domingo, 21 de dezembro de 2014

lições de literatura russa

Terminei essas "Lições de literatura russa" de Vladimir Nabokov ainda em outubro deste ano, mas decidi deixar para escrever um registro de minha leitura apenas agora, no final de ano, em meu balanço. Talvez seja porque eu tenha lido coisas interessantes de Nabokov nesse ano; ou por conta de uma bela história da Rússia que li e que me impressionou ou apenas porque já terminei um ano de leituras com um livro russo (em 2011 finalizei o ano com uma resenha de um livro de Joseph Brodsky). Um crítico literário para Nabokov é "um sacerdote das opiniões médias dos leitores de cada tempo". Ele tem reservas ao ato da crítica ligeira (afinal qualquer charlatão pode emitir o juízo que quiser sobre um determinado assunto e imaginar-se tão fundamentalmente crítico quanto qualquer especialista ou erudito de fato, normalmente mais cuidadoso sobre o que fala e escreve). Entretanto o que é apresentado nessas lições não é simples crítica, mas sim notas de aula progressiva e recorrentemente utilizadas por ele em sua prática como professor universitário (por quase duas décadas, de 1941 a 1959, sobretudo no Wellesley College, em Massachusetts, e na Cornell University, em Ithaca, New York). O trabalho de compilação e organização das notas é assinado por Fredson Bowers (um acadêmico). Segundo Bowers os originais incluíam tanto textos manuscritos quanto material datilografado, além de fichas e quadros sinópticos, de forma que o material revela "estágios muito diferentes de preparação e polimento". Nessa compilação Nabokov fala especificamente de literatura russa, explica a seus alunos como ler adequadamente Fiódor Dostoiévski, Nikolai Gógol, Maksim Górki, Anton Tchekhov, Liev Tosltói e Ivan Turguêniev (são, respectivamente, 48, 60, 34, 58, 110 e 40 páginas dedicadas a cada um destes autores). Uma pessoa que conheça bem as narrativas de cada um dos autores estudados aproveitará melhor as notas, muito embora o texto seja envolvente o suficiente para encantar qualquer leitor, mesmo o mais completo neófito dos assuntos russos. Há generosas transcrições das traduções de Nabokov dos originais analisados (ele desconfiava particularmente das traduções do russo para o inglês disponíveis naquela época: "traduções abomináveis" dizia). Um terço do livro é de traduções dos originais. Aprendi um bocado, mas o fato de ter lido pouco os russos certamente me fez perder muitas associações e ênfases. De qualquer forma Nabokov oferece ao leitor longas descrições sobre técnicas narrativas e sobre os fundamentos da construção de um romance, explica também os  compromissos inerentes a esse ofício tão singular e atávico, que enfeitiça e destrói todo aquele cuja vaidade é maior que seu talento, disciplina ou esforço. Segundo ele, por exemplo, um escritor nunca deve ser ventríloquo de clichês jornalísticos de cunho fascista ou socialista (sorte dele não ter conhecido a literatura brasileira contemporânea), nem, tampouco, se impressionar com eventuais sucessos ou fracassos, de crítica ou público. Ele é implacável com Dostoiévski (para ele um escritor medíocre) e bastante generoso com Gógol, Tosltói e Tchekhov. Algo da biografia dos escritores que analisa é oferecido ao estudante/leitor, mas trata-se de algo secundário, o importante nas lições sempre é o que ele tem a dizer sobre a força inerente aos textos produzidos por eles. Nabokov oferece também muito de sua habilidade em interpretar como se comportam os seres humanos, sua descrição de como nos escondemos de nós mesmos quase sempre, através de mecanismos como hipocrisia, sarcasmo, mentira ou auto-ilusão. Transcrever as seminais frases de Nabokov rouba algo do prazer  do leitor de descobri-las por si só durante a leitura, mas deixo aqui uma única, que exemplifica bem o absoluto de suas convicções: "É difícil evitar o lenitivo da ironia e o luxo do desprezo ao examinar a imundície em que mãos submissas, tentáculos obedientes comandados pelo polvo inchado do Estado, conseguiram transformar em meu país essa coisa ardente e fantasticamente livre que é a literatura. Além disso, aprendi a valorizar minha repugnância por saber que, me mantendo tão indignado, preservo o que posso do espírito da literatura russa. Depois do direto de criar, o direito de criticar é a maior dádiva que podem oferecer a liberdade de pensamento e a de expressão." Considerando que isso foi escrito há mais de sessenta anos só nos resta reconhecer que o fascismo e o totalitarismo nunca dormem. Grande livro. E há outros livros dele com esse tipo de notas de aula, livros dedicados a James Joyce, Miguel de Cervantes, literatura em geral, Alexander Pushkin e Nikolai Gogol. Vou procurá-los, seguro que sim.
[início: 27/09/2014 - fim: 08/10/2014]
"Lições de literatura russa", Vladimir Nabokov, tradução de Jorio Dauster, edição/introdução/notas de Fredson Bowers, São Paulo: Três estrelas, 1a. edição (2014), brochura 16x23 cm., 399 págs., ISBN: 978-85-65339-30-8 [edição original: Lectures on Russian literature (New York: Harcourt Brace Jovanovich / Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company) 1981]
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Balanço final [21.12.2014]
Hoje é o solstício de verão em nosso hemisfério (é o dia mais longo do ano, marca o início do verão, o dia com mais luz). Por uma coincidência bizarra ficamos 15 horas sem luz, num apagão dos diabos. E é o dia de nascimento de Frank Zappa. Evoé Zappa! Vamos a ver. É certo que 2014 foi um bom ano de leituras. Investi um tanto mais em não ficção do que faço usualmente (foi uma sugestão das boas de don Renato Cohen). Li coisas interessantes sobre viagens e cidades (livros sobre Veneza, Rússia, Alemanha, Berlin, Curitiba, Porto Alegre, Cuba, Salvador e Recife). Li umas biografias curiosas (de Lucian Freud, Proust e  James Joyce). Li um bom livro sobre Javier Marías (assinado por Gareth Wood) e li o último e soberbo livro dele (Así empieza lo malo). Li mais dois bons livros do Natsume Soseki, três do Mempo Giardinelli e quatro Vila-Matas. Participei de um projeto bacana, um livro de resenhas de autores contemporâneos, editado pela Dublinense (e organizado por Léa Masina, Rafael Bán Jacobsen, Daniela Langer e Rodrigo Rosp). Foram 102 registros de leitura ao longo do ano, bem perto da média dos dois anos anteriores, mas um tanto abaixo da média histórica, iniciada em 2007, que era de 114 livros por ano. Foram 25 de crônicas e ensaios; 15 romances; 13 de contos; 12 de poesia; 10 de perfis, biografias, memórias e relatos; 7 novelas; 5 infanto-juvenis; 4 de histórias em quadrinhos, graphic novels, cartuns ou mangás; 3 de fotografias; 2 de gastronomia; 1 único romance policial; 1 de turismo e 1 de mini-contos. Pode-se também dividir essas leituras em 35 de ficção e 36 de não-ficção, além de 12 de poesias e 19 divertimentos (não se deve ler nunca nada sem alegria, claro). Mantive a média de leituras de originais em inglês e em espanhol (7% e 30% do total dos livros do ano, respectivamente). Completei 900 resenhas em 2014 e certamente chegarei ao número mágico de 1000 antes do final de 2015. Além do livros o ano propiciou muitas alegrias. Doña Natália passou para o quarto ano de psicologia. Doña Helga trabalhou e viajou bastante pelo mundo da arte. Estivemos juntos em Berlin, caminhamos e nos divertimos à beça. Estive no Hora H, homenagem ao Haroldo de Campos na gloriosa Casa das Rosas (que comemorou 10 anos, evoé!). Participei de uma festa das boas, a dos 70 anos do Frank Missell, onde reencontrei com ele e com tantos bons amigos. Tive a chance de ir a São Paulo e reencontrar Oscar e Péricles; Toninho e Fernando; Renato e Luiz, Marcos, Samuel e Heloísa, Jackie e todo o povo de Samber, todavia me perdi da Sibele e da Beth, do Aníbal e do Parreira (vamos a ver se os encontro em 2015). Revi o Jesus González em Madrid, mas me perdi do Manolo e da Cris. Em Santa Maria recebi a visita de Frank e Fernando (e que boas conversas tivemos). Organizei com os amigos da CESMA e do Ponto de Cinema o vigésimo primeiro Bloomsday em Santa Maria. Conheci don Abdon Grilo, um sujeito surpreendente, que mantém um blog cheio de maravilhas sobre o Ulysses de James Joyce. Clara terminou o ensino fundamental. Victória terminou a pré-escola (e já sabe escrever seu nome sem medo). No ano que vem faremos festa pelos 90 anos de meu pai, don Papandreos Severinovich. Certamente será algo a se comemorar prá valer.
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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

