Embalado pela leitura do bom "o reino deste mundo" embarquei nos caminhos de "Os passos perdidos". Publicado em 1953, Alejo Carpentier escreveu-o logo depois de "o reino deste mundo" e manteve no texto o mesmo ambiente de sonho e vertigem. Nos dois livros ficamos arrebatados pela força das imagens e do quão há de inexorável nos caminhos desta vida. Um sujeito é convidado para viajar até o interior da floresta amazônica e recolher exemplares dos instrumentos musicais utilizados pelos índios. Ele, aproveitando o impasse de sua vida amorosa, dividida entre sua mulher (uma cantora lírica de sucesso) e sua amante, resolve aceitar o convite (levando consigo sua amante, num rompante de decisão amorosa). A expedição é uma empreitada difícil, cheia de surpresas. Logo no início o sujeito se vê no meio de uma típica revolução latino-americana, onde os militares e os políticos trocam de lado com a celeridade dos tontos. Passam uns dias presos em um hotel antes de poder seguir viagem. Ao longo da expedição outros aventureiros se incorporam ao grupo, entre eles um garimpeiro grego, que padece da febre do ouro e diamantes; um frei que catequiza torpemente os nativos; uma moça que pretende encontrar seu pai que sabe-se perto da morte. Primeiro de avião, depois de ônibus, enfim a cavalo, a pé e de barco a jornada do sujeito ganha ares homéricos, como se a floresta fosse o mar Mediterrêneo e ele um Odisseu crioulo. Visita diversas cidades, povoamentos. Conhece figuras bizarras. A jornada serve também como processo de auto-conhecimento do sujeito, que passa a questionar seu papel no mundo e suas relações. Ele acaba se apaixonando pela moça que pretendia encontrar seu pai moribundo (a passagem do enterro do pai morto é teatral e realmente poderosa, como se fosse um réquiem de um papa ou de um imperador no meio da floresta). Encontra os tais instrumentos musicais primitivos que deveria levar à civilização, mas resolve ficar na aldeia indígina que os garimpeiros, o padre e os demais aventureiros estão a transformar em uma utopia tropical, um arremedo de cidade moderna. A moça e ele conhecem o amor e o ciúme, o sexo e o medo. Ele começa a escrever uma peça sinfônica utilizando como cenário o que vê e sente da floresta. O livro segue a sua inevitável volta à civilização (mesmo a contragosto ele é resgatado da selva por seus empregadores e por influência da mulher, como se fosse um grande herói perdido na floresta). Sua reinserção na cidade é penosa. Enfrenta ao mesmo tempo sua mulher (que quer ganhar dividindos com a história) e a primeira amante (que ele havia abandonado ainda no meio da viagem e também quer um naco da fama do sujeito). É um livro curioso e metafórico (tudo nele pode nos levar a tentar interpretar o que vemos da america latina de hoje, principalmente da Venezuela - retratada no livro e tão mal governada pelo histriônico pateta que tornou-se o ditador de plantão local). Carpentier usa uma linguagem bastante envolvente e rebuscada, barroca até, mas o livro deixa-se ler com vagar e paciência. Assim como "o reino deste mundo" este é um livro onde aprendemos como a música tem um papel importante na vida dos homens. É mesmo um livro "musical", vou escrever assim, onde parecemos ouvir passagens musicais a cada trecho, conforme o livro evolue. Lembro-me de ter lido muitos anos atrás um texto de Guilhermo Cabrera Infante onde ele desdenhava do esforço de Carpentier por ser agraciado pelo Nobel de literatura, e de como isto amargurava o sujeito no final da vida. Preciso reler Cabrera Infante para checar esta informação. [início 02/02/2010 - fim 12/02/2010]
"Os passos perdidos", Alejo Carpentier, tradução de Marcelo Tápia, editora Martins Fontes, 1a. edição (2009), brochura 13,5x20,5 cm, 300 págs. ISBN: 978-85-99102-72-5