terça-feira, 27 de setembro de 2011

nós passaremos em branco

Foi don Caetano Galindo, o varão industrioso, tradutor do Ulysses, quem me alertou pela primeira vez sobre Luís Pellanda, citando-o como um dos bons escritores de Curitiba, durante un censo literário rápido que fizemos aqui durante o Bloomsday Santa Maria. Assim, quando encontrei por acaso esse "Nós passaremos em branco", não tive dúvidas em comprá-lo. Nele encontramos crônicas ambientadas em Curitiba. São crônicas recentes, de 2010 e 2011. Pellanda inclui um mapa do centro da cidade para ajudar o leitor não familiarizado com a cidade a acompanhá-lo nas histórias. Fiquei surpreendido mesmo com esse sujeito. Ele faz o censo das tribos urbanas de sua cidade, sabe manter alguma tensão, contar causos, inventar alguns e ao mesmo tempo acrescentar lirismo às narrativas. As histórias são muito bem escritas, Pellanda um bom observador. A cidade e seus habitantes (algo emblemáticos, claro, como se deve fazer em crônicas de jornal) aparecem vívidos. Nada é piegas ou artificial (e é fácil encontrar crônicas que se arrastam em sentimentalismos bobos, obviedades, platitudes e lugares-comuns). Em geral ele fala de suas caminhadas e pausas em bares e restaurantes, mas há também reflexões sobre filmes, um zoológico, um circo. Às vezes ele está sozinho, noutras com uma criança no colo, como se precisasse de uma testemunha, um interlocutor. Ele mescla acontecimentos recentes e lembranças de juventude com muita competência e tino. O rio de sua cidade, o rio Ivo, torna-se um Lete às avessas, pois as memórias de Pellanda parecem brotar dele, mesmo escondido, canalizado, sobre a rua Vicente Machado. Quando o leitor termina o conjunto das vinte e nove crônicas (e se lamenta por não ter mais algumas para ler), eis que ele nos oferece um conjunto do que ele chama de antologia dos demônios curitibanos. São oito divertidas histórias, perfis biográficos, contos infernais, escritas num tom que tem algo de solene, eclesiástico, mas é sarcástico como há tempos não lia num sujeito (que é jovem, mas domina um vocabulário e um estilo que denunciam disciplina nas leituras e cultura refinada). Deu-me até vontade de reler meu Dante, surrado e velho de guerra. Quem disse que há inveja boa não entende nada da alma humana. Invejo a sorte de Curitiba em contar com um cronista desse calibre. [início 18/09/2011 - fim 21/09/2011]
"Nós passaremos em branco", Luís Henrique Pellanda, Porto Alegre: Arquipélago editorial, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 192 págs. ISBN: 978-85-60171-19-4

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

bobby gold

A primeira versão desse livro foi publicada em 1985, mas é como se ela não existisse, não consegui encontrar nenhuma outra informação confiável sobre ela. Sei apenas que após Anthony Bourdain alcançar sucesso e visibilidade, no início dos anos 2000, "Bobby Gold" foi republicado. É um livro pequeno, escrito em capítulos curtos, quase sketches, talvez já pensados para uma versão cinematográfica, uma adaptação teatral, um roteiro. Na época do lançamento original Bourdain ainda era apenas um jovem cozinheiro (com sólida formação culinária no Culinary Institute of America), errático e algo intoxicado. Não havia se tornado ainda o grande e habilidoso chef que escreveria o best-seller "Cozinha Confidencial" quinze anos depois. Em "Bobby Gold" acompanhamos um jovem rapaz judeu de classe média alta que se envolve com tráfico de drogas, passa dez anos preso, ganha massa muscular, alguma sabedoria prática e torna-se o robusto guarda costas (faz-tudo parece ser o termo mais adequado) de um mafioso menor da Manhattan de início dos anos 1980 (os anos agitados onde não se sabia da existência da AIDS, a policia americana era francamente corrupta e drogas eram consumidas com entusiasmo - e quase abertamente - nas boates controladas pela máfia). São histórias bem humoradas e irônicas. Bobby Gold é um personagem interessante (algo esquemático e pouco verossímel nessa aparição, mas tem o physique du role dos bons personagens dos romances policiais). Bourdain é um bom observador e sabe mesclar algo da cultura pop de seu tempo, citações musicais e literárias, informações insuspeitas sobre como se opera para lavar dinheiro, administrar bares e restaurantes, controlar bêbados e drogados, cobrar dívidas. Ele aproveita também algumas oportunidades no texto para descrever algo da gastronomia sofisticada dos restaurantes três estrelas. A narrativa é descompromissada, a facilidade de Bourdain para a oralidade (ele sabe ser desbocado sem ofender a paciência do leitor) torna "Bobby Gold" um livro agradável de se ler. Muito do material bruto que Bourdain utilizaria no "Cozinha Confidencial" aparece ficcionalizado aqui. [início 16/09/2011 - fim 17/09/2011] 
"Bobby Gold: Leão-de-chácara", Anthony Bourdain, tradução de Pedro Maia Soares, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2005), brochura 14x21 cm, 119 págs. ISBN: 85-359-0675-4 [edição original: Bobby Gold (Edinburgh: Canongate Crime) 2001]