las huellas dispersas

Neste volume não há textos inéditos. Todos podem ser encontrados nos demais livros de Javier Marías, principalmente aqueles onde estão compilados seus artigos escritos para jornais e revistas. Todavia trata-se de um livro que propicia algo precioso, a imersão nas narrativas de Marías diretamente relacionados a seu Ciclo de Oxford, ou seja, ao conjunto de romances: "Todas las almas", "Negra espalada del tiempo" e "Tu rostro mañana". A organização e apresentação do livro é assinada por Inés Blanca, uma conhecida especialista na obra de Marías, que nos informa que a primeira pessoa a investigar esses volumes como um conjunto foi José María Pozuelo Yvancos (no "Figuraciones del yo in la narrativa"). São cinquenta e sete textos, organizados tematicamente. Em "Los que sí han cruzado el mundo" encontramos 17 narrativas de Marías dedicadas a personagens reais que foram incorporados de alguma forma à sua ficção (ele é um mestre neste tipo de aproveitamento); em "Un país de novela" 5 textos que falam de sua experiência em viver na Inglaterra; em "Reino de redonda" 4 textos onde ele explica o acaso de sua investidura como rei Xavier I (da ilha de Redonda). A parte mais interessante do livro é a seção "El autor ante sus libros", onde encontramos 11 ensaios nos quais Marías explica um tanto de seu ofício como escritor, seu método de trabalho, a gênese de suas histórias (especificamente das três citadas acima). Na seção "Los tiempos y sus hechos" estão reunidas 11 crônicas sobre os aborrecimentos decorrentes da versão cinematográfica de "Todas las almas" e também alguns textos sobre política, história e economia do período que começa na queda do muro de Berlim (1989) e termina com o ataque às torres gêmeas em Nova Iorque (2001), temas que dão fundamento os romances desse ciclo. Na seção "El autor se asocia y callejea" Marías fala de sebos e antiquários, de sociedades e festividades literárias. O volume se encerra com dois contos (já incluídos no "Mientras ellas duermen") e diversos apêndices, de procedência e estilos variados, quase todos produzidos por terceiros (há resenhas e apresentações de Ángeles García, Eduardo Mendoza e Cabrera Infante por exemplo), além de uma lista atualizada da aristocracia do reino de Redonda, dos ganhadores do prêmio literário de mesmo nome concebido por Marías e algumas entrevistas. O texto mais antigo é de 1985, o mais recente de 2013. O leitor que já tenha experimentado aqueles três romances aproveita melhor esse livro, mas ler Javier Marías nunca aborrece ninguém, mesmo um eventual, porém curioso, neófito. Vale.
[início: 15/11/2014 - fim: 25/11/2014]
"Las huellas dispersas", Javier Marías, organização de Inés Blanca, Barcelona: Debolsillo (Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2013), brochura 12,5x19 cm., 388 págs., ISBN: 978-84-9032-781-4

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

así empieza lo malo

Se eu recebesse esse livro sem título ou nome do autor identificado na capa bastaria ler uns poucos parágrafos para que descobrisse que se trata de um legítimo Javier Marías. Seu estilo é inconfundível, mas certamente difícil de ser reproduzido, copiado ou emulado. Seus narradores nunca nos apresentam invenções lineares, cronológicas, fáceis de ler, mas sim uma história que parece banal, mas a qual é, aos poucos, acrescentado um novo aspecto de um determinado assunto, uma história que recebe camadas novas de sentidos e sugestões, de possibilidades e sutilezas, de associações e detalhes, que fazem com que o leitor eventualmente acabe por organizar e entender como uma totalidade argumentativa, um bloco conceitual, uma epifania dos diabos, um diamante literário, uma magia (javiermariesca). Mesmo quando seus narradores parecem ter esgotado uma via de argumentação, exaurido um caminho rico em digressões, eis que percebemos que estávamos (o narrador e nós mesmos, afortunados leitores) enganados, pois havia ainda um último aspecto que deveria ser ali investigado e discutido, que ainda seria possível extrair dali alguma nova maravilha. Javier Marías cria personagens que identificamos de alguma forma com aqueles seus que já conhecemos de outros livros, uma ilusão similar aquela produzida pelos atores de cinema - mais frequentemente atores de antigamente, dos anos 1940, 1950 e 1960- que se especializaram em um determinado tipo de papel (de vilão, sedutor ou atlético, de ingênuo, moral ou ladino, de pérfido, cômico ou misterioso) e nos faziam automaticamente associar ao personagem interpretado por ele num determinado filme todas as características que já conhecíamos do mesmo sujeito quando ele havia interpretado um outro papel num outro filme. De forma similar, quando um grande diretor de cinema, um Hitchcock por exemplo, criava cada um de seus filmes com personagens distintos, adaptados às circunstâncias das diferentes histórias, criava também personas que sabíamos imediatamente aparentadas entre si, como se fossem arquétipos de homo sapiens sapiens, de modelos de seres humanos, de padrões esquemáticos do comportamento humano. Pouco importava se os atores que interpretavam os papéis fossem James Stewart, Cary Grant ou Sean Connery, Kin Novak, Grace Kelly ou Tippi Hedren, assim que os víamos em cena sabíamos que eram atores em um filme de Hitchcock. Com Javier Marías não é diferente (não por acaso o cinema tem um papel importante na maioria de seus livros, desde o primeiro deles, o divertido "Los dominios del lobo", de 1971. Começamos a ler "Así empieza lo malo" e seu personagem principal, Juan de Vere, parece alguém que tem o mesmo estofo do Jacobo Deza do Ciclo de Oxford: "Todas las almas", "Negra espalada del tiempo" e "Tu rostro mañana". É como se fosse um experimentado ator que é contratado para interpretar um papel diferente (em um livro diferente) de Marías. Juan é o jovem assistente de um diretor de cinema, Eduardo Muriel. Produz para ele versões em inglês de cartas, documentos e roteiros cinematográficos. Esse Muriel é casado com uma mulher muito bonita, Beatriz Noguera, mãe de três filhos. Nos meses em que fica hospedado na casa dos Muriel (os meses de verão de 1980, meses da icônica movida madrilenha) ele acaba se envolvendo numa questão que remete ao início do relacionamento de Eduardo e Beatriz, nos anos da guerra civil espanhola, uma questão que será protagonizada, vivenciada e absorvida por Juan de Vere completamente, que o modificará completamente. O narrador (Juan de Vere) conta sua história retrospectivamente. Ele é no livro um narrador de quase 60 anos que lembra dos acontecimentos de quando tinha pouco mais de 20 anos, ou seja, ele fala de uma encarnação que mal conhece ou respeita. Marías utiliza esse intervalo enorme de tempo (desde os anos de guerra civil espanhola, passando pelos anos da movida madrilenha - de redemocratização, pós-morte do ditador Franco, até chegar aos anos de incerteza que conhecemos todos, os anos de Zapatero e Rajoy, de Obama e Putin) para refletir sobre aquilo que cada indivíduo precisa saber discernir o mais rapidamente possível na vida - para que não sofra muitos aborrecimentos -, ou seja, precisa descobrir logo as sutilezas dentre aquilo que dizemos ser e que se sabe de nós, na vida mundana, social; ou daquilo que somos só para nós mesmos e não compartilhamos com mais ninguém, nem o mais cúmplice dos atores de nossos círculos de amizade, nem para um padre ou psicólogo, nem para um diário ou texto de ficção; e daquilo que gostaríamos de ser psicológica e socialmente falando, enfim, aquilo que projetamos como meta ambicionada para nossa vida futura. Nem Marías (nem o narrador) contam uma história fechada, factual, precisa, definitiva. O que Marías faz é conduzir o narrador por situações que possibilitam que o leitor se identifique com algumas questão e se posicione, que reflita sobre o que faria caso estivesse nas situações descritas como vivenciadas por cada um dos protagonistas de sua história. O livro começa e termina com uma metáfora náutico literária, começa com a presença das brumas por onde cruza um navio baleeiro antes de possibilitar a visão de sua presa, como a névoa que antecede a visão de Moby Dick pela tripulação do "Pequod" pela primeira vez. A epifania final, o entendimento final do narrador sobre sua condição (que é especular àquela vivida por Eduardo Muriel trinta anos antes) repete a sensação de estarmos a cruzar um mar de névoas e incertezas, de opacidade e dúvidas. Nunca ninguém sabe a extensão e implicações definitivas de tudo o que verbalizamos nessa vida.  Javier Marías discute como pequenos gestos, acasos e circunstâncias podem provocar transformações definitivas em nossas vidas. Ele fala do neoconservadorismo espanhol, de como a política e a religião estão entranhadas naquela sociedade. Ele fala das diferenças entre a sociedade espanhola e alemã, dizendo que essa última discutiu e absorveu seu passado condenável de uma forma muito mais razoável e saudável que a primeira, que ainda prefere conviver com seus fantasmas despóticos e/ou criminosos, como numa cumplicidade algo amalucada entre prisioneiros e verdugos. Ele fala uma vez mais sobre o poder da linguagem, das construções mentais que verbalizamos (voluntariamente ou através de atos falhos), da força da língua como a ferramenta que mais nos condena e ou que mais eficientemente pode nos salvar. Ele fala dos tempos da guerra civil espanhola, retomando questões já discutidas em vários de seus livros, onde percebe-se que pouco importa o que foi factual, verdadeiro ou real, mas sim o que foi historicamente construído (por força do poder, do despotismo, do ardil, da mentira, da hipocrisia ou até mesmo do acaso), pois é isso que acaba sendo majoritariamente aceito como válido. Qualquer brasileiro intelectualmente honesto deveria ser capaz de entender isso. Uma pessoa inescrupulosa sempre poderá construir para si um passado socialmente aceito (e economicamente vantajoso), desde que disponha dos meios e das oportunidade para fazê-lo. Ao mesmo tempo, trata-se de um romance doméstico, leve (digamos assim), pois os temas principais e os vários personagens podem ser confundidos/espelhados às vivências ou a pessoas reais, conhecidas e próximas de Javier Marías. A construção do protagonista da história, Eduardo Muriel, deve muito a biografia do tio de Marías, o cineasta Jesús Franco; o divertido Francisco Rico - já metamorfoseado como personagem nos livros de Marías diversas vezes - não é outro que o respeitado acadêmico Francisco Rico, da Real Academia Española, dileto amigo de Marías; e a esses pode-se acrescentar a menção explícita (entre pessoas reais e personagens bem inventados) de Peter Wheller, Dr. Arranz, Miguel Deverne e Flavia Manóia (seus personagens em outros livros) ou de Juan Benet, Vidal Secanell, Fernando Savater e Carmen Zapater (que são/foram amigos de Marías). Deve-se acrescentar também a essas minhas ilações a vívida inspiração no livro de vários acontecimentos da vida de sua mãe (Dolores Franco) e de seu pai (Julián Marías). Confundir essa estratégia com autoficção é uma bobagem, esse termo não dá a real dimensão do valor da prosa de Javier Marías e da qualidade de suas invenções. Javier Marías produziu uma vez mais um romance poderoso, que se desfruta completamente, nunca aborrece ou entedia. Pouco importa a trama, que é simples e não vou detalhar aqui para não afastar do leitor o prazer de suas próprias interpretações e descobertas. Para mim o que enfeitiça é a forma como camadas contínuas de entendimento vão brotando da trama, fazendo-nos aceitar verdades que não exatamente se contradizem, mas que são incompatíveis uma com as outras. Trata-se de um romance que reflete sobretudo sobre nossa incapacidade de tomar decisões (e conviver satisfatoriamente com aquelas que já tomamos). Esse tema, claro, remete ao "Hamlet", de Shakespere, pois Hamlet é um sujeito que simplesmente não consegue agir para viabilizar a decisão que tem tomada desde o início da peça (vingar a morte de seu pai). Cabe registrar que o título do livro brota de uma cena do terceiro ato de "Hamlet": "I do repent; but heaven hath pleas'd it so / To punish me with this, and this with me, / That I must be their scourge and minister. / I will bestow him, and will answer well / The death I gave him. So again good night. / I must be cruel only to be kind. / Thus bad begins and worse remains behind.". Ao menos como proposta inicial podemos pensar que deve ser feito previamente algum mal para que algum bem eventualmente possa florescer (ao menos para que algo muito pior fique no passado de nossas vidas). Por fim, uma última associação: "Así empieza lo malo" deve também algo ao Dante da "Divina Comédia", pois Javier Marías parece querer povoar sua literatura com menções ainda que elípticas e veladas àqueles viventes que praticaram ou praticam o mal, a todos aqueles que prejudicaram a ele, seus parentes, amigos, a seu país (sua guia pelo inferno não é outra que uma versão balzaquiana da Beatrice dantesca - não consigo escolher um bom Virgílio no livro). Li e reli esse livro como quem tateia um mapa do tesouro. "Así empieza lo malo" foi publicado há pouco mais de dois meses, no último 23 de setembro. Comprei a versão eletrônica do livro naquele dia mesmo e só quando já havia lido quase metade do livro - umas boas 250 páginas - foi que o volume físico chegou até mim. Um mês demorado de espera para algo que deveria levar uns poucos dias: Os correios brasileiros já foram uma instituição eficiente e confiável, paciência. Já com o livro físico nas mãos recomecei a leitura do início pois meu método de leitura implica em contínuas marcações nas páginas, anotações mil, registro de dúvidas. Rabisco coisas nas páginas que nem o mais eficiente dos e-readers alcançaria emular para mim. Terminei de ler o livro ainda em Brasília, durante uma missão de trabalho, há exatamente um mês, mas fiquei assombrado por ele, a consultá-lo e relê-lo, a percorrer algumas passagens como quem quer extrair delas algo mais que faça a alma um grande bem. Neste mês javiermarianesco li também "Las huellas dispersas", uma coleção de textos dele relacionados a seu Ciclo de Oxford (já mencionados acima, no início desse registro). Esses textos, sobretudo as entrevistas feitas com Marías transcritas nele, me ajudaram muito a entender melhor suas obsessões, sua inspiração e seu método. Haverá tempo neste ano para registrar algo sobre esse livro também. Essa é a centésima resenha do ano. Cousa boa. Ave Marías!
[início: 23/09/2014 - fim: 11/11/2014]
"Así empieza lo malo", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones / Penguin Random House Grupo Editorial), 1a. edição (2014), brochura 15x24 cm, 534 págs. ISBN: 978-84-204-1627-4

