quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

três usos da faca

Este será o último livro que vou resenhar este ano. Quem fez propaganda dele foi don Ronai Rocha. Ao cabo do tempo curto que levamos para ler o livro, pequeno afinal, menos de oitenta páginas, percebemos que não é trivial o que aprendemos. É gratificante notar que estamos com um material bruto onde há algo valioso. Reli várias passagens. Refleti uns dias. Conversei com amigos sobre o tema (Luis Grassi e eu estamos a tentar convencer don Ronai para uma explicação sobre este texto, mas esta é outra história). David Mamet utiliza a estrutura clássica de divisão de uma peça teatral, três atos, três momentos (a saber: definição do problema, complicação do problema, resolução do problema) para analisar aspectos da vida em sociedade. Não que ele exemplifique ou demonstre o tempo todas suas hipóteses de trabalho como em uma tese, factualmente comprovando suas informações. Quase ao contrário disto ele apenas vagamente ancora a estrutura formal das peças nas situações arquetípicas de nosso tempo, de como dramatizamos individualmente e coletivamente nossas vidas. São os aspectos políticos, comunitários e sociais que lhe interessam. Ele tenta delimitar o que é apenas informação do que é reflexão consciente, o que é um bom drama/filme/livro do que é uma total perda de tempo e sentido. É um livro de dramaturgia, um livro técnico de dramaturgia, onde se discute como se pode contar uma história, mas que serve também para qualquer leitor refletir sobre suas posições frente à vida. Afinal, nada como um teatrinho, um drama, para nos entendermos um tanto mais, mesmo sendo os maus atores que somos. [início 01/12/2009 - fim 03/12/2009]
"Três usos da faca", David Mamet, tradução de Paulo Reis, editora Civilização Brasileira (1a. edição) 2001, brochura 13,5x21, 81 págs., ISBN: 978-85-200-0575-6
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Balanço final [31.12.2009]

Este foi um ano de desvios, para o bem e para o mal. Não li muita coisa que tinha planejado. Li muita coisa boa e ruim que caiu-me às mãos por acaso. Li muita coisa em espanhol neste ano, acho que um quinto do total dos livros lidos. Li muitos Javier Marías e também muitos Cees Nooteboom, eles dois marcaram este ano, aprendi a gostar do ritmo - tão distinto - deles dois. Li os últimos Montalbán ficcionais do meu balaio de achados e guardados. Rencontrei coisas poderosas de Le Clézio, Philip Roth, Coetzee e Amèlie Nothomb. Li vários livros infanto-juvenis, alguns por conta de presentes que ia dar, outros de caso pensado mesmo. Gostei da experiência. Li vários romances japoneses. Li mais contos e menos ensaios neste ano. Li muito mais poesias do que no ano passado. Achei muitas coisas boas em sebos , tanto pela internet quanto ao vivo, em Porto Alegre, em São Paulo e também nos sebos espanhóis, de Madrid e Barcelona. Li livros editados por amigos, que sempre são difíceis de classificar, mas alguns eram realmente bons. Espero não ter sido nem pernóstico nem tímido nas resenhas. Criei marcadores/tags novos. Talvez eu junte todos eles em algo mais geral no ano que vem. Veremos. Foram 134 livros, mais precisamente 46 romances, 23 de crônicas ou ensaios, 11 de contos, 10 infanto-juvenis, 9 de perfis ou memórias, 8 de poesias, 6 novelas, além de 21 de outros gêneros (4 de fotografias, 3 cartuns ou mangás, 3 de gastronomia, 2 de turismo, 2 didáticos, 2 livros de arte, 1 de aforismos, 1 de cartas, 1 dicionário, 1 vocabulário e um único romance policial). O ano que vem será um ano marcado pelo futebol e pela política, dois temas tristes. De futebol nada a declarar, a copa do mundo pouco afetará minha vida. Já da política não podemos fugir, ela afeta a tudo e a todos sem clemência. Lula e seus petistas amestrados vão mentir à beça neste ano e vão mentir para uma população majoritariamente semi-analfabeta e limitada intelectualmente - meus concidadãos brasileiros, parvo povo - sonho de consumo de todo grupo político medíocre e mal-intencionado como o que atualmente nos governa. Enfim, será um ano podre, do começo ao fim. Mas os livros estão por aí, prontos para serem lidos, portanto terei ao menos algo gratificante para fazer enquanto a canalha pasta nos capinzais da ignorância. Vamos a ver quais serão os títulos que se apresentarão para uma leitura no ano que vem. Enfim, vamos a ver o que se passará em 2010. Vale.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