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

terramarear

Fazia tempo que não lia (até o final) um livro tão ruim. Que bobagem sem fim, que caça-níqueis bobo. Só segui até o fim pois queria conferir até onde Heloísa Seixas e Ruy Castro seriam capazes de enfileirar suas vaidades mirradas e requentar suas histórias de viagens. Que a vaidade esteja na motivação de tudo que é humano entende-se (e isso mitiga minha raiva contra os autores), mas o caso de quem entendeu ser editorialmente defensável publicar esse livro pertence a categoria dos vícios e  perversões, como a da ganância e da cupidez. Em "Terramarear" encontramos trinta e quatro textos (bastante heterogeneos) marginalmente aparentados à relatos de viagens. São textos que falam majoritariamente de cinema e música, mas também de literatura, gastronomia, hotelaria. É um livro de causos, boutades, histórias que sempre pedem um final engraçadinho ou inusitado. A maioria dos textos são coisas velhas (dos anos 1980 e 1990). Mesmo os que foram escrito recentemente dão conta de viagens antigas. Mais de um terço do livro enfeixa histórias passadas há vinte anos em quatro cidades: Nova Iorque, Paris, Lisboa e Moscou. Talvez os textos tivessem algum frescor (jornalístico) quando foram publicados originalmente, mas em 2011 as histórias soam anacrônicas e aborrecidas. E a sensação de déjà-vu contamina até os relatos de viagens mais recentes. Patético, muito ruim mesmo. Arre! [início 12/09/2011 - fim 14/09/2011] 
"Terramarear: peripécias de dois turistas culturais", Ruy Castro, Heloisa Seixas, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 213 págs. ISBN: 978-85-359-1933-2

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

atos de amor

Esse é o último dos livros de Jim Harrison que encontrei entre meus guardados. "Atos de amor" ("Farmer" no original) é de 1976. É um pequeno romance, onde a narrativa se desenvolve lentamente, mas com crescente tensão. Como nos demais livros de Harrison que li há bom humor e muito sexo. Em meados dos anos 1950 um sujeito de quarenta e poucos anos, descendente de imigrantes escandinavos, cuida de sua mãe, que está bastante doente, e dá aulas para alunos do nível médio em uma escola rural. Ele vê-se enredado entre duas paixões (antes dois envolvimentos afetivos, relacionamentos sexuais, que paixões propriamente ditas). Ele mantém uma relação calma e discreta com uma professora, colega de trabalho portanto, viúva de seu melhor amigo dos tempos de infância. Ao mesmo tempo se envolve com uma de suas alunas adolescentes, uma garota de dezessete anos. O cenário é o mesmo meio-oeste quase selvagem dos demais livros que li dele. Essa região, mais ou menos definida pelo entorno dos grandes lagos da América do Norte, tem invernos rigorosos, verões quentes e úmidos, florestas intocadas e rios caudalosos. Mas em "Atos de amor" o cenário não é tão selvagem e inóspíto quanto no Lendas do outono, nem tão sofisticado quanto o da fronteira urbana de classe média alta que se vê em O feiticeiro. "Atos de amor" deve algo a "Lolita" (do Nabokov), mas o Humbert Humbert de Harrison é surpreendentemente mais cerebral e contido. Enquanto pesca, anda a cavalo, ampara a mãe doente, reflete sobre a possibilidade de cuidar das terras e tornar-se definitivamente um fazendeiro, ele experimenta as complicações de sua conturbada vida sexual. Trata-se de uma leitura muito agradável. Não sei mesmo que azares fizeram-me deixar esses livros escondidos tanto tempo na minha biblioteca. É mesmo mais um bom livro, onde Harrison leva o leitor a refletir sobre a natureza humana. [início 13/09/2011 - fim 14/09/2011] 
"Atos de amor", Jim Harrison, tradução de Beth Vieira, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (1996), brochura 14x21 cm, 281 págs. ISBN: 85-7164-517-5 [edição original: Farmer (New York: Viking Press) 1976]