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

afirma pereira

Afirma Pereira é um romance muito bom. O narrador de Tabucchi começa o livro com a descrição de como um personagem surgiu como um fantasma em sua vida e fez-lhe lembrar de um jornalista português exilado em Paris que ele havia conhecido nos anos 1940. O narrador passa a contar o que soube de sua história. Pereira é um jornalista de meia idade, viúvo, católico, algo acima do peso, experimentado repórter policial, recém contratado por um pequeno jornal vespertino de Lisboa como responsável pelo caderno de cultura. Pereira traduz e edita sobretudo contos franceses. A história se passa no verão de 1938. Os dias são da ditadura salazarista, às vésperas da segunda grande guerra. Na vizinha Espanha a guerra civil está quase no fim, com as forças do ditador Franco já sobrepujando as do governo republicano com o apoio explícito dos governos italiano e alemão (além do apoio discreto do ditador português). Pereira é um jornalista que parece ser sempre o último a saber das coisas. As informações que tem sempre são de segunda mão, recebidas de um garçom, de seus médicos, de seu padre confessor e amigo, de seu chefe na redação, de uma secretária (que ele sabe trabalhar para a polícia política de seu país). Entusiasmado com um texto sobre a morte publicado em uma revista ele resolve convidar seu autor, um jovem chamado Monteiro Rossi, a escrever obituários de escritores famosos para seu caderno de cultura. Os necrológicos que Rossi escreve são sempre panfletários, libertários, algo impossível de ser editado num país onde a censura prévia da imprensa é norma. Pereira descarta as contribuições de Rossi, mas, algo paternal, continua a pagar pelos trabalhos e a dar conselhos ao jovem. Pereira lentamente percebe que Rossi deve estar envolvido com algum tipo de atividade clandestina contrária ao regime. Esgotado fisicamente Pereira resolve passar alguns dias em uma clínica de repouso junto ao mar. Lá ele conhece um jovem médico, de formação francesa, com quem discute uma provável origem psicológica de sua exaustão. Pereira volta a Lisboa e reencontra o agora foragido Rossi, acolhendo-o em seu apartamento. Contar mais sobre o livro é estragar o prazer de um eventual leitor. É mesmo uma pequena jóia, repleto de ironias e metáforas. Trata-se de um livro que pode ser transportado para qualquer tempo e lugar. A corrupta Itália de Berlusconi parece merecer muitas das ironias, já que Tabucchi publica seu livro em 1994, nos tempos de ascensão de Berlusconi como primeiro-ministro italiano. É um livro que nos faz lembrar do valor intrínseco da democracia e liberdade, que nos faz resistir, nos ensina a dizer não, simplesmente não, a qualquer tentativa de dominação, de controle social, censura ou opressão. Nos dias que correm muitos brasileiros parecem estar seduzidos com a idéia de viabilizar regimes de exceção, tanto de esquerda quanto de direita, mas esquecem, tolos e canalhas que são, que a tortura e a morte nunca escolhem ideologias, destroem sim tudo e a todos que tocam.
[início: 06/11/2014 - fim: 05/12/2014]
"Afirma Pereira: um testemunho", Antonio Tabucchi, tradução de Roberta Barni, São Paulo: editora CosacNaify, 1a. edição (2013), brochura 13x19 cm., 160 págs., ISBN: 978-85-405-0517-9 [edição original: Sostiene Pereira (Milano: Feltrinelli editore) 1994]