francis bacon

Esta edição da Cosac Naify tem dois defeitos evidentes. Um é realmente importante: o fato do livro não reproduzir nenhum dos quadros de Francis Bacon em cores. O segundo está na orelha do livro, assinada por Gabriel Pérez-Barreiro, onde se diz que Francis Bacon era escocês, uma bobagem, pois sabe-se bem que o sujeito era um legítimo irlandês de Dublin, filho de mãe irlandesa e pai australiano, se é que isto importa saber-se. Bueno. Qualquer um que tenha tido a experiência de estar perto de um de seus quadros há de se lembrar da potência das cores, do impacto das dimensões, da exuberancia das formas, da originalidade dos seus - se é que se pode dizer assim - retratos e autoretratos. De perto vi quadros dele pela primeira na estival Madrid, sempre ela, ainda no início dos anos 1990. Depois os vi na Bienal de Artes de São Paulo de 1998. Já o conhecia de catálogos e livros de arte, mas este é um filtro que provoca um outro tipo de experiência, um outro tipo de educação dos sentidos. Este livro reproduz nove sessões de entrevistas realizadas entre 1962, quando Bacon tinha pouco mais de cinquenta anos, já senhor absoluto de sua arte, até 1986, com ele já quase octagenário, ainda produtivo e reflexivo sobre sua produção plástica. As entrevistas foram sempre feitas por David Sylvester, um jornalista e crítico de artes inglês bastante respeitado (ele chegou a ganhar um prêmio importante na talvez mais importante das bienais de arte, a da sereníssima Veneza, em 1993, exatamente pela curadoria da obra de Francis Bacon, que havia falecido no ano anterior). A reflexões de Bacon sobre arte e sobre sua produção são poderosas, se superpõe a cada entrevista e se complementam. Quando uma pessoa genuinamente inteligente fala sobre algo sempre deixa ao receptor de sua fala oportunidade e tempo para maturação das informações. Acredito até que mais que simplesmente informações o que Bacon e Sylvester produzem são mesmo idéias, que levam o interlocutor a pensar por si próprio. O livro é muito bem editado. Quase 150 ilustrações são distribuídas cronologicamente nele (pena que nenhuma em cores, preciso dizer uma vez mais). Bacon fala muito sobre o processo criativo, seus procedimentos para alcançar um resultado, sobre a evolução e possibilidades dos materiais. É um bom livro para ser apreciado por todo aquele que aprecia as artes plásticas e por todo aquele curioso sobre as infinitas possibilidades de entendimento do que é genuinamente humano. Vou marcar este livro na seção "perfis e memórias" mas poderia fazê-lo também na seção "livros de arte", sem prejuízo algum. [início 30/11/2009 - fim 02/12/2009]
"Entrevistas com Francis Bacon", David Sylvester, tradução de Maria Teresa Resende Costa, editora Cosac Naify (2a. edição) 2007, brochura 17x23, 206 págs., ISBN: 978-85-7503-624-2

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

senhor de musashi

Em "A vida secreta do senhor de Musashi" encontramos duas novelas curtas de Junichiro Tanizaki, um escritor japonês que morreu em meados dos anos 1960 mas que ainda hoje é bastante popular e bastante respeitado. Na primeira novela (que dá nome ao livro) dois relatos, de dois personagens distintos, se sucedem. Ambos descrevem características biográficas e factuais de um temido senhor feudal, desde sua infância, até os anos em que já é poderoso e tem pleno domínio de sua região. Os dois relatos contam o impacto na psique deste sujeito provocado pela experiência de ver, quando jovem, como as mulheres de um castelo preparavam as cabeças cortadas dos inimigos (que em geral tinham seus narizes cortados como forma final de humilhação - preciso estudar para entender melhor isto). Quando adulto ele usa a cabeça de um de seus servos (que é um dos narradores da história) como fantoche e somente se relaciona sexualmente com sua mulher e concubinas na presença desta cabeça/fantoche. O outro narrador é uma velha empregada do senhor feudal, que no fim da vida está recolhida em um mosteiro. Para ela, mulher que vê e participa com assombro dos jogos sexuais de seu senhor, a degradação é menos inteligível ou aceitável. É uma história que se acompanha com curiosidade, que fala de um mundo de regras rígidas de comportamento. Há muita movimentação, muita ação física, mas também descrições psicológicas sofisticadas dos personagens mais importantes. Já a segunda novela, Kuzu, trata de como um escritor se prepara para escrever um romance histórico, usando como material ficcional os anos em que o Japão feudal teve dois imperadores, um oficial em Edo, a atual Tóquio, e outro escondido nas montanhas de Yoshino, uma região remota do centro do Japão. O escritor encontra com um amigo que vai a região das montanhas de Yoshino pedir a mão de uma moça em casamento. Ele ouve a história de como a mãe do amigo foi vendida pelos pais para uma casa de divertimentos (gueixas) qando era pequena e de como ela foi adotada posteriormente por uma rica família na capital. O material que o autor coleta - material que fala dos anos em que o imperador celestial viveu nas montanhas - é fragmentário, confuso, não o deixa satisfeito. Ele percebe que para reconstruir o passado não basta um conhecimento objetivo das coisas, mas sim um envolvimento particular, como aquele muito forte que ele teve com a história da família de seu amigo ou com aquele que experimenta quando descobre quem será sua futura mulher. Tanizaki parece dizer ao leitor que os livros são produzidos também apenas com a imaginação, com a invenção, não faz falta justificá-los com dados e informações objetivas. Preciso ler mais coisas deste sutil escritor. [início 28/11/2009 - fim 30/11/2009]
"A vida secreta do senhor de Musashi - duas novelas", Junichiro Tanizaki, tradução de Dirce Miyamura, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2009, borchura 14x21, 219 págs., ISBN: 978-85-359-1531-0