sábado, 17 de setembro de 2011

o feiticeiro

Depois de conhecer Jim Harrison no surpreendente Lendas do outono resolvi continuar e ler os demais livros dele que encontrei nos meus guardados. "O feiticeiro", "Warlock" no original, é de 1981. É um romance muito divertido e bem humorado. Um sujeito desempregado, nos anos Jimmy Carter, segunda metade dos anos 1970, passa os dias experimentando receitas sofisticadas e imaginando jogos sexuais com sua mulher, uma enfermeira relativamente bem sucedida. Ao "feiticeiro" (apelido que adota após ter um sonho com toques de epifania) não faltam inteligência e juventude, mas sim vontade de voltar ao mercado de trabalho e a rotina dos escritórios de advocacia.  Ele conhece um médico extravagante, que o contrata como uma espécie de estafeta, um investigador da saúde financeira de seus negócios. Esta atividade parece ajustar-se perfeitamente ao cinismo e falta de escrúpulos do feiticeiro (que de resto é filho de um policial, já aposentado). Ele usa as armas que tem para obter informações e se "enturmar" com os suspeitos que investiga: a facilidade de se embriagar e consumir drogas, seu gosto pela sedução e pelo sexo, sua verborragia e agilidade mental. Ian MacEwan já escreveu que um bom escritor se conhece pela qualidade de suas cenas de sexo. Se isso for mesmo verdade Harrison ganha muitos pontos com McEwan. O "feiticeiro" é um sátiro brincalhão. Harrison é também um bom observador da paisagem natural (o mesmo meio-oeste agressivo do "lendas do outono", mas agora em uma versão urbana). Suas descrições dos campos e da interação entre homem e natureza são muito boas, e não tem nada de piegas ou artificial. Os diálogos são um caso à parte, muito precisos, não emperram a história, que segue vertiginosa para um final denso e movimentado. Claro, como bom trambiqueiro, o "feiticeiro" sabe apenas metade das historias com as quais está envolvido (como todos nós no mundo real, sempre). Isso garante espaço para Harrison refletir (e levar o leitor a refletir) sobre a natureza humana e a vida em sociedade. Bom livro. [início 07/09/2011 - fim 12/09/2011] 
"O feiticeiro", Jim Harrison, tradução de Marcos Maffei, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (1998), brochura 14x21 cm, 255 págs. ISBN: 85-7164-822-0 [edição original: Warlock (New York: Delacorte) 1981]

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

lendas de outono

No divertido Ao ponto eis que Anthony Bourdain fala com entusiasmo de Jim Harrison. Segundo ele Harrison era um grande escritor, fumante inveterado, amigo para qualquer circunstância e "gourmand" dos bons. Fui a meus guardados e resgatei três livros dele, esquecidos na barafunda em que minha biblioteca teima sempre em se tornar. Que grande surpresa. Li esse "Lendas do outono", publicado originalmente no Brasil em 1993, com grande prazer. A história é muito movimentada mas o livro é muito fácil de ler. Harrison sabe mesmo contar uma história. No início do século XX um sujeito, militar reformado, cria três filhos no meio-oeste americano, entre padrarias e montanhas, campos cultivados e cabeças de gado. Os três filhos se alistam, no Canadá, para combater contra os alemães na primeira grande guerra. O caçula morre e o mais velho volta condecorado, mas ferido. O irmão do meio (Tristan, o grande protagonista da história) mostra o quão violento sabe ser, utilizando conhecimentos derivados do convívio com índios, que trabalhavam com seu pai, para matar alemães, escalpelando-os, até ser preso como louco. Ele foge do hospital e consegue encontrar o avó materno, um velho navegador francês que ainda vive nas costas da Normandia. De lá embarca em um navio e consegue voltar aos Estados Unidos. A miríade de histórias paralelas que Harrison enfeixa em seu livro é impressionante. Acompanhamos o velho pai, os dois irmãos remanescentes, a mulher pela qual ambos se apaixonam (cada um a sua vez), nos sucessos de suas vidas. Enquanto um dos irmãos entra para a política o outro tem a necessidade inata de viajar, arriscar a vida, levar todas as experiências ao limite, manter a idílica relação com o campo, com a terra. Tristran se casa com a filha meio índia de um dos empregados de seu pai, tem filhos e se envolve com o mercado negro de whiskey durante a lei seca americana, mas acaba se relacionando novamente com a primeira mulher (que acabou se casando com seu irmão) e voltando a viajar. É mesmo um livro surpreendente e um livro bem escrito. Vou ler os demais desse sujeito, seguro que sim. [início 06/09/2011 - fim 08/09/2011] 
"Lendas do outono", Jim Harrison, tradução de Angela Mariani, Rio de Janeiro: editora 34, 1a. edição (1993), brochura 14x21 cm, 80 págs. ISBN: 85-85490-24-1 [edição original: Legends of the Fall, Three novellas (New York: Delacorte) 1979]