domingo, 7 de dezembro de 2014

o portal

Com "O portal", publicado originalmente em 1910, Natsume Soseki encerra uma trilogia que começa com "Sanshiro" e passa por "E depois", já resenhados aqui. Esses três romances não têm personagens compartilhados mas os temas discutidos são similares. Soseki discute o papel dos indivíduos numa sociedade em rápida transformação. Em "Sanshiro" acompanhamos um sujeito simples que sai do campo para a capital para estudar numa universidade. No admirável mundo novo que se apresenta, através das novas amizades e dos desafios a que se submete, a mundanidade e a hipocrisia tanto fascinam quanto assustam, deixando-o imobilizado (nunca é fácil administrar emoção e razão, responsabilidades públicas e o desejo). Em "E depois" um outro sujeito, membro de uma família rica e poderosa, forma-se numa universidade mas não se decide sobre qual carreira seguir. Descobrir-se apaixonado pela mulher de um amigo apenas reforça sua imobilidade, sua incapacidade de agir e avançar, de assumir um papel honrado na sociedade. A narrativa de "O portal" é um tanto mais amarga que a dos dois romances que o antecedem. Somos apresentados a um casal de meia idade, Sosuke e Oyone, que passam por dificuldades financeiras, tem problemas recorrentes de saúde, vivem apenas um para o outro. A exclusão da sociedade de ambos parece auto imposta, mesmo considerando-se as rígidas convenções morais da sociedade japonesa do início do século XX. Sosuke pertencia a uma família abastada que proporcionou sua ida para a universidade, mas se afasta dos estudos e cai em desgraça após se envolver e casar-se com Oyone, a irmã mais nova de um colega que já estava prometida em casamento. A repentina morte do pai e sua inabilidade natural para os negócios (antes sua recusa em pensar nos problemas, deixando sempre que o pior aconteça, ao ponto de ter sido enganado por um de seus tios) acabam por obrigá-lo a receber em casa seu irmão mais novo (Koroku). Ele parece incapaz de impedir que também o irmão abandone seus estudos universitários. A presença do irmão perturba a rotina do casal e as dificuldades financeiras se agravam. Oyone e Sosuke lamentam o fato de não terem filhos. Quando tudo parece sem solução, pois Sosuke precisa encontrar um jeito de fazer com seu irmão volte para a universidade e se formar, para não tornar-se um quase pária como ele, Sosuke parte em busca de ajuda em um mosteiro Zen budista. Seus dias ali lhe fazem bem, mas é por puro acaso, através da ajuda de um vizinho que afeiçoou-se a ele, que seus problemas são de fato resolvidos. Assim como nos demais romances da trilogia o final é aberto, podemos ser otimistas ou não sobre o destino dos personagens (Soseki parece especular sobre as possíveis metamorfoses pelas quais passa a sociedade japonesa, que enriquece, passa por rápida industrialização e militarização). Soseki tem um estilo interessante. Lê-se o livro e parece que quase nada factual de verdadeira importância acontece, até que de repente nos damos conta das complexas repercussões dos conflitos que seus personagens experimentam e aqueles conflitos nos absorvem. Soseki não moraliza a discussão, nem se utiliza de um narrador que descreva a psicologia dos personagens, mas a tensão alcançada por ele é notável. Ainda prefiro seu livro de estréia ("Eu sou um gato"), mas nenhum livro dele que já li é ruim. Soseki sempre alcança provocar reflexões poderosas a partir de suas histórias. Vale.
"O portal", Natsume Soseki, tradução de Fernando Garcia, São Paulo: editora Estação Liberdade (1a. edição) 2014, brochura 16x23, 240 págs. ISBN: 978-85-7448-241-5 [edição original: Mon () Tokyo, 1910]

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

9 historias de amor

Mempo Giardinelli tem uma imaginação dos diabos. Dele já li uma novela incrível ("Luna Caliente") e duas séries de contos bastante boas ("Luminoso Amarillo" e "La noche del tren"). Suas nove histórias de amor reunidas aqui são também histórias de dor, histórias onde a memória do vivido e o desejo do que poderia alternativamente ser experimentado se fundem (e se confundem). Três das nove histórias foram pensadas/iniciadas há mais de 20 anos (uma há quase quarenta), coisas dos tempos anteriores ao exílio mexicano de Mempo, mas só recentemente, pois o livro é de 2009, ganharam a forma final oferecida ao leitor.  Em "Jurita" acompanhamos um amor impedido por diferenças religiosas, que não se consuma, mas que consome a existência dos amantes; em "Appassionata número cero" um casal se habitua a estar junto, mas não oficializam sua relação, por medo de se perderem num casamento; em "Willie" um menino é acolhido por uma família como se fosse um anjo bom, pronto para os ajudar a superar uma crise; em "Allá bailan, aquí lloran" uma mulher vela seu marido morto e escolhe partir com ele na morte a participar dos festejos de são João; em "Martita on my mind" um professor universitário conta os sucessos de uma paixão turbulenta por uma colega bem mais jovem e imprevisível; em "El seguimento" um sujeito sobrevive a um acidente vascular cerebral e tem sua rotina vigiada pela mulher, mas a morte parece ser especialmente cruel no destino que reserva a ambos; em "Semper Fidelis" uma garota ama em segredo e se perde no tempo; em "Para toda a eternidad" um filho propicia o reencontro sexual dos pais mortos enterrando-os na mesma cova, enlaçados; em "La doble tragedia del Teatro Petruzzelli", uma versão modernizada da história de Romeu e Julieta, dois amantes fazem da luxúria o estopim da queima de um teatro onde trabalhavam. Nas histórias de Mempo o fantástico não sobrepuja o que é factual e verossímil nos atos humanos, por mais amalucados e imprevisíveis que esses atos sejam. O amor quase sempre é um fardo, uma dor, antes que algo bom, uma delícia. Mesmo amargo, talvez ele esteja certo em os descrever assim. 
[início: 09/10/2014 - fim: 06/11/2014]
"9 historias de amor", Mempo Giardinelli, Buenos Aires: Ediciones B (grupo Zeta), 1a. edição (2009), brochura 13x22 cm., 160 págs., ISBN: 978-987-627-129-5

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

michael kohlhaas

"Michael Kohlhaas" é a versão romanceada dos atribulados últimos anos de um sujeito (Hans Kohlhaas) que viveu na Saxônia em meados do século XVI (à época a Saxônia fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico). Ele foi contemporâneo de Martinho Lutero e, portanto, da reforma protestante da igreja católica. Heinrich von Kleist escreve seu romance no início do século XIX, mais de 250 anos após os sucessos vividos por Kohlhaas, ou seja, trata-se de uma história que tem mais de 450 anos. Kohlhaas era um criador e comerciante de cavalos que tornou-se o líder popular em uma revolta cuja motivação foi bastante banal: sua busca violenta por reparação - sobretudo moral, mais que financeira - após ter sido espoliado ao cruzar a fronteira das terras de um nobre e ter perdido dois de seus melhores cavalos. Ludibriado basicamente pelo preposto daquele nobre (um castelão algo simplório) Kohlhaas é continuamente enganado pelos atores do complexo sistema judiciário do Sacro Império Romano-Germânico (como todos eles são parentes ou contraparentes, utilizam-se dos mais variados artifícios para retardar qualquer resposta a sua petição). A perda dos cavalos, a morte da esposa, a desonra e a certeza da cumplicidade dos poderosos da região faz com que ele perceba que todos seus aborrecimentos decorrentes daquele logro inicial jamais serão reparados. Ele passa então a saquear e incendiar cidades, alcançando com sua milícia uma série de vitórias contra os exércitos regulares que tentam contê-lo. A descrição de Henrich von Kleist enfatiza a ingenuidade de Kohlhaas e sua ilusão com a possibilidade das leis públicas poderem de fato reparar seus danos. O próprio Lutero é convocado para dissuadi-lo e consegue a promessa de Kohlhaas de esgotar todas os níveis de recursos jurídicos do Império antes de continuar a incendiar cidades (a igreja - mesmo a igreja reformista - sempre faz algum tipo de serviço sujo para o poder estabelecido). Assim, uma vez mais enganado, Kohlhaas se afasta de seus comandados e coloca-se sob a proteção daqueles que por fim o condenarão. O livro seria apenas o registro dos atos cavalheirescos de um líder revolucionário ingênuo demais para merecer o sucesso até que Kleist acrescenta/inventa algo realmente poderoso. Ele faz com que os príncipes eleitores de Brandemburgo (Berlim) e da Saxônia (Dresden) - que são os sujeitos responsáveis pelo último recurso jurídico do caso, Kohlhaas (já condenado, prestes a ser decapitado) e uma cigana/vidente se encontrem num determinado ponto do livro. Com esse artifício von Kleist enriquece Kohlhaas como personagem pois ele passa a controlar não as ações bélicas como fazia antes de ser aprisionado, mas a psicologia do crime que está sendo cometido contra ele, a burla das leis que o condena, o arremedo de justiça que justifica sua morte. Ao lermos "Michael Kohlhaas" aprendemos que as leis existem (sempre existiram e existirão de alguma forma) mas as leis nunca foram/são/serão interpretadas da mesma forma se os sujeitos que buscam nelas conforto ou reparo pertencem a esferas de poder, representatividade e origem diferentes. A ilusão com o valor absoluto das leis é sempre destruidora. Assim como "A briga dos dois Ivans", "A lição do mestre" e "O colóquio dos cachorros", já resenhados aqui, esse pequeno livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing).
[início: 01/11/2014 - fim: 03/11/2014]
"Michael Kohlhaas: Aus einer alten Chronik", Heinrich von Kleist, tradução de Marcelo Rondinelli, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 155 págs., ISBN: 978-85-61578-37-4 [edição original: parcialmente publicado em jornais Phöbus(Dresden) 1808 / primeira versão em livro: Erzählungen (Berlin) 1810]

