Do Joca Reiners Terron já havia lido três bons livros: "
Não há nada lá", "
Guia de ruas sem saída" e "
A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves". "
Noite dentro da noite" é seu lançamento mais recente. Assim como na conhecida peça de Eugene O'Neill, a longa jornada noite adentro de Terron cobra um bocado de esforço e atenção do leitor, mas o envolvimento com o livro provoca generosas recompensas, frutos de uma carpintaria literária povoada por efeitos hipnóticos, férteis, viscerais e
provocativos. Enfim, como nos melhores jogos, o leitor é recompensado pela engenhosidade da cousa. No jogo de Terron o leitor é inicialmente induzido a acreditar que está a ler uma autobiografia, mas só o subtítulo engana, pois logo no primeiro parágrafo, quando esse leitor encontra um improvável Curt Meyer-Clason narrando um acidente que o protagonista não é capaz de lembrar, pois esqueceu-se dele, entende que se trata de uma paródia da construção de uma autobiografia. Quase no final do livro uma voz (em uma fita cassete, de longe no tempo e no espaço, que pode ser da pessoa que diz ser mãe deste protagonista, ou não) diz que "
Esta história é sobre nós, mas você vai contá-la como se fosse sobre outros". É de fato isso que o leitor encontra nas quase quinhentas páginas do livro: a história de uma família (como na peça de O'Neill, disfuncional), que viveu e compartilhou sucessos e memórias, acidentes e alegrias, planos e desafios, surpresas e aborrecimentos, como toda família faz, cada uma de seu jeito. O problema é que esse protagonista sofreu um acidente e obnubilou esse passado familiar. Ele esqueceu, ou melhor, não consegue verbalizar suas emoções e lembranças. Ele parece esforçar-se conscientemente, em seu mundo interior, por entender esse passado, sua história, os acontecimentos mais marcantes de sua vida e família, mas nada verbaliza do que pensa. Um dos muitos narradores de Terron, o já citado Curt Meyer-Clason (alemão que de fato existiu, viveu no Brasil, foi preso pela ditadura Vargas e tornou-se tradutor do português, inclusive de João Guimarães Rosa), atua como uma espécie de tradutor das memórias mirradas do protagonista, como se Terron nos dissesse que apenas um tradutor do calibre de um Meyer-Clason poderia fazer com que uma pessoa entenda o que uma outra pessoa qualquer pensa, deseja, sonha ou lembra. Só mesmo um bom tradutor pode ser capaz de traduzir o livro imaginado pelo autor, que talvez esteja mesmo tentando entender melhor seu passado ou o passado recente de seu país e família, no livro escrito, materializado, que o leitor lê. Mas Terron é, claro, o tradutor de seu próprio livro. Os demais narradores do livro são todos igualmente prepostos das lembranças do protagonista, seja um tio que escreve, uma mãe que grava fitas, um outro tio que conta histórias, um suposto pai que deixa guardados para que o rapaz encontre e decifre. O livro incluí fotografias que sofreram algum tipo de intervenção artística, que funcionam como flashes, memórias que espoucam, mas que não fazem sentido algum. São epifanias com sinal trocado. Tudo o que o leitor pode até acreditar ser factual: um inverno de frio intenso no sul do Brasil; o impacto do golpe militar de 1964 na vida daquela família e em todas as demais famílias brasileiras; a eventual presença de nazistas no sul da América do Sul; a linguagem e a herbologia dos mbyá-guarani; o bullying entre estudantes de uma escola militar na fronteira entre Brasil e Paraguai; os ecos da guerrilha no Araguaia; os efeitos alucinógenos do fenobarbital; relatos antigos da guerra do Paraguai; o lento e permanentemente controlado processo de redemocratização do Brasil, entre tantos outros sucessos, são apenas migalhas, que Terron, como Ariadne antes dele deixou para Teseu no labirinto de Dédalo. Esses fatos/migalhas entretém os leitores, os mantém presos na leitura, em seu labirinto, em sua teia. Beckett já nos ensinou, quando escrevia sobre Proust, que "
O homem que não se esquece de nada, nunca se lembra de nada". Talvez seja assim, esquecendo, por acidente ou por rejeição, por acaso ou invenção, que incorporamos, na vida que contamos a nós próprios, qualquer coisa, qualquer detalhe ou aventura possível, qualquer passado ou ascendência, qualquer causo mirabolante, verossímil ou mesmo vago. Assim vivemos, ai de nós! Interessante livro. Vale.
[início: 04/04/2017 - fim: 10/04/2017]
"Noite dentro da noite: uma autobiografia", Joca Reiners Terron, São Paulo: Editora Schwarcz (Companhia das Letras), 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 463 págs., ISBN: 978-85-359-2876-1