sábado, 10 de setembro de 2011

ao ponto

Publicado em meados do ano passado, "Ao ponto" é uma espécie de ajuste de tom de Anthony Bourdain. Há dez anos, ao lançar "Cozinha confidencial", seu estilo debochado, direto e bem humorado agitou o mundo dos livros de gastronomia e fez seu livro entrar para a lista dos mais vendidos em quase todos os lugares onde foi publicado. Ele tornou-se uma celebridade, mas uma que não economizava sarcasmo e palavrões para descrever o quanto é isenta de glamour uma cozinha profissional e o quanto a maioria dos cozinheiros são sujeitos estressados e frequentemente intoxicados. Muita gente, inclusive no Brasil, leu sobre as maluquices que Bourdain descrevia e imediatamente o invejava, imaginando-se a comandar uma cozinha, a trepar com garçonetes e clientes lindíssimas, sendo recebido como um rei em restaurantes três estrelas, bebendo e se drogando no final da noite de trabalho. Ele descrevia também a disciplina quase militar e o aprendizado contínuo necessário para se enfrentar noite após noite o fluxo de clientes (o que tornava quase todas as experiências do livro contraditórias e auto-excludentes, como na vida, claro), mas o jorro de palavras de Bourdain encantava (e deve encantar ainda hoje, acredito) por conta do estilo e da originalidade. Parecia que ninguém havia falado sobre culinária daquela forma antes. Claro, ele não termina aquele livro sugerindo que todo neófito que tivesse algum interesse em culinária devesse abandonar seu emprego aborrecido e juntar-se a brigada do primeiro restaurante que encontrasse. O livro sugere exatamente o contrário. Mas quando um texto torna-se um best seller não importa o que está escrito, mas sim o entendimento coletivo do que está escrito, reverberado por críticos lenientes, jornalistas apressados, press-releases mal lidos, comentários de amigos que acham que "aquele livro" tem a sua cara. Logo depois da publicação de "Cozinha confidencial" ele deixou o cargo de chef do restaurante sofisticado que comandava. Criou um (ou mais) programas de televisão, passou a escrever com regularidade para jornais e revistas, fez viagens ao redor do mundo em busca de sabores e paisagens exóticas. Publicou outros livros neste período (Em busca do prato perfeito e Maus bocados). Estes dois são livros clássicos de viagem e gastronomia, algo irregulares, mas que Bourdain salva por conta de seu bom humor e o acerto da maioria de seus argumentos de antropólogo selvagem. Com "Ao ponto" ele retoma sua autobiografia. São dezenove textos independentes, crônicas que relatam as coisas em que se envolveu nos últimos dez anos. Alguns são quase contos, construções ficcionais, outros reflexões interessantes sobre gastronomia e a vida. Ele confessadamente tenta se redimir dos exageros do "livro raivoso" que o lançou ao sucesso, mas não faz concessões nem é piegas. É só um sujeito que ficou mais velho; descasou e casou novamente; tornou-se um pai cinquentão; fez novos amigos, manteve alguns e perdeu outros; comprou brigas e foi convidado para entrar em brigas; reinventou-se (sobreviveu talvez seja a palavra certa) à sua maneira. O tom de suas narrativas é variado (memória, causos engraçados, conversa olho-no-olho, divagações, especulações, humor ácido, pedido de desculpas). Não há hipocrisia. Gostei particularmente dos textos em que ele achincalha sem perdão, explicitando porque tal sujeito e/ou comportamento é condenável ou questionável. O texto onde ele faz um "Quem é quem" do mundo da gastronomia americana é muito bom. Gostei também de um onde ele descreve a habilidade de Justo Thomas, um preparador de peixes de um restaurante sofisticado (que é levado para o salão do restaurante onde trabalha, pela primeira vez, por Bourdain). Um sujeito curioso sobre o que são os menu-degustação dos restaurantes estrelados também vai se divertir com um dos textos do livro. Bourdain não nos deixa esquecer que não há boas intenções genuínas entre os homo sapiens sapiens, principalemente naqueles envolvidos em um negócio tão lucrativo e competitivo quanto o da gastronomia. No final ele faz o censo do povo que ele citou (e/ou achincalhou) no "Cozinha confidencial", já pode ir dormir em paz e sonhar com os ruídos da caixa registradora. [início 03/09/2011 - fim 06/09/2011] 
"Ao ponto: uma carta de amor sangrenta para o mundo da culinária", Anthony Bourdain, tradução de Celso Nogueira, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 323 págs. ISBN: 978-85-359-1925-7 [edição original: Medium Raw: A bloody valentine to the world of food and the people who cook (Ecco Books,HarperCollins) New York, 2010]