domingo, 16 de novembro de 2014

proust

Reli uns trechos dessa curta monografia de Samuel Beckett quando me preparei para uma conversa sobre Joyce e Proust tempos atrás (para me ajudar usei também o "Días de lectura"). Dias atrás, após terminar "Así empieza lo malo", do Javier Marías, senti que precisava uma vez mais dos argumentos de Beckett sobre Proust para comparar sua técnica com a de Marías (mas sobre isso vou escreverei depois, quando publicar um registro de leitura desse seu último - e grande - livro). Bueno. Lembro-me bem do assombro que experimentei quando li "Proust" pela primeira vez, em meados dos anos 1980 (tratava-se de uma tradução feita pela seminal Arthur Nestrovski, agora republicada pela Cosac & Naify). A síntese de Beckett demonstrava associações e apontava caminhos de leitura no livro que aquela minha encarnação de neófito leitor de Proust mal alcançava compreender (de qualquer forma as camadas de entendimento apenas se acumulam, nunca deixaremos de encontrar algo poderoso e mágico naquelas páginas). Beckett produziu esse texto por encomenda, em função de um estágio acadêmico seu na École Normal, de Paris. Posteriormente ele lamentaria o que ele chamou de "jargão filosófico chamativo e barato" de sua prosa juvenil (ele tinha 25 anos quando publicou o ensaio). Paciência. Becket faz uma leitura do ciclo "Em busca do tempo perdido" de Proust utilizando-se de associações com textos curtos de Schopenhauer e Calderón de la Barca (e também Baudelaire, Dante, Racine, Shakespeare, D'Annunzio e os gregos, sempre.) Ele não conta detalhadamente as histórias dos livros de Proust, nem tampouco faz considerações morais sobre o mundo criado por ele. O que ele oferece ao leitor é um foco sobre as cenas que são chaves na construção do romance, desperta a atenção ao que é importante ser notado na narrativa (os discursos sobre o hábito, a flora, o tempo, a música, a mentira, a ilusão da amizade, o valor da intuição). E também enfatiza os mecanismos de construção do romance, louvando os valores estéticos das soluções inventadas e/ou encontradas por Proust, apoiando o fato de Proust nunca ser panfletário ao abordar questões que tenham injunções sociais. Beckett tornou-se um mestre na economia das palavras, no poder das metáforas, ensinou-nos a nos debruçar sem medo no abismo a que nos levam os dilemas fundamentais da existência humana. Nada daquilo que ele nos oferece sobre Proust é dispensável. Assim, quando abrimos o livro e nos deparamos com sua primeira frase: "A equação proustiana nunca é simples.", é como se um admirável mundo novo desabrochasse a nossa frente. 
[início: 13/07/2014 - fim: 03/11/2014]
"Proust", Samuel Beckett, tradução de Arthur Nestrovski, São Paulo: editora Cosac & Natify, 1a. edição (2003), brochura 13x20 cm., 104 págs., ISBN: 978-85-7503-187-2 [edição original: Proust (London: Chatto & Windus (the Dolphin Books) 1931, primeira edição em português: (Porto Alegre: LP&M) 1986]

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

filomena firmeza

O título original dessa história é "Catherine Certitude", mas o editores brasileiros optaram por emular o jogo verbal do francês com algo que para mim soa excêntrico demais: "Filomena Firmeza". Paciência. Patrick Modiano ganhou o prêmio Nobel de literatura deste ano. A história é realmente gostosa de se ler. Trata-se do registro das lembranças de infância de alguém que as recuperou através da inteligência, ou seja, que construiu o entendimento daquelas experiências e memórias apenas muito tempo depois de tê-las vivido (assim fazemos todos, pois quase sempre pouco entendemos das coisas que vivemos quando crianças). Filomena é uma menina nascida na França, filha de mãe americana e pai francês. A mãe, uma bailarina profissional, separou-se do marido e voltou a morar nos Estados Unidos, mas trata-se de uma separação provisória, pois a narradora sabe e alerta o leitor que o pai ficará na França apenas o tempo necessário para transferir seus negócios, emigrando também ele, juntamente com a filha. Pai e filha são cúmplices em suas rotinas e a força do hábito os fazem partilhar com alegria o dia a dia nas aulas de balé da menina e no escritório do pai (uma empresa de importação e exportação que talvez atue em negociatas, à margem - ou no limite - da lei). A questão da identidade é a chave do livro. Todos os personagens (seu pai; o sócio dele; uma professora de balé; os pais de uma amiga da escola), com a exceção de Filomena ,parecem ter um passado nebuloso, omitido; um presente inventado, artificial. Mas não há tensões ou reviravoltas na história, apenas um conjunto de cenas, onde o carinho do pai e o amor de Filomena preenchem o livro (que captura a imaginação do leitor). A edição inclui ilustrações de Jean-Jacques Sempé (talvez mais conhecido pelas ilustrações das histórias do personagem Le Petit Nicolas).
[início: 31/10/2014 - fim: 02/11/2014]
"Filomena Firmeza", Patrick Modiano, ilustrações de Sempé, tradução de Flávia Verella, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2014), brochura 13x20 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-405-0639-8 [edição original: Catherine Certitude (Paris: Gallimard) 1988]

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

da estupidez

"Da estupidez" é um texto de Robert Musil que foi originalmente preparado para leitura em uma reunião dos membros da confederação do trabalho austríaca (Werkbund), ocorrida em Viena, no início de março de 1937. Trata-se de um reflexão filosófica, que ele afirma ainda ser preliminar, mas que tem seu valor. Diz também que a maioria dos filósofos e intelectuais de seu tempo sempre preferem definir a sabedoria antes de entender a estupidez (que não é necessariamente antônimo de sabedoria). Vamos a ver. Ele primeiramente deixa claro que não se pode transferir os fenômenos que afetam a psicologia real dos indivíduos para as sociedades, todavia entende que em muitos aspectos existe sim uma "imitação social das fraquezas mentais", e que as sociedades podem ficar doentes e incapacitadas por contaminação de práticas estúpidas individuais. Ele distingue dois tipos básicos de estupidez. Uma é a estupidez honesta (constitucional, ininteligente, incapacitante, talvez honrada, associada a limitações intrínsecas de um indivíduo). A outra é a estupidez inteligente (superior, elevada, funcional, errática, pretensiosa, resultado da abdicação voluntária do pensamento crítico). Essa última é uma fraqueza da inteligência em relação a um objeto particular, é uma doença da cultura, é algo que nunca produz uma idéia significativa e válida. Para retirar-se dos perigos dessa estupidez ele advoga que a pior situação é iludir-se com regras simples como : "Abstém-te de julgar e decidir cada vez que te faltem informações", pois assim agindo ficaríamos todos imobilizados, o mundo se deteria (e os maus governantes continuariam a nos oprimir, por inércia). Como nosso saber e poder são limitados podemos sim emitir juízos prematuros, mas devemos corrigir os defeitos destes juízos assim que for possível. Musil acredita na maior eficiência do preceito: "Age tão bem como possas e tão mal como tem de ser, permanecendo consciente das margens de erro de tua ação!". Agindo assim escapamos da escravidão mental a que nos submetemos quando aceitamos idéías e reflexões alheias, quando toleramos a mentira e a opressão política de nosso tempo. Ele começa a palestra provocativo, afirmando que a estupidez se assemelha tanto com o progresso, com o talento e com o aperfeiçoamento das coisas que quase todos aprendemos que a atitude mais inteligente que podemos adotar neste mundo é a de nos fazermos notar o menos possível, a de passarmos por estúpidos. E termina a palestra irônico, confessando ser incapaz de ir mais longe, pois se desse um passo mais, um passo em frente, entraria no reino da sabedoria, para ele uma região sempre deserdada e evitada pelo homem. Vivendo em um país absurdo e doente como o Brasil não me surpreendo que as velhas palavras de Musil ainda soem tão apropriadas.
[início: 17/10/2014 - fim: 26/10/2014]
"Da estupidez", Robert Musil, tradução de Manuel Alberto, Lisboa: Relógio D'Água Editores (coleção Sophia), 1a. edição (1994), brochura 14x21 cm., 48 págs., ISBN: 978-85-972-708-229-2 [edição original: Über die Dummheit (Wien: Werkbund) 1937]

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

petaluma

Tiago Velasco apresenta ao leitor oito contos curtos e um aforismo/miniconto/poema (que remete a Carlos Drummond de Andrade, penso eu). A edição é da carioca Oito e meio. São histórias urbanas e contemporâneas. "Petaluma", o conto mais longo e que dá nome ao livro, é franca autoficção, o resultado da transformação em narrativa ficcional de sua experiência como expatriado. Claro, podemos entender assim pois o narrador do conto se apresenta com o mesmo nome do autor do livro e o autor do livro assim o quis. Ele poderia apresentar aquelas cenas americanas, algo beatniks e cinematográficas, sem explicitar que foram antes vividas que inventadas, mas nesse caso a ausência do jogo de vozes narrativas retiraria uma camada de mistério daquelas lembranças. Nos sete contos restantes o que encontramos é um narrador que quase sempre se esconde como um fantasma, é alguém em crise, alguém em busca de uma identidade ao menos provisória. Numa de suas histórias um sujeito se reinventa após perder o emprego e passar um período em crise, mas o leitor preferiria que essa metamorfose não acontecesse daquela forma; noutra um casal se funde, literalmente, única forma de dar sentido a suas vidas após quarenta anos de casamento; numa terceira Velasco apresenta um jovem jornalista incapaz de escrever o obituário do pai, algo que só reitera a farsa do relacionamento dos dois. Todas as histórias flertam com temas ora cruéis, ora bizarros, ora fantásticos, mas Velasco as conduz bem, numa linguagem econômica e direta. São histórias um tanto depressivas, mas num registro que não é nem piegas nem bobo. Velasco parece lembrar ao leitor que aos personagens de ficção tendemos a dedicar mais compaixão ou condescendência que a oferecida aos amigos, na vida mundana, nas relações sociais (talvez condicionados que estamos pela hipocrisia de nossos tempos e isso certamente é um erro). Esse é seu segundo livro de contos. Vamos a ver o que ele nos apresentará no futuro.
[início: 26/10/2014 - fim: 30/10/2014]
"Petaluma", Tiago Velasco, Rio de Janeiro: Editora Oito e meio, 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 106 págs., ISBN: 978-85-63883-61-2

domingo, 2 de novembro de 2014

por que ler os contemporâneos?