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

los hechos

Não faz muito tempo que li "Indignation", o penúltimo - e muito bom - livro de Philip Roth. Este ano ele publicou "The humbling", que não foi muito bem recebido pela crítica nos EUA. Bem. Quando vi este "Los hechos" na vitrina de uma das livrarias da Aribau em Barcelona, sabia que ele não ficaria ali nem um minuto mais. "The facts" (que é o título original) foi publicado em 1988, justamente entre "O avesso da vida", de 1986, e "Mentiras", de 1990, ambos já resenhados aqui. Formalmente este é um livro autobiográfico, mas sempre há muita invenção nas coisas que Philip Roth escreve. "O avesso da vida", seu livro anterior a este, é um livro francamente ficcional. Por mais que possamos identificar que várias das situações criadas podem ser associadas livremente com fatos da vida de Roth, aceitamos o livro como pura ficção. Mas a fragmentação das histórias neste livro serve talvez para lembrar o leitor que por entre as frestas das vidas vividas e das vidas contadas nós - homo sapiens sapiens - sabemos nos esconder bem. Já em "Mentiras", publicado dois anos depois de "Los hechos" Roth volta a usar seu próprio nome (e provavelmente coisas de sua vida pessoal). O leitor é induzido a permanecer em dúvida se deve ou não continuar identificando o narrador e protagonista da história com o escritor. Em "Los hechos" há um hibridismo entre realidade e ficção mais explícito. O livro começa e termina com cartas. A primeira é de Roth para um personagem (o mercurial Nathan Zucherman, seu alter-ego). A segunda deste, Zucherman, respondendo à Roth. Ele fala brevemente, mas de forma cruel, sobre os problemas acredita ter encontrado no enredo e na construção do romance que estamos lendo. As duas cartas funcionam como uma crítica automática e antecipada do livro. Entre as duas cartas encontramos no livro seis passagens biográficas de Roth: as duas primeiras bem curtas, uma sobre seu pai e a outra sobre sua infância de menino judeu em sua Newark natal. As demais um tanto mais extensas: uma sobre sua vida na universidade, seus primeiros relacionamentos amorosos; outra sobre sua vida com sua primeira mulher, seus projetos pessoais; a seguinte sobre a indignação que seu primeiro livro - Goodbye, Columbus - gerou na comunidade judaica; e a última sobre sua crise de peritonite, suas complicadas tentativas de divórcio e a acidental morte de sua primeira mulher - que formam a parte mais divertida do livro - e também sobre o sucesso comercial de seu terceiro livro - Complexo de Portnoy. Na segunda carta Zucherman censura o livro, aponta omissões e falhas, lamenta as elisões, pede a opinião de sua mulher inglesa - que igualmente censura a própria existência ou idéia do livro. Zucherman sugere por fim que Philip Roth faça a barba, que seja menos judeu, que não se deprima mais. Trata-se de um livro muito divertido. Se inegavelmente devemos classificá-lo de auto-biográfico, ao menos podemos dizer que Roth utiliza uma forma muito especial de contar certas passagens de sua vida. Lembro-me de que ao ler "Mentiras" fiquei curioso por entender melhor onde ficava a fronteira entre ficção em realidade. Aparentemente Roth - que teve mesmo uma depressão e passou por um longo período de recuperação de saúde após uma intervenção cirúrgica logo após a publicação de "O avesso da vida" - experimentou uma crise de falta de criatividade após vinte anos bastante produtivos. Ao produzir "The facts" parece reiniciar seu trabalho, sua obra literária, tateando um tanto em terreno conhecido, e o faz pedindo a opinião de seu alter-ego favorito. [início 22/11/2009 - fim 26/11/2009]
"Los hechos", Philip Roth, tradução de Ramón Buenaventura, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2009, brochura 12,5x19, 254 págs. ISBN: 978-84-8346-782-4

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

vida de fantasma

Esta edição de "Vida de fantasma" foi publicada originalmente em 2000 e inclui 100 crônicas, três quartos delas escritas entre 1976 e 1996 (basicamente os anos de Felipe González como primeiro ministro espanhol) e um quarto delas escritas entre 1997 e 2000 (nos primeiros anos do governo de José Maria Aznar). Parte são crônicas de costumes, políticas, semelhantes àquelas reunidas no "Pasiones Pasadas", mas não são as mesmas. O sujeito realmente escreve à beça. Nestas o tom é o mesmo. Geralmente ele é muito crítico, tanto aos sucessos do governo socialista de Felipe González quanto aos sucessos do governo conservador de José Maria Aznar. Mas há também um punhado de crônicas literárias e outras quase ficcionais, de um articulista que comenta os autores que tem lido, que fala das lembranças que tem de seu bairro, que comenta a redescoberta de uma cidade que visitou e na qual teve experiências importantes. Há escritos que são obtuários. Os dois textos onde ele fala de seu pai impressionam pelo contraste na forma e no tom, apesar de terem sido publicados com apenas um dia de diferença. A ironia, ou antes, o sarcasmo mesmo, abunda neste conjunto de crônicas. Parece que Marías tem momentos onde prefere ser cruel, mesmo quando afeta algum enfado sobre um tema. Seus textos sobre temas culturais, sobre política cultural levam o leitor a refletir. Formam o conjunto mais uniforme e seminal do livro. Gostei de uma passagem onde ele diz: "La cultura es siempre resultado, nunca proyecto ni tan siquiera processo. Por tanto no obedece a leyes ni tampoco a modas. Creer lo contrario es, en efecto, el error de muchos políticos, aunque me temo que también el de Rubert de Ventós" (um conhecido sociólogo catalão, nascido em 1939, que em um texto da época - 1982 - advertia os madrilenhos por seu talvez excessivo apego a temas culturais). Seguirei lendo este sujeito. E ainda hei de discutir com Lola Vázquez suas impressões sobre ele, agora ainda mais enigmáticas para mim (como nos ensina o narrador de Proust no Guermantes: "cada vez compreendo menos o seu caráter"). Bom livro afinal de contas. [início 06/11/2009 - fim 22/11/2009]
"Vida de fantasma", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2007, brochura 13x19, 487 págs. ISBN: 978-84-8346-424-3

