humphrey Chimpden Earwicker, HCE, o protagonista da história, o Proteus joyceano, que se metamorfoseia tantas vezes no livro. E contam, enquanto o fim de tarde não chega, outros sucessos de Anna Livia Plurabelle, mulher de HCE, sobretudo sobre sua vida sexual, sobre seus filhos, Shem e Shaun, e alguns dos demais habitantes de Dublin. Ao final, separadas pelo Liffley, as lavadeiras se metamorfoseiam em pedra e árvore. Na montagem, além das duas lavadeiras, dois narradores em off contam a história, enquanto imagens de Dublin são projetadas em lençóis e roupas que são penduradas por elas em varais. Os efeitos produzidos são muito bonitos. Leitura bastante agradável. O livro inclui algumas ilustrações, assinadas por Sérgio Medeiros, um curto ensaio assinado por Dirce do Amarante e uma lista biográfica dos demais colaboradores/participantes do projeto de transcriar, na linguagem teatral, um pequeno trecho da mais complexa das obras de Joyce. Justa e válida homenagem. Vale! 
Registro #1512 (drama #18) 
[início: 20/03/2020 - fim: 23/03/2020]
"Minha pequena Irlanda / My Little Ireland", Dirce Waltrick do Amarante, ilustrações de Sérgio Medeiros, Forianópolis: Rafael Copetti Editor, 1a. edição (2020), brochura 11x18 cm, 116 págs. ISBN: 978-85-67569-56-7

sexta-feira, 3 de abril de 2020

retrato de shunkin

"Retrato de Shunkin" foi publicado originalmente em 1933, quando Jun'ichiro Tanizaki já era um respeitado escritor e já vivia radicado em Kobe, após seus anos em Tokyo e Kyoto. Trata-se de um texto notável, que explora temas complexos, conduzindo o leitor a uma série de reflexões sobre beleza, estética, talento musical, vaidade, o ofício da docência, inveja, sexualidade, obsessões, ornitologia, crueldade, automutilação e submissão. Um narrador inominado conta o que sabe sobre Shunkin, uma mulher do início do século XIX, famosa por sua beleza e excelência musical na arte do koto e do shamisen, instrumentos de corda japoneses. Filha de uma rica família burguesa, que viveu nas últimas décadas do xogunato (ou seja, antes da Restauração Meiji, que mudou radicalmente o Japão, em 1868), Shunkin, fica cega aos oito anos e passa a dedicar-se ao aprendizado musical, tornando-se uma virtuose. O narrador conta a espécie de escravidão humana que se estabelece entre Shunkin e um rapaz mais jovem e simples, Sasuke, ligado a sua família, que é encarregado de conduzi-la a escola. Shunkin e Sasuke tornam-se mutuamente dependentes, estabelecem uma relação de mestre e discípulo, alcançam respeito e relativa fama em sua área de atuação, e também amantes, pais de crianças que são entregues à adoção, compartilham seus destinos por décadas (Sasuke sobrevive a sua mestre por vinte anos). O leitor é conduzido a uma miríade de reflexões. O texto é belíssimo, lê-se cada parágrafo imaginando como um artífice pode fazer parecer simples o ato de construir frases, produzir imagens, provocar reações, invocar associações. No final o narrador pergunta: "o prezado leitor concorda com ele?". Para saber com o quê deve-se ou não concordar o leitor precisa ler essa maravilhosa novela. Bom divertimento. Vale! 
Registro #1511 (novela #76) 
[início: 21/01/2020 - fim: 24/01/2020]
"Retrato de Shunkin", Jun'ichiro Tanizaki, tradução de Andrei Cunha, Ariel Oliveira, Lídia Ivasa, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm, 160 págs. ISBN: 978-85-7448-290-3 [edição original: Shunkinsho 春琴抄(中央公論), 1933]

quarta-feira, 1 de abril de 2020

gravura em metal: passo a passo

Helga Correa é artista plástica, vinculada ao Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal de Santa Maria, e é pesquisadora, coordenadora do Grupo de Pesquisa CNPq "Arte Impressa". "Gravura em metal: passo a passo" é um volume dedicado a descrever e ilustrar os procedimentos técnicos da gravura em metal. Trata-se de um manual didático, um documento que brotou do Atelier de Gravura da UFSM e da experiência acumulada de Helga Correa com a gravura, que remonta o final dos anos 1980. O livro oferece informações práticas ao leitor interessado nos procedimentos e técnicas e também arquiva em livro o trabalho de muitos alunos e pesquisadores que frequentaram o Atelier no período que vai de 2012 a 2019. Muito embora as "receitas" nele reunidas já estejam sistematizadas em vários outros manuais tradicionais, neste livro encontramos o registro de explorações sobre suportes menos usuais no processo de elaboração gráfica. Os suportes experimentados, latão amarelo e offset, mostram-se adaptáveis e de fácil uso para artistas iniciantes. Dentre as técnicas e procedimentos descritos no livro encontramos: água forte; água tinta; água tinta em grânulo fino; água tinta em grânulo grosso; ponta seca e roulette; água forte e betume; água forte e ponta seca; água tinta de nanquim e açúcar; água tinta com lápis litográfico; água tinta com lápis 8B e giz estaca; água tinta com caneta permanente; rebaixamento; gofrado; enxofre; papel amassado sobre verniz; carborundum; verniz mole e ponta seca; transferência de imagem fotográfica; chine collé; maneira negra; falsa maneira negra; água forte com verniz, solvente e açucar. As ilustrações reunidas no livro correspondem a gravuras produzidas por Priscila Baelz, Eliane Amoreti, Kelly Pfüller, Aracy Colvero, Marcela Machado, Ketelen Oliveira, Carol PK, Jean Guerra, Aline Arendt, Daniela Flores, Henrique Ribeiro, Melina Ferreira, Ivelize Flores. Belo livro. Vale!
Registro #1510 (didático #14)
[início - fim: 15/01/2020]
"Gravura em metal: passo a passo", Helga Correa, Santa Maria: Edição do autor, 1a. edição (2020), brochura 15x23 cm, 38 págs. ISBN: 978-65-901771-0-0