Todo sujeito curioso sobre literatura contemporânea fará a si um grande bem mantendo por perto um exemplar deste "Por que ler os contemporâneos?", editado pelo industrioso povo da Dublinense (a organização/seleção de escritores e resenhistas ficou a cargo de Léa Masina - respeitada professora porto-alegrense - e três jovens escritores: Daniela Langer, Rafael Bán Jacobsen e Rodrigo Rosp). Trata-se da reunião de 101 breves resenhas (ou verbetes) que apresentam e/ou comentam e/ou descrevem escritores contemporâneos. O critério chave para a definição do que é ser um autor contemporâneo foi o de que o escritor tivesse publicado ao menos um livro neste século XXI. O autor mais velho resenhado nasceu em 1911 (Naguib Mahfouz, prêmio Nobel de 1988) e os mais jovens são Chimamanda Adichie, Jonathan Foer e Ondjaki (nascidos em 1977). Um décimo das escolhas já recebeu o Nobel de literatura (além do Mahfouz, também Günter Grass, Herta Müller, Imre Kertész, J.M. Coetzee, Le Clézio, Kenzaburo Oe, Orhan Pamuk, Toni Morrison e V.S. Naipul). Como já nos ensinou Umberto Eco listar e classificar coisas é um exercício disciplinador que inevitavelmente provoca vertigens (no sentido que podemos ficar tontos e desfalecer sob uma miríade de camadas de informações, simplesmente sermos tragados pelo acúmulo de informações). Diariamente centenas de livros são editados e divulgados. Por mais que um sujeito se esforce ele lerá apenas uma fração minúscula daquilo que será editado durante seus anos de vida como leitor praticante. Fiquei surpreso de que eu, um imodesto leitor contumaz, tenha lido disciplinadamente apenas 40 dos 101 autores listados. E para complicar ainda mais a cousa, sabemos todos que as pautas dos jornais, revistas eletrônicas e demais mídias especializadas em literatura (assim como o que é apresentado nas estantes das grandes redes de livrarias) experimentam e são definidas por pressões econômicas, políticas e/ou ideológicas que invariavelmente distorcem a apreciação do público. Assim, o que nos faz verdadeiramente escolher um determinado autor em detrimento de centenas de outros? Talvez só o acaso, só as circunstâncias, só a obrigação férrea surgida de uma necessidade, um edital ou concurso. A proposta de Léa Masina e seus colegas é oferecer ao leitor uma espécie de manual onde simultaneamente somos apresentados a biografia de um determinado autor, a uma seleção de suas obras mais importantes e a descrição das qualidades desta. Como seria de se esperar de uma seleção deste tipo (e como cada resenhista foi escolhido por conta de sua admiração e/ou conhecimento específico de um determinado autor) há um viés francamente favorável em quase todas as resenhas (elas lembram o tom daquela antiga coleção de títulos da editora brasiliense, "Encanto Radical", na qual sobretudo a filiação direta a uma biografia definia os textos biográficos editados). O resultado final do conjunto é muito bom. O sujeito não precisa ler o livro de capa a capa, basta consultá-lo de tempos em tempos para alcançar ajuda antes de aventurar-se com um novo autor ou voltar a um velho conhecido. A seleção foi bastante feliz, inclusive quando consideramos a distribuição geográfica dos escritores. Um quinto dos autores escolhidos é americano e quase um terço de europeus (duas maiorias naturais para nós brasileiros, imersos numa tradição que valoriza a cultura destas duas regiões), mas encontramos também onze escritores africanos, oito brasileiros, doze outros latino-americanos, oito do extremo oriente, seis do oriente médio e cinco do leste europeu. A edição é muito bem cuidada, diagramada de um jeito que torna a leitura realmente estimulante. Léa Masina assina uma curta apresentação onde explica a motivação do livro. Os editores incluíram no final um conjunto de curiosidades associadas ao processo de produção do livro (a logística de reunir 101 contribuições distintas não deve ter sido nada fácil). Os resenhistas se apresentam majoritariamente como professores universitários, jornalistas, escritores e estudantes, mas também encontramos no grupo advogados, médicos, publicitários, psicólogos e cineastas. No meu caso, como leitor, as resenhas funcionaram nos dois sentidos: concordei com várias sobre autores que conheço bem (mas também torci o nariz para o entusiasmo de algumas) e decidi continuar ignorando por uns tempos um bom punhado de autores listados cujas resenhas não conseguiram despertar meu interesse. Mas não é exatamente essa a função de um livro assim? Parabéns doña Léa, belo trabalho. E parabéns ao povo da Dublinense. Os autores resenhados são: Alan Hollinghurst, Alan Pauls, Alejandro Zambra, Alessandro Baricco, Amin Maalouf, Amitav Ghosh, Amos Oz, Andrea Camilleri, António Lobo Antunes, Antonio Tabucchi, Arturo Pérez-Reverte, Atiq Rahimi, Bernardo Carvalho, Bernhard Schlink, Bret Easton Ellis, Carlos Ruiz Zafón, César Aira, Chico Buarque, Chimamanda Ngozi Adichie, Chinua Achebe, Chuck Palahniuk, Cormac Mccarthy, Cristovão Tezza, David Foster Wallace, Don Delillo, Dulce Maria Cardoso, Enrique Vila-Matas, Gonçalo M. Tavares, Günter Grass, Haruki Murakami, Héctor Abad Faciolince, Herta Müller, Ian Mcewan, Imre Kertész, Inês Pedrosa, Irvine Welsh, Ismail Kadaré, Ivan Klíma, J. M. Coetzee, J. M. G. Le Clézio, James Ellroy, Javier Cercas, Javier Marías, Javier Moro, Jeffrey Eugenides, Jennifer Egan, João Gilberto Noll, John Banville, Jonathan Franzen, Jonathan Littell, Jonathan Safran Foer, Jorge Semprún, José Eduardo Agualusa, José Luís Peixoto, Joyce Carol Oates, Kazuo Ishiguro, Kenzaburo Oe, Kyung-Sook Shin, Laura Restrepo, Lionel Shriver, Luiz Ruffato, Marcelino Freire, Mario Bellatin, Martin Amis, Martín Kohan, Mia Couto, Michael Chabon, Michael Cunningham, Michel Houellebecq, Miguel Sousa Tavares, Milorad Pávitch, Milton Hatoum, Naguib Mahfouz, Neal Stephenson, Neil Gaiman, Nick Hornby, Nicole Krauss, Ondjaki, Orhan Pamuk, Paul Auster, Paulina Chiziane, Pepetela, Péter Esterházy, Philip Roth, Ricardo Piglia, Roberto Bolaño, Salman Rushdie, Sérgio Sant’anna, Stefano Benni, Táriq Ali, Teju Cole, Thomas Pynchon, Tomás Eloy Martinez, Toni Morrison, Umberto Eco, V. S. Naipaul, Valter Hugo Mãe, Victor Pelevin, W. G. Sebald, Zadie Smith, Zoé Valdés. E os resenhistas são: Aguinaldo Medici Severino, Alessandro Garcia, Aline Job, Altair Martins, Amanda Guizzo Zampieri, Ana Carolina Porto, André Corrêa Rollo, Andrea Kahmann, Anna Faedrich, Anselmo Peres Alós, Antônio Xerxenesky, Arthur Tertuliano, Beatriz Viégas-Farias, Benhur Bortolotto, Bernardo Moraes Bueno, Betina Mariante Cardoso, Biagio D’angelo, Bruno Mattos, Bruno Mazolini De Barros, Caio Yurgel, Caleb Faria Alves, Camila Doval, Camila Gonzatto, Camila Von Holdefer, Carlos André Moreira, Carlos Henrique Schroeder, Carmen Silveira, Celso Gutfreind, Charles Kiefer, Cíntia Lacroix, Cíntia Moscovich, Cláudio Laks Eizirik, Cristiano Baldi, Cris Moreira, Daniela Langer, Daniel Galera, Davi Boaventura, Diego Grando, Diego Petrarca, Donaldo Schüler, Elaine Indrusiak, Eric Novello, Felipe Polydoro, Fernanda Lisbôa, Fernando Mantelli, Fernando Neubarth, Flavio Torres, Gabriela Silva, Gerson Roberto Neumann, Gilda Neves Bittencourt, Guilherme Smee, Gustavo Machado, Gustavo Melo Czekster, Helena Tornquist, Helena Terra, Joana Bosak, João Armando Nicotti, José Carlos Calich, José Francisco Botelho, Juarez Guedes Cruz, Julia Dantas, Juliana Grünhäuser, Juremir Machado Da Silva, Kelli Pedroso, Kelvin Falcão Klein, Léa Masina, Leila De Souza Teixeira, Lisiane Gularte De Carvalho, Luís Dill, Luis Felipe Abreu, Luís Francisco Wasilewski, Luisa Geisler, Luiz Paulo Faccioli, Marcela Bordin, Marcelo Spalding, Maria Eunice Moreira, Michael Korfmann, Milton Ribeiro, Moema Vilela, Monique Revillion, Paloma Laitano, Paula Renata Lucas Collares, Paulo Ricardo Kralik, Pedro Mandagará, Rafael Bán Jacobsen, Reginaldo Pujol Filho, Renata Farias De Felippe, Renato Tardivo, Ricardo Barberena, Rita Lenira Bittencourt, Robertson Frizero, Rodrigo Rosp, Samir Machado De Machado, Sara Viola Rodrigues, Susana Espíndola, Tailor Diniz, Taize Odelli, Vera Cardoni, Vitor Necchi, Vivian Nickel, Waldomiro Manfroi.
[início: 10/09/2014 - fim: 12/09/2014]
"Por que ler os contemporâneos? Autores que escrevem o século 21", Léa Masina, Daniela Langer, Rafael Bán Jacobsen, Rodrigo Rosp, Porto Alegre: editora Dublinense, 1a. edição (2014), 15x23 cm., 224 págs., ISBN: 978-85-8318-038-8