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

miramientos

"Miramientos" é um pequeno livro onde Javier Marías "descreve" fotografias. Em outro livro dele já resenhado aqui ("Vidas escritas") ele havia incluído uma seção deste tipo. Toma-se uma fotografia de um sujeito e dá-se informações factuais sobre a pessoa, sua obra, seus feitos, conectando-as sutilmente com a interpretação do que se vê no retrato. É como um exercício de interpretação de retratos, um exercício de descrição de personalidades. Originalmente as descrições foram publicadas em uma revista chamada "Cuadernos Cervantes", entre os anos 1995 e 1997. Os personagens são todos escritores de lingua espanhola: Valle-Inclán, Borges, Aleixandre, Juan Benet, Bioy Casares, Lorca, Victoria Ocampo, Fernando Savater, Cabrera Infante, Neruda, Eduardo Mendoza, Martinez Sarrión, Luis Cernuda e Horácio Quiroga, além dele mesmo, Javier Marías. É um livro curioso, onde Marías mostra uma faceta de seu virtuosismo, uma das ferramentas que ele utiliza tão bem em seus livros de ficção. [início 13/11/2009 - fim 14/11/2009]
"Miramientos", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2008, brochura 13x19, 127 págs. ISBN: 978-987-566-371-4

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

trevas

Foi Carlos Pereira, fiel boiardo da czarina Gisele Minato, quem me emprestou este livro de Thomas Bernhard. Publicado em 1993 pela Editora Hiena (de Portugal) é um livro difícil de se achar nestes pagos. Este é um dos livros mais caústicos que eu já li. Bernhard não facilita, não tergiversa, não ameniza. Fica muito claro desde o início do livro que hipocrisia, dissimulação e ironia não servem como material literário para ele. Sempre objetivo, ele costuma bater onde dói, preferencialmente naqueles espaços onde escondemos nossos medos, nossas vergonhas, nossas faltas. Em "Trevas" são reproduzidos seis discursos ou entrevistas, publicadas originalmente entre 1965 e 1988. Thomas Bernhard, que morreu em 1989, curiosamente promoveu um exílio póstumo, pois determinou em seu testamento que suas obras não deveriam ser publicadas ou encenadas em território austríaco. Nada estranho se considerarmos que ele era chamado por seus compatriotas de "Netsbeschmutzer", algo como "o sujeito que suja seu próprio ninho". A edição é muito bem cuidada e tem uma boa apresentação do livro, além de uma detalhada cronologia da vida de Bernhard (ambas produzidas pelo tradutor, Ernesto Sampaio). Os textos reproduzidos no livro foram originalmente discursos que ele fez em cerimônias de entrega de prêmios literários. Bernhard sempre lembra seu público dos crimes cometidos durante as guerras mundiais do século XX, sempre faz questão de demostrar o quanto seus contemporâneos preferem esquecer ou falsear seu passado, sempre aponta focos de ressurgimento da mentalidade nazista na sociedade austríaca. Para ele os crimes do nazismo foram coletivos, mas a penitência deveria ser pública, sincera e individual (ele antecipa que isto jamais acontecerá, almas mortas que são seus concidadãos europeus. Já nas entrevistas ele fala com agressividade contra os encontros literários para os quais é convidado, pois sabe que neles tudo é pleno de farsa e mediocridade - geralmente às custas de dinheiro público. Seus comentários sobre a qualidade dos jornais e dos jornalistas de sua época são divertidíssimos ("... e eles julgam que aquilo é alguma coisa, e afinal não passa de estupidez!", diz ele em uma das entrevistas). Preciso sim ler mais este sujeito. [início 04/11/2009 - fim 08/12/2009]
"Trevas", Thomas Bernhard, tradução de Ernesto Sampaio, editora Hiena (1a. edição) 1993, brochura 14x21, 77 págs., sem ISBN