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

o invasor

Há alguma tensão nesse pequeno romance de Marçal Aquino, mas a narrativa não chega a surpreender ou encantar o leitor. "O invasor" nos conta os desdobramentos da decisão, digamos empresarial, de dois sujeitos. Engenheiros de um escritório de relativo sucesso, resolvem eliminar o sócio majoritario deles, um colega dos tempos de escola. Em uma cidade violenta como São Paulo comprar serviços de um matador não parece ser uma coisa difícil, cara ou arriscada. E os tempos não permitem dúvidas morais paralisantes, afinal o que se faz visa apenas maior eficiência nos negócios, maior agilidade, menos burocracia (e, claro, algum dinheiro fácil). Há uns contratos interessantes com os quais esse sócio recusa-se a se envolver. Quem lê jornais com alguma regularidade no Brasil (e não é escravo ideológico de nenhum partido que tenha algum naco de poder) sabe como o processo funciona: um preposto qualquer do governo de plantão oferece uma oportunidade aos amigos, esses rapidamente ganham alguma licitação, executam porcamente o serviço ou a obra. Não demora muito e todos acabam por dividir dinheiro público ganho honestamente. E, se bobear, ainda exploram os dividentos políticos do empreendimento, posando de grandes servidores do povo, quando das festividades da inauguração. Esses são tempos onde ser hipócrita é bem mais do que uma virtude. Mas Marçal Aquino sabe manter o ritmo de sua história e não perde tempo com digressões filosóficas ou sociológicas (e sabe explorar o cinismo do leitor). Após o assassinato estar consumado um dos dois sócios se arrepende. Daí em diante só cabe ao leitor apostar em qual dos dois será mais eficiente nas estratégias de sobrevivência. Quem trairá o outro primeiro? "O invasor" é bem escrito, feito à medida para uma leitura rápida de final de semana, principalmente em um dia vagabundo de sol, mas mesmo com os truques que Marçal Aquino usa no final da história é previsível demais para o meu gosto. Vamos em frente. [início 29/08/2011 - fim 04/09/2011]
"O invasor", Marçal Aquino, São Paulo: editora Companhia das Letras (Má companhia), 1a. edição (2011), brochura 12,5x18 cm, 123 págs. ISBN: 978-85-359-1804-5