sábado, 1 de novembro de 2014

el traje de los domingos

São oitenta e dois textos, publicados originalmente em jornais e revistas, entre 1992 e 1995. Apesar desses vinte anos lê-se cada um deles com bastante proveito, pois os ensaios e reflexões literárias de Enrique Vila-Matas são realmente mais robustas que resenhas ligeiras ou meras críticas de encomenda - estou seguro que ele só escreve sobre o que realmente gosta. O ritmo das narrativas é o mesmo que se encontra em dois outros livros dele que já li: "El viajero más lento" (onde ele reuniu toda sua produção ensaística anterior a 1992) e "El viento ligero en Parma" (com textos do início dos anos 2000). Os ensaios que são posteriores a "El traje de los domingos" e anteriores a "El viento ligero en Parma" estão reunidos em "Desde la ciudad nerviosa" (mas esse eu não li ainda). A curiosidade de Vila-Matas parece infinita, ele fala do poder (e da necessidade) da crítica, de suas viagens para participar de encontros literários e reencontrar amigos escritores, dá pistas sobre a gênese de sua ficção. Alguns autores são recorrentemente citados: Gombrowicz, Kafka, Rossell, Benet, Tabuchi, Monterroso, Pessoa, Nabokov, como se formassem um panteão de influências reconhecidas. Há muito humor nas histórias, mas um humor que abre caminho para reflexões sérias, bem argumentadas. Em um artigo ele compartilha a surpresa de ser sempre convidado para emitir opiniões sobre qualquer assunto mundano (política, costumes, economia, cultura) porém muito raramente sobre seu ofício, a literatura e a obra de outros autores. Noutro ele conta divertido como perdeu uma recepção com os reis de Espanha por chegar cedo demais ao palácio e perder-se em uma conversa num bar. Sua descrição de como foi confundido em Paris com o terrorista venezuelano Carlos, o chacal (um dos mais procurados dos anos 1970 e 1980) é hilária (em nossos dias mais tensos ele teria sido morto por engano ao invés de ser apenas imobilizado e preso até ser reconhecido como de fato um escritor catalão expatriado). Além dos 82 ensaios também estão incluídos seis prefácios de livros, textos onde Vila-Matas apresenta livros de Louis-Ferdinand Céine, Robert Louis Stevenson, Antón Castro, Barbey D'Aurevilly, Pedro Domene e Soledad Puértolas. É fato, sempre se lê Vila-Matas com alegria. 
[início: 17/10/2014 - fim: 30/10/2014]
"El traje de los domingos", Enrique Vila-Matas, Madrid: Huerga y Fierro editores (La rama dorada), 2a. edição (2006), brochura 14,5x22,5 cm., 319 págs., ISBN: 84-88564-48-1 [edição original: (Madrid: Huerga y Fierro) 1995]

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

o colóquio dos cachorros

"O colóquio dos cachorros" é a última das doze narrativas curtas de Cervantes reunidas no livro "Novelas exemplares" (publicado originalmente em 1613). Ela segue imediatamente os sucessos descritos em "O casamento enganoso", onde o leitor acompanha a narrativa de um jovem militar (um alferes), que foi ludibriado pela mulher com quem havia se casado (e de resto ter contraído dela uma doença venérea, da qual convalesce em um hospital). Após relatar seus aborrecimentos no casamento o alferes passa a contar a um amigo a surpreendente conversa que ouviu de dois cachorros, o que vem a ser o colóquio que encerra o ciclo das novelas exemplares de Cervantes. Cipião e Berganza são dois cães de guarda de um hospital de Valladolid. Em uma noite ambos descobrem que adquiriram a capacidade da falar. Para exercitar suas novas habilidades Berganza passa a contar as aventuras pelas quais passou até ser admitido no hospital. Bastante dispersivo em suas lembranças Berganza é reiteradamente corrigido por Cipião. É um texto divertido, através do qual Cervantes fala das mentiras e do mau comportamento dos homens, sempre dispostos a enganar seus semelhantes. Cipião sempre faz comentários eruditos, parece ser mais sábio que Berganza e, didático, utiliza conceitos filosóficos para extrair verdades morais das aventuras de seu colega, além de incluir no colóquio análises ligeiras sobre a literatura, a ciência e a política daqueles tempos. Com a chegada da aurora o colóquio e o livro terminam, com a promessa de continuarem na noite seguinte com o relato das aventuras de Cipião (caso eles continuem com o dom da palavra, mas isso o leitor jamais saberá se aconteceu ou não). Assim como "A briga dos dois Ivans" e "A lição do mestre", ambos já resenhados aqui, esse pequeno livro faz parte de uma coleção de histórias curtas (A arte da novela, da Grua Livros, originalmente produzidas pela Melville House Publishing).
[início - fim: 29/10/2014]
"O colóquio dos cachorros", Miguel de Cervantes, tradução de Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra, São Paulo: Grua livros, 1a. edição (2014), brochura 13x18 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-61578-41-1 [edição original: Novelas ejemplares de honestísimo entretenimiento / El coloquio de los perros (Madrid: Juan de la Cuesta) 1613]

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

decapitados

Depois de uma semana longe de casa eis que volto e encontro encomendas e mimos me esperando (além de contas a pagar e um punhados de ridículos folhetos de propaganda da indigente política brasileira, claro). Na caixa da Casa del Libro estavam o último Javier Marías ("Así empieza lo malo"), os contos completos de Thomas Hardy e as duas séries de ensaios do Cabrera Infante sobre as quais já li maravilhas (de sorte que esse final de ano promete alegrias mil, seguro que sim). Na cota dos mimos inesperados encontro este "Decapitados", narrativa mais recente de Leonardo Brasiliense (sujeito que andou ocupado, pois esse é o terceiro livro dele editado neste ano). No domingo, ao invés de preocupar-me quem seria a nulidade que os gloriosos brasileiros escolheriam para governá-los, dediquei umas boas horas à prosa refinada de Brasiliense. Fiz bem. Em "Decapitados" o leitor encontra dois textos que se espelham: uma novela e um conto (escrito na forma de um drama, pronto para ser encenado e/ou filmado). Na novela acompanhamos como os moradores de uma pequena cidade reagem ao desaparecimento de uma relíquia religiosa (o crânio de um sujeito que foi muito importante na fundação, crescimento e posterior emancipação política da cidade, um velho monsenhor, há muito falecido). O protagonista da história é Alexandre, um jovem que encontra o crânio e não sabe como fazer para devolvê-lo à capela de onde foi retirado (o leitor não sabe exatamente como o crânio chegou até o rapaz, mas isto pouco importa). O que a história discute são as reações intempestivas de cada morador da cidade ao desaparecimento do crânio, como se todos estivessem num transe religioso que se dissipa, deixando-os  desamparados, decapitados todos, sem rumo (livres afinal, mas nem sempre e nem todos sabem apreciar o valor - e a necessidade absoluta - da liberdade). Entendi a novela como uma reflexão sobre as dores de um aprendizado e sobre as dificuldades dos ritos de passagem da juventude para a vida adulta ou sobre as agruras de uma sociedade que perde o conforto de sua rede de hipocrisias. Brasiliense parece também inverter a cronologia do mito da queda dos homens no paraíso, fazendo Alexandre encontrar o mal encarnado numa serpente apenas no final. Curioso. Finda a novela encontramos um conto curto. Basicamente trata-se de uma cena dramática, onde um grupo de pessoas, num bar da periferia da cidade descrita na novela, conversa (ou antes,  produzem monólogos ensimesmados que não permitem verdadeiramente alguma interlocução). Em algum momento um dos personagens fala da recente retirada do crânio do monsenhor no cemitério, mas ninguém o leva à sério. Enquanto na novela são as pessoas mais importantes da cidade que se manifestam (e enlouquecem), por conta do sumiço da bizarra relíquia, no conto as pessoas simples da periferia reagem com indiferença total ao próprio projeto de criar uma relíquia, mais preocupadas que estão com seus próprios problemas. O contraste é muito interessante. Vida longa para "Decapitados" meu caro Brasiliense, vida longa. E parabéns. 
[início: 26/10/2014 - fim: 27/10/2014]
"Decapitados", Leonardo Brasiliense, São Paulo: Benvirá (editora Saraiva), 1a. edição (2014), brochura 14x21 cm., 125 págs., ISBN: 978-85-8240-162-0