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

negra espalda del tiempo

Eu que sempre penso que sei tudo, claro, sempre me surpreendo (acho que será sempre assim). Pensava que "Todas as almas" fosse o prólogo de "Tu rostro mañana", mas este papel fundador no estilo e ritmo bem particular que encontramos no último romance publicado por Javier Marías está sim neste curioso "Negra espalda del tiempo", onde ficção e realidade se misturam, se complementam, se escondem uma na outra, enganando e educando o leitor. "Negra espalda del tiempo" foi publicado originalmente em 1998 (imediatamente antes de "Tu rostro mañana", que acaba de ganhar sua versão integral, em um único volume de sonoras 1390 páginas). Trata-se de um livro autobiográfico, mas como se o biografado, ou antes, os biografados, fossem alguns dos livros e histórias de Marías ("Todas as Almas", principalmente). Ele fala de seus personagens e de seus amigos, das histórias que inventou e das histórias que viveu. Quem gosta de jogos literários se envolve muito no livro (principalmente quem já leu os romances anteriores de Marías). Ele cita muitos livros que tiveram o destino funesto de só sobreviverem na memória de uns poucos leitores, ou nos apontamentos de escritores menores. Cita também as biografias de sujeitos que pareciam estar a produzir uma grande obra, mas que desaparecem e deixam seus livros orfãos, a tentar sobreviver. Fala de viajantes, que viveram a grande guerra (a primeira) e se esfumaram em lugares exóticos ou morreram em circunstâncias rocambolescas. Sua descrição do caráter de seu antigo editor (que o atormentou por anos a fio - editor da Anagrama, acredito eu) é muito engraçada. Curioso como este livro lembra ao mesmo tempo o "Los hechos" de Philip Roth, que vou resenhar em breve, e também o "Summertime", do Coetzee, que resenhei recentemente. Ficamos sabendo como Marías se tornou "Rei" do fictício "Reino de Redonda", sucedendo M.P. Shiell e John Gawsworth. Ele fala sobre as coisas que observa no seu dia a dia, no seu bairro, na sua cidade, nos encontros, jantares, recepções, em que conversa com amigos e/ou desconhecidos. Certos encontros parecem emular algo que pode ser transformado em ficção, outros parecem morrer na memória do escritor, como se fossem luminárias públicas a apagar em uma manhã qualquer (em uma bela metáfora que ele cria usando elementos tão banais). A maneira como seus amigos e parentes se envolve em seus jogos literários ocupa boa parte do livro. Alguns querem ser retratados,imortalizados em livro, mesmo que com pseudônimos, outros o proibem de serem citados, ficcionalizados. As histórias de seu bisavô cubano podem ser verdadeiras ou totalmente inventadas, irreais que parecem. Há muitas reproduções de fotografias e ilustrações no livro. Estas imagens pontuam os temas do livro, mas não são exatamente citadas no corpo do texto, como se ao leitor restasse aproveitá-las como migalhas de pão lançadas à pombos em um parque. O livro inclui uma resenha muito boa de Guilhermo Cabrefa Infante e um dos usuais prólogos de Elide Pittarello (sempre presentes nesta coleção de livros da Debolsillo que amelhei por aí). É um bom livro de Marías, mas eu ainda prefiro o monumento que é "Teu rosto amanhã". Veremos o que ele produzirá no futuro. [início 30/10/2009 - fim 03/11/2009]
"Negra espalda del tiempo", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2007, brochura 13x19, 216 págs. ISBN: 978-987-566-258-2

domingo, 6 de dezembro de 2009

pawana

Comprei este livro na feira de Porto Alegre. Neste ano a maioria dos livreiros, jornalistas, escritores e especuladores de plantão reclamaram do formato, organização e vendas. Arautos, pregoeiros e cassandras anunciavam o fim do livro e do próprio futuro da feira. Em meio aos ventos e a grita geral o povo de uma banca, capitaneada pela czarina Gisela e seus fiéis boiardos Carlos e Claudio, parecia não se importar muito com as reclamações e seguia seu rumo, o de capitães de longo curso. Trabalhavam diligentes e sérios, com critério, vendendo livros de uma única editora (a Cosac Naify). Duvido que eles tenham vendido muito menos que nos anos anteriores. Acredito que a segmentação, a fuga da mesmice dos títulos encontrados na maioria das bancas seja o diferencial a ser alcançado. A CESMA também esteve na feira e teve boas vendas, calçada em seus bons títulos e no bom atendimento. "Pawana" é uma pequena novela que conta uma história terrível. Mesmo o mais otimista termina o livro um pouco mais descrente da raça humana, de seu futuro, de sua moral torta, de sua ética vaga. Le Clézio conta a história da descoberta de um local próximo ao sul da atual baixa Califórnia, na costa oeste do México, onde as baleias costumavam ir para ter seus filhotes. A matança é contada por dois sujeitos (o capitão de navio baleeiro, que descobriu a passagem, e um jovem marinheiro, em sua primeira viagem). O capitão parece se penitenciar pelo seu ato inaugural. O jovem acrescenta que à morte das baleias seguiu-se a destruição do lugar, da paisagem, da fauna, dos índios, até que em poucos anos não sobrasse nada além de areia e restos brancos das carcaças das baleias. Assim como viu as baleias o jovem vê uma jovem índia do lugar ser prostituída e descartada. A degradação toma conta simultaneamente das coisas e da alma dos homens. O leitor tem de ser corajoso e seguir, mesmo quando lê trechos como: "Acho que já não tínhamos alma, não sabíamos mais nada da beleza do mundo. Estávamos embriagados pelo cheiro de sangue, pelo ruída da vida que escapava com o sopro. Eu agora me lembro do olhar dos homens. Será que não notei na hora? Era um olhar decidido e sem piedade. (...) Lembro-me do olhar do garoto que estava com a gente, que me encarava com uma pergunta sem resposta. Hoje eu sei que pergunta era essa, a explicação que ele me pedia: como alguém pode matar o que ama?" Le Clézio consegue em um pequeno texto nos alertar e inspirar. As "Pawana", como os nativos esquimós chamam as baleias, continuam sendo massacradas, como se os homens continuassem incapazes de amar. Talvez seja assim mesmo, talvez sejamos capazes de apenas amar o passado, o lendário, o já morto e destruído. A edição da CosacNaify é belíssima, com ilustrações de Eloar Guazzelli que amenizam um tanto a crueza do texto. [início - fim 30/10/2009]
"Pawana", J.M.G. Le Clézio, tradução de Leonardo Fróes, ilustrações de Eloar Guazzelli, editora Cosac Naify (1a. edição) 2009, capa-dura 16x23, 63 págs., ISBN: 978-85-7503-848-2