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

diário da queda

É sempre sutil, mas cada livro que encontramos conecta-se com os anteriores e futuros. Como leio vários livros simultaneamente é comum que estabeleça sempre associações (ou introduza contaminações) entre eles. Se no "A máquina de fazer espanhóis" valter hugo mãe inventa um futuro para um homem velho como seu pai nunca chegou a ser, nesse "Diário da queda" o que encontramos é a justificativa mental para a invenção de uma trajetória, ou melhor, de uma guinada na vida, uma mudança no futuro de um homem que pode não vir a se tornar pai caso continue com seus hábitos mais entranhados. Trata-se de uma boa história, num livro muito bem escrito. Lembra um tanto o "Quase memória", do Carlos Heitor Cony, mas "Diário da queda" é mais irônico e mais explicitamente literário. Michel Laub faz seu narrador contar a história de três gerações de homens, como em um recenseamento. Este narrador conta o que sabe de seu avô, o que sabe de seu pai e o que sabe de si próprio. Do primeiro as memórias são emprestadas, já que ele não o conheceu. Mas seu pai tampouco parece ter compreendido a complexidade do avô, um sobrevivente de Auschwitz radicado na Porto Alegre do final dos anos 1940. A relação do narrador com seu pai é igualmente difícil e ambígua. O livro parte da descrição de um acidente ocorrido durante o Bar Mitzvah de um colega de turma (gói) do narrador. A obsessão do narrador com sua culpa no acidente e todos os desdobramentos desta culpa (rompimento com os demais colegas, mudança de colégio, briga com o pai, tentativa de se redimir através de uma amizade artificial este colega, as traições cruzadas e seus relacionamentos afetivos complicados) servem como espelho para ele analisar a memória e os atos de seu pai e de seu avô, como se ele estivesse transferindo essa culpa original para alguém, por conta dos atos pregressos de seu pai e de seu avô. Há uma espécie de economia em seu texto (e registro isso não exatamente como um demérito). Ele não é nada verborrágico, nem se preocupa em criar metáforas elegantes, que adornem ou glamurizem o que se descreve. Os capítulos algo fragmentados basicamente constrastam as agruras do Alzheimer, a história judaica pós segunda grande guerra e a intoxicação do alcoolismo. O texto progressivamente acumula camadas de memória, que podem ser reais, tanto as individuais quanto as coletivas, mas também podem ser inventadas ou manipuladas, tanto individualmente quanto coletivamente. Laub apresenta um mosaico de reflexões sobre esses três grandes temas que certamente não irão deixar nenhum leitor indiferente. Bom livro. [início 31/08/2011 - fim 03/09/2011]
"Diário da queda", Michel Laub, São Paulo: editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21 cm, 151 págs. ISBN: 978-85-359-1817-5

sábado, 3 de setembro de 2011

a máquina de fazer espanhóis

A Cosac Naify edita tão bem seus livros que em geral a primeira vontade é guardá-los, como objetos de culto ou decoração, mas logo lembramos que se trata de um livro, e a função daquele objeto é ser mesmo lido. É muito boa a ilustração da capa, uma imagem do Lourenço Mutarelli. Publicado no calor da última festa literária de Paraty, encontramos em "a máquina de fazer espanhóis" uma narrativa potente, um texto que surpreende o leitor, por sua inventividade e lirismo. O autor, valter hugo mãe, nasceu em Angola, tem quarenta anos, publicou quatro romances (já encomendei um outro seu, "o remorso de baltazar serapião"). Escreve um bocado, mas também se envolve em várias outras atividades artísticas, que vão da música às artes plásticas. Ele grafa todo o livro em caixa baixa. Não sei se os demais livros dele são assim, mas o efeito é curioso. Para o fluxo da narrativa é um achado, de tão simples, mas tão poderoso. Os dizeres dos personagens, o que é factual, a ação, as reviravoltas, brotam todos vívidos no texto, quase nos forçando a ler sempre em voz alta. Ao mesmo tempo há de se pensar que um leitor mais relaxado possa ter dificuldades em acompanhar todas as vozes que povoam seu livro. No início da história encontramos um senhor de seus oitenta e tantos anos que perde a mulher e passa a viver em uma casa de repouso, na companhia de uma centena de outros velhos. A certeza de seu amor e a separação abrupta, o calam e entorpecem. Alternam-se registros fragmentários de suas memórias (a vida com os pais, o casamento, os filhos, as decisões e escolhas) com o entendimento do que acontece na nova rotina. Com o tempo vem a vontade de interagir. Outros sujeitos, companheiros do mesmo destino funesto, dele se aproximam. É como se fossem todos alunos de uma escola infantil que, levados pelos pais nos primeiros dias de aula, demorassem a relaxar e franquear amizades. Tudo que há de intolerável nestes ambientes afloram no livro. Mas valter hugo mãe não precisa descrever os procedimentos médicos e os detalhes da rotina do lugar para alcançar este efeito. É exatamente o contrário. O lugar parece transparente. Só há os personagens e suas conversas. Apenas, vez por outra, o diretor do hospital ou algum agente externo (como uns policiais quando um incêndio suspeito acontece) interferem pontualmente na narrativa. Em geral, só sabemos o que o narrador, o senhor oitentão, fala e pensa, do que vê e sente. A velhice é sobretudo feia, o envelhicimento uma coisa intolerável, mas não se trata de um livro triste. Há nele muito humor e causos interessantes, poesia e ironia também. Interessantes os paralelos entre Esteves e Fernando Pessoa, Leopoldina e Teófilo Cubillas, Enrique e a Espanha, o Silva e a Europa. Claro, pode-se ler o livro como uma alegoria da história de Portugal (principalmente a história atribulada do século XX, da ditadura de Salazar e do terrível processo de descolonização), pois o autor pontua a narrativa com fatos políticos, embates sociais, eventos do futebol e das artes. Mas ao mesmo tempo o livro nos fala de um homem, que sofre e rememora, que mal verbaliza suas culpas mais entranhadas, que se assusta com os fantasmas que povoam suas noites. Como em todo homem há nele a potência das virtudes e também do mal. Por conta dessa ambiguidade "a máquina de fazer espanhóis" é um livro muito humano, muito rico em reflexões. Lembrei de dois livros ao ler este, como se os três fossem aparentados: "Leite derramado", do Chico Buarque (que não gostei muito), e "Homem lento", do J.M. Coetzee (que gostei bastante). E como não pensar no velho Guina, meu pai, senhor ruidoso e alegre, com seus oitenta e seis anos, ainda a me provocar reflexões e idéias, e não ficar feliz por ainda compartilhar o tempo e o espaço com ele? Hooray! Vamos a ver o que o outro livro do valter hugo mãe me conta. [início 21/08/2011 - fim 31/08/2011]
"a máquina de fazer espanhóis", valter hugo mãe, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2011), brochura 14x23 cm, 256 págs. ISBN:978-85-7503-813-0 [edição original: Alfaguara (Lisboa, Portugal) 2010]