terça-feira, 28 de outubro de 2014

días de lectura

Semanas atrás Marilda e Leonardo convidaram-me para falar sobre Joyce e Proust para seus alunos. Foi uma tarde produtiva, divertida, agradável. O bom destas ocasiões é que inevitavelmente voltamos aos originais, seja para dirimir alguma dúvida que surge do nada, de repente, seja para nos certificar de um detalhe bobo que gostaríamos incluir na palestra. Também relemos aqueles textos de apoio que são necessários uma vez mais, por muito que estejamos familiarizados com o assunto sobre o qual iremos falar. Foi assim que retirei dos guardados e reli um ensaio de Samuel Beckett (que em breve registrarei aqui) e esse pequeno livro (que achei em um sebo madrilenho, em fevereiro, como que por encanto). Em "Días de leitura" estão reunidos ensaios curtos de Marcel Proust. Os ensaios são: "John Ruskin" (extraído de Pastiches et Mélanges), "Dias de leitura" (prefácio incluído na tradução que Proust fez do "Sésame et les Lys" de Ruskin), "Sobre o método de Sainte-Beuve" (vários trechos extraídos do Contre Sainte-Beuve) e "Swann explicado por Proust" (incluído em Essais et Articles, mas produzido para um jornal da época do lançamento do primeiro volume de sua série "Em busca do tempo perdido"). Os textos falam sobretudo do entendimento possível das obras que lemos (Proust fala de Ruskin e de Saint-Beuve - e da obra dos dois - cotejando-as com conceitos filosóficos, referências de teóricos de arte e literatura, além dos textos ficcionais de seus contemporâneos). Aprendemos que a boa leitura é exatamente uma boa conversação com homens muito mais sábios e interessantes que aqueles que eventualmente temos chance de conhecer em nosso redor, na vida cotidiana (Proust escreve no início do século XX, o que dizer então da mediocridade encarnada reinante deste ridículo início de século XXI). O livro incluí várias notas de rodapé, uns mimos eruditos que fazem a festa do leitor que gosta de detalhes e das fontes originais. Leitura mais do que satisfatória, uma verdadeira educação dos sentidos.
[início: 13/07/2014 - fim: 15/10/2014]
"Días de lectura", Marcel Proust, tradução de Alicia Martorell e Núria Petit Fontserè, Madrid: Taurus (Great Ideas) Santillana Ediciones Generales (Grupo Prisa), 1a. edição (2012), brochura 11x18 cm., 134 págs., ISBN: 978-84-306-0933-8 [edição original: extratos de Contre Sainte-Beuve (Paris: Bernard de Fallois) 1954, Pastiches et Mélanges (Paris: La Nouvelle Revue française) 1919 e Essais et Articles (Paris: Gallimard) 1971]

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

contos da vida difícil

São quatorze contos temáticos, que gravitam em torno de um período histórico de Jaguarão, cidade localizada no extremo sul do Brasil, na fronteira com o Uruguai. Aldyr Garcia Schlee conta histórias que se passam no início do século passado, histórias de prostitutas, cafetões e amores proibidos, memória, sexo e decadência; narrativas nem panfletárias nem estereotipadas onde o tráfico de mulheres, a construção de uma ponte fronteiriça e a hipocrisia de uma sociedade são coisas que se justificam automática e simultaneamente. Schlee inspirou-se em um farto material documental, produzido por uma pesquisadora uruguaia (Yvette Trochon), onde é descrito o tráfico de mulheres nos países do Atlântico Sul, de 1880 a 1932. Se a inspiração é factual o estofo das narrativas remete a sua memória e experiência, aos fragmentos de histórias que ouviu quando garoto, de parentes e amigos mais velhos. Os contos seguem uma ordem aproximadamente cronológica. No início, nos primeiros contos, o narrador é sempre um garoto ou jovem confuso, que ou não se lembra bem do que ouviu ou viu, ou não entende o que ouviu ou viu; nos últimos o narrador já é mais experimentado e irônico, deixa transparecer ao leitor que tudo pode ser inventado, inclusive a vida (ou, como nas palavras de Enrique Vila-Matas, o narrador deixa de ser alguém que vive uma vida e passa a ser alguém que por não poder viver uma vida completamente passa a escrever sobre ela). O narrador nunca julga, nunca é moral. Gostei especialmente de "O que passou com Juan Carlos", onde uma lenda urbana sobre um cafetão uruguaio é recontada por Schlee; de "Uma mulher de passada", onde é o passado nebuloso da mulher de um militar importante da região que enfeitiça a um garoto e de "Mamá Burnes", onde são descritas as habilidades de uma cafetina em adaptar-se às circunstâncias políticas de seu tempo em paralelo a sua lenta decadência e morte. Livro interessante, de um sujeito de quem só havia lido antes "O dia em que o Papa foi a Melo", muito tempo atrás. Acho que é o caso de procurar outras coisas dele. Veremos.
[início: 08/10/2014 - fim: 09/10/2014]
"Contos da vida difícil", Aldyr Garcia Schlee, Porto Alegre: editora ardotempo, 1a. edição (2013), brochura 14x21 cm., 184 págs., ISBN: 978-85-62984-30-3

terça-feira, 7 de outubro de 2014

luz por todas as partes

Essa antologia de poemas de Cees Nooteboom me acompanha desde fevereiro, quando a encontrei - "drowning in honey, stingless" - na La Central de Callao (em Madrid). Desde aqueles dias outros volumes e leituras tomaram o seu lugar, açodados e esquecidos da boa educação, mas assim como com os demais livros de poesia que li neste ano (volumes de Ricardo Aleixo, Haroldo de Campos, Romar Beling, Robert Louis Stevenson, Vladimir Nabokov, Edward Lear, Carlos Saldanha Legendre, William Faulkner, W.G. Sebald, Cees Nooteboom e Ajo) a certeza de voltar cedo ou tarde a ele recobria-o com uma camada adicional de encantamento. Ontem, quando cheguei ao último dos poemas da antalogia ("Calera y Chozas", de 1960) e li "... nadie se sube / el viejo en su banco / espía con ojos ávidos / el tren viviente // quizá sea siempre así / el jefe de estación pita tres veces / y agita el banderín rojo ; el tren tiembla y chilla / en el paisaje anhelante. // quizá nunca volveré / a Calera y Chozas." senti que também eu nunca voltarei a muitos lugares que visitei e amei um dia. Como os poetas engendram algo que transmite exatamente os sentimentos que experimentamos num determinado dia (porém raramente verbalizamos) é algo que nunca deixa de me surpreender. Essa antologia reúne seis décadas de produção poética, desde "El poema negro" (de 1960), passando por "Poemas cerrados" (de 1964); "Ausente, presente" (de 1970); "Abierto como una concha, cerrado como una piedra" (de 1978); "Cebo" (de 1982); "El rostro del ojo" (de 1989); "Autorretrato de otro" (de 1993, que já resenhei aqui); "Así pudo ser" (de 1999) e "Dulzamara" (de 2000), chegando a "Luz por todas as partes" (de 2012). Cabe registrar que essas datas correspondem às traduções espanholas. Caso seja o caso de conferir aquelas das edições originais deve-se consultar o site do Nooteboom. O tradutor, Frederico García de la Banda, apresenta em uma breve introdução as dificuldades específicas de verter poesia do holandês para o espanhol. Os poemas se deixam ler com vagar. Quase sempre há uma citação neles, uma cifra hermética, uma chave mágica para um mundo distinto do nosso. Nooteboom rende homenagem a pensadores e poetas. Conversa com Ungaretti, Wallace Stevens, Virgílio, Bashô, Lucrécio, Li Ho. Usa a poesia para fixar uma experiência visual, um quadro, uma exposição, um arrebol que viu no oriente, um jardim coreano onde descansa. Registra epifanias religiosas, o contato com o mítico e o sagrado. Faz filosofia como um poeta. São poemas de um viajante, de um sujeito que conheceu mundos e pessoas, cidades e tradições. Ah!, Nooteboom, como  invejo tuas viagens e experiências, mas sem tua erudição, sem o grego e o latim como guias, sem as horas e os anos de vigília com os livros, como seriam minhas memórias destas mesmas viagens, destas mesmas experiências? Talvez eu também sonhasse quando li: "Entonces vi / en el parque de Charlottenburg / una sombra dibujada contra el sol / envuelta en una luz / que me deslumbró // Un instante, una mirada. / La de ella, esquiva, / a juego con las hojas que caían, / el negro de estanque, / el frío de otra vida. // ?Lo que ella vio? / Un hombre en un banco / soñando con un poema. // Otoño, caía la tarde, / los cuervos regresaban a casa, / manchas que gritan." Vou logo ali continuar a sonhar e já volto.
[início: 15/02/2014 - fim: 05/10/2014]
"Luz por todas as partes: Antología", Cees Nooteboom, tradução de Fernando García de la Banda, Madrid: Visor Libros (volumen DCCCXXII de la colección visor de poesía, Dutch Foundation for Literature), 1a. edição (2013), brochura 12,5x19,5 cm., 303 págs., ISBN: 978-84-9895-822-5 [edição original: Licht overal (Antwerpen/Netherlands: De Bezige Bij) 2012]