sábado, 5 de dezembro de 2009

tempestade

Quando li recentemente "Pasiones Pasadas", de Javier Marías, eis que logo no início ele menciona um plágio, sofrido por ele, tempos idos, na temperamental Espanha dos anos 1990. O plágio teria sido praticado por um sujeito que Marías desdenha breve mas cruelmente, se furtanto de dar os nomes dos membros do corpo de jurados que deram ao livro plagiado um importante prêmio literário espanhol. A crônica plagiada era uma onde Marías descrevia seus dias na sereníssima e inafundável Veneza. Lembro-me bem como vários escritores e artistas citam Veneza em seus escritos: há textos belíssimos de Joseph Brodsky, Evelyn Waugh, Elias Canetti, Woody Allen, Richard Wagner, Igor Stravinsky, onde Veneza é descrita e louvada. Claro, Veneza para mim sempre será a mítica cidade descrita no "Brideshead Revisited", mas esta é outra história, cara talvez apenas ao Luiz Melo ou ao Renato Cohen. Procurei saber quem era o torpe plagiador descrito por Marías e eis que achei este "A tempestade", romance de Juan Manuel de Prada. Lembrei-me de ter visto muito recentemente um filme baseado neste livro. Resolvi lê-lo (há que se respeitar os fados, seguro que sim). É um romance bem acabado, mas nada que desperte muito entusiasmo no leitor. Manuel de Prada inventa um jovem doutorando de artes, que viaja à Veneza. Na noite de sua chegada eis que ele simultaneamente presencia um crime e se torna o principal suspeito do assassinato. Outros personagens se apresentam: um delegado minuncioso, uma concierge voluptuosa, um estafeta canalha, um curador de artes venal, uma artista/falsificadora desejável. O enredo envolve resolver o crime utilizando elementos que estão em um quadro importante de Giorgione (Giorgio Barbarelli da Castelfranco), pintor veneziano do início do século XVI, que se chama exatamente "A tempestade". Giorgone foi discípulo de Bellini ("which one", diria Lord Marchmain). Este enredo lembra, óbvio, o esquema fácil e apelativo de livros como o "Código da Vinci". Logo nas primeiras páginas o leitor já antecipa boa parte dos sucessos do livro. Não há muito o que acrescentar ao enredo. Aos poucos percebemos como será o desfecho. É um livro mal escrito (ou talvez mal traduzido, não sei a certo o que dizer). Manuel de Prada abusa de metáfaros sexuais como se fosse difícil a qualquer vivente emular as curvas e as pudendas de uma mulher, mas nele tudo soa artificial, assexuado demais na verdade. É um livro bobo do começo ao fim, incrível saber que ele ganhou um prêmio Planeta (afinal de contas trata-se de uma boa e tradicional editora, que outorga este prêmio já há tantos anos). Não encontrei exatamente quais foram as frases e/ou parágrafos plagliados. No livro de Javier Marías ele cita uma porção deles, mas eu não tenho paciência para procurá-las. Na internet achei várias menções a outras acusações de plágio entre autores espanhóis (inclusive com o nobelizado Camilo José Cela). Tudo muito ligeiro e irrelevante. Vamos seguir em frente e esquecer de vez este sujeito (mas não Veneza e o quadro de Giorgone, belíssimos). [início 05/11/2009 - fim 07/11/2009]
"A tempestade", Juan Manuel de Prada, tradução de Luiz A. de Araújo, editora Best Seller (1a. edição) 2003, brochura 13,5x21, 320 págs., ISBN: 85-7123-870-7

