É pouco provável que seja verdade, mas nos acostumamos a identificar em um homem, Homero, o autor de duas das maiores criações da espécie humana, que são os poemas épicos que chamamos Ilíada e Odisseia. Se no primeiro poema se canta a ira de Aquiles, um breve episódio da longa guerra entre gregos e troianos, no segundo se conta as aventuras de Ulisses/Odisseu em sua longa jornada de volta à Ítaca. Pois ao terminar esse notável "Berta Isla", livro mais recente de Javier Marías, senti-me como um efebo grego do século VIII antes do inicio desta nossa era (in)comum, que ao redor de uma fogueira, após terminada a frugal refeição do cair da noite, pede a um velho aedo que conte uma vez mais os sucessos daqueles heróis que alternavam batalhas sangrentas com holocaustos e libações aos deuses. Javier Marías, venerável aedo contemporâneo nosso, com seu engenho inventou um novo portento, tão bom e instigante quanto seu "Tu rostro mañana", de forma que para mim "Berta Isla" está para a Odisseia como Tu rostro mañana está para a Ilíada. Vamos a ver. "Berta Isla" é longo, quase 550 páginas, dividido em dez cantos/capítulos, ora narrados por um observador onisciente, em terceira pessoa, ora pela heroína da historia, Berta, em primeira pessoa. O que o leitor encontra no livro são as lembranças de Berta (lembranças contemporâneas, de 2016, 2017), sobre as circunstâncias de como conheceu nos anos 1960 um rapaz, Tomás Nevinson, casou-se e teve um casal de filhos com ele, nos anos 1970, e ficou treze anos, de 1982 a 1994, sem ter a certeza se esse seu marido estava morto ou vivo. Trata-se, como o próprio Marías diz em um teaser, da história de uma espera, uma espera como a de Penélope na Odisseia. Tomás (ou Thomas ou Tom) é daquela estirpe de protagonistas de Marías que tem um especial talento para línguas, para imitação de acentos e comportamentos, posturas, para interpretar rapidamente o caráter de seus interlocutores (como Jaime Deza em Tu rostro mañana ou narrador sem nome de Todas as almas, entre tantos outros). Após conhecer Berta em um colégio interno na Madrid franquista, na segunda metade dos anos 1960, Tomás, filho de uma espanhola com um cidadão inglês, viaja para a Inglaterra para seus estudos universitários, onde acaba conhecendo Peter Wheeler (o grande hispanista, professor de Oxford, que já conhecemos de Tu rostro mañana) e, por um desvio do destino, que define todo o livro, o diabólico Bertram Tupra, também personagem daquele livro e que talvez seja mesmo o alter ego ideal de Javier Marías (sempre imagino Marías dizendo para mim don't linger or delay, toda vez que postergo uma tarefa ou decisão). Ao voltar para Madrid e casar-se Tomás assume um posto importante na embaixada inglesa, mas suas viagens recorrentes e ausências logo fazem Berta entender que seu marido atua não em tarefas burocráticas, mas em algo relacionado a espionagem, ligado ao serviço secreto inglês. Não me atrevo a descrever mais detalhadamente o livro, pois estaria roubando do leitor o prazer de uma miríade de descobertas. Não se trata de um romance de época, onde se fala da sociedade espanhola ou europeia dos anos 1970, 1980 ou 1990, que retrate panoramicamente estes anos, o ambiente e acontecimentos destes anos. Todavia, ao acompanharmos as reflexões e digressões de Marías, aprendemos algo sobre como o destino dos indivíduos é aleatório e único, como é impossível que uma acepção simples, como "anos 1980", por exemplo, identifique algo que seja válido para não mais do que apenas um punhado de pessoas que viveram naquela época ou estudaram detalhadamente sobre aqueles tempos. Enfim, mesmo a lembrança dos fatos que vivemos é construída. Talvez eu volte a esse registro e escreva mais. Escreva sobre Little Gidding, poema de Eliot, tão presente no romance; sobre as metamorfoses de Tomás Nevinson; sobre o caráter de Tupra; sobre como Lord Wheeler lembra as Moiras gregas; sobre Eric Southworth, amigo real de Marías, inserido no livro, como já vimos Marias fazer com Francisco Rico em "Los enamoramientos"; sobre o papel do cinema na imaginação de Marías; sobre uma passagem retirada do Henry V, de Shakespeare; sobre a figura dos fantasmas; sobre a manipulação, de indivíduos e de toda a sociedade, em todos os tempos; sobre o fato de também Ulisses ter ido a guerra de Tróia por força de um ardil; sobre a força da frase: "Desde cuándo la gente ha elegido sus vidas?"; sobre os livros que há em Berta Ilsa (há uma boa compilação deles no Librotea); e sobre tantas outras coisas. Mas não consigo fazer isso agora. Paciência. Preciso e vou reler o livro. Não consegui conter-me e o li quase de um fôlego só, um longo fôlego de quatro dias. Marías terminou de escrever "Berta Isla" em abril deste ano, o livro foi impresso em agosto e lançado oficialmente no 02 deste setembro que hoje termina. Recebi o livro na manhã do dia 10 (não pelo inútil serviço dos correios brasileiros, claro, mas pela DHL, graças aos esforços da Casa del Libro espanhola), comecei a ler naquele dia mesmo e terminei na quarta-feira, dia 13. Que dias felizes! Termino de escrever esse registro hoje, 30 de setembro, véspera do plebiscito que poderá definir a independência da Catalunya e uns poucos dias antes do anúncio do prêmio Nobel de literatura (e eu sempre aposto no Marías, claro). Evoé Marías, evoé!
Registro #1218 (romance #326) [início: 10/09/2017 - fim: 13/09/2017]
"Berta Isla", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a.
edição (2017), brochura 15x24 cm, 544 págs. ISBN: 978-84-204-2736-2