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

cuentos blancos

Junto com "Cuentos Negros", que já resenhei aqui, esse "Cuentos Blancos" é um generoso presente para os entusiastas das narrativas de Manuel Vázquez Montalbán. Encontramos nele 21 contos, publicados originalmente em jornais. O mais antigo é de 1982, o mais recente de 1999. O texto introdutório assinado por Georges Tyras apresenta a obra de Montalbán (não se trata do mesmo texto dos "Cuentos Negros", mas sim um outro, complementar a ele, muito bom mesmo). Nesses contos não há aventuras do cínico e cético Pepe Carvalho, mas encontramos aquelas digressões e descrições que acompanham todos os romances policiais de Montalbán. Talves aí esteja a magia destas narrativas, um poderoso equilíbrio entre a maquinaria típica das histórias de detetives e o olhar revelador sobre as virtudes e vícios da sociedade espanhola. Os temas são variados. Há textos irônicos, que brincam com aspectos da história da Espanha; textos engajados, que quase assumem uma função jornalística e/ou política, de denúncia; textos amalucados, inventivos mesmo, que brincam com a curiosidade do leitor; memórias sentimentais e líricas; textos que evocam festas populares, hábitos e tradições; textos que contrastam a cultura popular e a arte que se pensa mais sofisticada. O leitor eventualmente se surpreende ao encontrar material similar ao utilizado em alguns dos demais romances de Montalbán: "El estrangulador", "Yo maté a Kennedy", "El pianista", "El señor de los bonsáis". O mundo de Vazquez Montalbán é vasto e provocador. Suas histórias de detetives apenas a porta de entrada. Fico feliz em ter tido a chance de conhecer seus livros (foi doña Eliana Sturza quem me fez este regalo, tempos atrás, cousa boa). Agora só me restam as compilações de seus textos políticos, publicados recentemente. Vou guardá-los para os dias aborrecidos do próximo inverno. Agora parto por outras aventuras, pela meseta espanhola, pela Castilla - La Mancha. É tempo. [início 14/08/2011 - fim 30/08/2011]
"Cuentos blancos", Manuel Vázquez Montalbán, edicíon e introducción de Georges Tyras, Barcelona: Galaxia Gutenberg (Circulo de Lectores), 1a. edição (2011), capa-dura 13,5x21,5 cm, 254 págs. ISBN: 978-84-8109-916-4