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

el premio

"El premio" foi publicado originalmente em 1996 e pertence ao último ciclo de histórias do detetive Pepe Carvalho, criação do industrioso Manuel Vázquez Montalbán. Os "hechos" do romance se dão na fase final do governo socialista de Felipe González (que ficou 14 anos no poder). Contam um tanto da conturbada transição para o governo liberal de José María Aznar (que ficaria seus 8 anos no poder). Foram anos onde escandalos de corrupção, crimes de grupos para-militares atuando à margem da lei, incertezas sobre o futuro da Espanha apontavam para a necessidade imperiosa de alguma renovação política. Certamente estes anos foram de desgosto para Montalbán, um sujeito que não suportava governos despóticos e populistas e teve de amargar o volta de um governo conservador à Espanha. Ele não chegou a viver para ver como os atentados terroristas em Madrid contribuiram para a derrota de Aznar nas eleições de 2004. Seguro que ele sairia pelo Raval pagando rodadas de Cava aos amigos. A história do romance é o que menos importa (trata-se de descobrir quem matou um rico empresário, um típico problema do crime na sala fechada, sempre utilizado em histórias de detetive). O tempo no romance vai e vem. Primeiro acompanhamos os sucessos dos momentos que antecedem a entrega de um importante prêmio literário, patrocinado pelo empresário, ainda rico, mas tecnicamente em risco de perder seu patrimônio e sem o respaldo político oficial que sempre teve em tempos mais favoráveis; depois o romance nos conta como Carvalho chegou a Madrid, contratado para proteger o sujeito que será morto na noite seguinte; na seqüência acompanhamos como o corpo do morto aparece, como é feito o censo dos principais suspeitos, todos presentes no salão de entrega do prêmio literário; volta-se novamente o tempo e seguimos Carvalho em um almoço glorioso (a gastronomia sempre presente em suas histórias) com o empresário; e assim segue o romance, indo e vindo no tempo, apresentando as impressões de Carvalho antes e depois da morte - inevitável, afinal sabemos, quase uma libertação para o enredado empresário. O romance serve para Montalbán refletir sobre a instabilidade dos anos finais do governo socialista, nos explicando como a vontade de manter-se no poder a qualquer custo, lentamente contamina a moral e a ética do mais despreendido e bem intencionado dos governantes. É algo muito parecido com o que vemos atualmente no Brasil. Não há aliança, não há apoio que seja constestado pelos ideólogos e dirigentes do atual governo. Tudo vale para dar continuidade ao modelo de gestão, péssima afinal de contas, e principalmente para manter os milhares de cargos públicos fartamente distribuídos aos amigos, quase sempre inéptos e despreparados. Montalbán nos ensina que a História não é uma ciência exata mas é o tipo de conhecimento que poupa muitos aborrecimentos a quem se dá ao trabalho de estudá-la, sem cabrestos ideológicos ou servilismos típicos do fascismo. A alternância no poder - nas democracias de fato - não é apenas desejável, mas profilática e saneadora. No romance Carvalho reencontra uma bela mulher, que já conhecemos do "Assassinato no Comitê Central", publicado em 1981. Nas conversas com ela e seu filho adolescente Montalbán nos apresenta como também a sociedade espanhola (não apenas o mundo político) estava em crise, como a "movida madrilleña" já era apenas um simulacro dos sucessos e do auge nos tempos de pós-redemocratização. "El premio" vale a leitura. Agora só me ficaram faltando "Tres historias de amor" e "Historias de fantasmas". Seguro que estes volumes me encontrarão um dia. Paciência então. [início 09/08/2009 - fim 28/10/2009]
"El prêmio", Manuel Vázquez Montalbán, editora Planeta (1a. edição) 005, brochura 15x23, 347 págs. ISBN 978-84-08-06001-7

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

pasiones pasadas

Estávamos os três, Lola, Manolo e eu, em uma terraza da Calle de Huertas de Madrid, mas precisamente no "La plateria bar museo", bem perto do Museu do Prado, como não citar isto também. Manolo dizia que a señora camarera era vasca, que era educada, que sabia alemão. Lola retrucava que seria impossível ele afirmar isto pois a señora apenas havia trocado uma ou duas frases conosco, como poderia ele saber quem era ela, de onde vinha? Eu me divertia com a conversa rápida e contei o que estava lendo naquela época mesmo, a história dos personagens Deza e Tupra do "Tu rostro mañana" do também madrileño (como eles) Javier Marías. Manolo parecia estar emulando a habilidade que os dois personagens tinham de interpretar rapidamente seus interlocutores. Falei de minha admiração por Marías, mas Lola me advertiu que ele escrevia bons livros, mas se comportava como uma "pessoa mayor". Na hora não entendi bem. Agora que comecei a ler seus ensaios e crônicas (li três livros, este é o primeiro que resenho) acho que entendi um tanto melhor. Neste "Pasiones pasadas" estão reunidas 31 crônicas publicadas em jornal entre os anos 1982 e 1990 (um terço deles neste último ano). São crônicas publicadas antes de seu primeiro grande sucesso de público e crítica (Corazón tan blanco, de 1992). Não é preciso ler muitas das crônicas para perceber que Marías é um anarquista (mas que soa conservador), um elitista (bem à sua maneira), politicamente incorreto quase sempre, zeloso e orgulhoso de sua individualidade. O desprezo que ele tem à memória de Franco e do franquismo é algo que pode levar o leitor ligeiro a incluí-lo ao campo dos intelectuais de esquerda, mas ele me parece muito honesto intelectualmente e esgrime seus argumentos sobre os mais variados temas atingindo, seguro que sim, sujeitos à esquerda e à direita do espectro político, sem piedade e sem temor. A edição que li tem um excelente prólogo de Elide Pittarello, as procedências de todas as crônicas e duas notas do próprio autor, a original de 1991 e uma outra de 1999, quando as recompilou. Nesta última nota ele reflete sobre as venturas pelas quais os textos passaram desde a primeira publicação. As crônicas são apresentadas por temas: lugares e viagens, pessoas e amigos, a sociedade e as transformações pelas quais passava a España, a literatura e a arte de escrever. O livro termina com um texto inédito em livro, apresentado originalmente na forma de conferência em uma universidade, onde ele descreve como foi sua inserção no mundo literário e como era o processo de manter-se nele mantendo alguma qualidade, originalidade e honestidade. Gostei do livro. Seguro que haverá mais do que falar sobre Marías nas próximas resenhas de seus livros de crônicas. Quando poderei convidar Lola e Manolo novamente para discutir Marías, perguntar para a señora camarera se ela sabe mesmo alemão, bebericar bons vinhos, tapear pela estival Madrid? [início 19/10/2009 - fim 23/10/2009]
"Pasiones Pasadas", Javier Marías, ediciones Debolsillo (1a. edição) 2008, brochura 13x19, 216 págs. ISBN: 978-987-566-379-4

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

beringelo

Em "Beringelo" Orlando Fonseca dá voz a um cachorro. O resultado é um pequeno livro voltado para o público infanto-juvenil. Beringelo conta um tanto de suas venturas, seus nomes, sua personalidade, suas lembranças (que são vagas, segundo ele mesmo). Conta principalmente como conquistou o amor de um jovem dono e sua família. O pequeno cachorro tem até de se virar como cão-policial, quando usa seus dotes para ajudar um delegado a resolver o sequestro do garoto que virá a ser seu dono. Orlando gosta de jogos verbais e trocadilhos, então faz seu personagem usá-los o tempo todo. Li recentemente "Eu sou um gato" do escritor japones Natsume Soseki, publicado em 1905. Nele o único personagem que fala é um gato vagabundo dos bairros de classe média da Tóquio de cem anos atrás. Claro que o romance de Soseki tem mais fôlego, ou melhor dizendo, que o gato de Soseki tem mais fôlego que o cachorro de Orlando Fonseca, mas isto não é um problema. "Beringelo" é um romance bem escrito e divertido de se ler. Eu teria dado um tratamento gráfico melhor, aumentaria o corpo das letras (pequenas demais para atrair um jovem leitor, acho eu), incluiria ilustrações mais generosas que as divertidas patinhas que percorrem as páginas do livro, mas talvez o projeto desta coleção da editora Movimento não permita muitas variações no design. Paciência. Parabéns ao Orlando por mais esta aventura literária. [início 23/10/2009 - fim 23/10/2009]
"Beringelo: uma au-autobiografia", Orlando Fonseca, editora Movimento (1a. edição) 2009, brochura 15,5x23, 21 págs., ISBN: 978-85-7195-145-7

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

rainha do castelo de ar

Neste último volume da trilogia Millennium Stieg Larsson tenta resolver todos as questões que ficaram em suspenso nos volumes anteriores. Comparado com a correria do final do segundo volume no início deste há mais descrição, mais reflexão sobre os problemas e muitos, muitos mesmo, telefonemas. Os personagens que já conhecemos, o jornalista Mikael Blomkvist e a hacker-heroína Lisbeth Salander, bem como a maioria dos demais, dezenas de coadjuvantes, seguem por hospitais, delegacias, promotorias, redações de jornal, cada um cumprindo seu papel na trama. Após um início tranquilo as reviravoltas do roteiro começam a aparecer e o círculo de envolvidos aumenta, incluíndo a sede do governo sueco, o presente e o passado dos serviços de espionagem, o universo do hackers anônimos amigos de Salander. A chave de todo o livro está na cabeça da heroína, presa em uma instituição psiquiátrica. O jornalista consegue de forma mirabolante que ela tenha acesso a um "palm book" e com ele, mesmo atrás das grades, a moça consegue coordenar todos os esforços por destrinchar a trama, desmascarando os maus, punindo os canalhas, desnudando os corruptos. Quando, já na parte final do livro, inicia-se o julgamento de Salander - previamente orquestrado para prejudicá-la definitivamente - eis que toda a maquinaria montada por ela e Blomkvist desmascara todo o grupo de envolvidos nos crimes descritos nos três volumes da saga. Muitas cabeças cairão, o leitor fica feliz em alcançar um final feliz. A moça é libertada. Se reconcilia com o jornalista, física e espiritualmente. Tudo muito bonito, muito ajeitado, muito esquemático. Há algumas horas que o sentido fica vago e nos deparamos com termos algo obtusos, acredito que por conta da tradução ser de segunda mão, feita a partir de uma tradução francesa. O autor utiliza um procedimento para acelerar a trama que me incomoda: vários capítulos terminam com estruturas do tipo "conversaram por duas horas"; "combinaram que"; "falaram sobre como fariam tal coisa"; "ele explica tudo em cinco horas"; "e assim ambos ficaram sabendo que". O texto fica truncado demais e esquemático demais para o meu gosto. De qualquer forma é um bom "thriller", um livro que ajuda o leitor a entender melhor como funciona a engenharia social nos países escandinavos, sem muitas concessões ou glamurização. [início 13/10/2009 - fim 20/10/2009]
"A rainha do castelo de ar - Millennium 3", Stieg Larsson, tradução de Dorothée de Bruchard, editora Companhia das Letras (1a. edição) 2009, brochura 16x23, 685 págs. ISBN: 978-85-359-1520-4