domingo, 29 de novembro de 2015

a bela helena

Em "A bela Helena" Miriam Mambrini dá voz a uma mulher que conta sua vida como num romance, num Bildungsroman, um romance de formação. Talita (quem é a bela Helena do título só o leitor alcançará descobrir) reflete sobre seu passado; faz um balanço dos sucessos de sua vida; digressa sobre os momentos chave que experimentou; fala de seus amores, sua família, suas conquistas. O tom não é exatamente melancólico, mas a aproximação de seus sessenta anos e de uma festa de passagem de ano dão a suas memórias uma camada de intimidade que é um bocado triste (não explicitamente triste, mas sim daquele tipo de abatimento que só os amigos ou pessoas queridas percebem num sujeito antes que ele próprio se dê conta). A Talita que Miriam inventou é uma carioca, vive na segunda metade do século passado, mas sua existência parece descolada da história do Brasil. Pouco saberá o leitor dos efeitos sobre ela derivados das transformações políticas, econômicas e culturais pelas quais passou a sociedade brasileira. Isso não é um defeito. Miriam alcança deixar sua protagonista manter o interesse do leitor apenas em sua trajetória. Só seu mundo interior, seus sentimentos, as metamorfoses que experimenta importam. Cees Nooteboom escreveu um livro que diz, com uma falsa clareza: "Eu tinha mil vidas e escolhi uma só". A Talita desse "A bela Helena" parece inverter a asserção e dizer algo como: "Eu tinha uma vida e escolhi ser mil mulheres". Vou procurar outras coisas de Miriam Mambrini. Vale.
[início: 17/10/2015 - 19/11/2015]
"A bela Helena", Miriam Mambrini, Rio de Janeiro: editora 7 letras, 1a. edição (2015), brochura 15,5x23 cm., 210 págs., ISBN: 978-85-421-0349-6

sábado, 28 de novembro de 2015

caro michele

"Caro Michele" é uma poética dos sentimentos, mas é uma poética racional, onde a lógica vale mais que a fúria, as surpresas. A imaginação de Natália Ginzburg apresenta cenas da vida privada de uma família italiana do início dos anos 1970 (as histórias do livro acontecem num intervalo curto, pouco mais de dez meses). O leitor encontra aos poucos dezenas de nomes, uma contínua avalanche de personagens, mas todos eles gravitam de alguma forma Adriana, uma mulher ainda jovem, 43 anos, mãe de quatro filhas e um filho, o Michele do título, separada de seu marido, que o leitor descobrirá ser um artista plástico algo excêntrico. Ginzburg desenvolve sua história sobretudo através de cartas mas há vários capítulos onde alguém narra em terceira pessoa. Esse narrador nunca julga os atos que registra (em contraste com os signatários das cartas, sempre críticos e dispostos a desnudar virtudes e defeitos dos demais). As histórias enfeixadas por Adriana formam um mosaico esdrúxulo, onde sua atenção se divide entre os ecos do passado e o destino imediato daqueles que ela ama. Sua maior preocupação é entender o filho, sempre em movimento, sempre distante dela, indecifrável. Os capítulos evoluem rápidos, as cenas se acumulam, revelando serem irrelevantes quase depois de acontecidas (como na vida mesmo, onde o que parece importante num momento torna-se apenas uma lembrança tola logo depois). Ginzburg não se perde com descrições, não tergiversa, obriga seus personagens a serem frios, objetivos, diretos. O leitor sabe das motivações de Michele (ao contrário de Adriana e quase todos os demais personagens), sabe de sua participação nos processos de radicalização da política européia que se sucederam ao movimento estudantil do final dos anos 1960. Mais do que o destino de Michele o que me interessou no livro foi a vívida experiência do cotidiano de uma família de classe média italiana. Os personagens são muito sinceros, transparentes, nunca são hipócritas ou dissimulados com os demais. Nenhum aparenta ser conservador política, moral ou sexualmente. Seria assim mesmo o perfil médio daquela sociedade, ou será que Ginzburg focaliza apenas o que seria representativo do comportamento de uma família de esquerda? Talvez seja esse o caso. Belo livro. Vou garimpar mais coisas dela por aí. Também li dela "As pequenas virtudes" e "Léxico familiar". 
[início: 17/11/2015 - fim: 19/11/2015]
"Caro Michele", Natália Ginzburg, tradução de Homero Freitas de Andrade, São Paulo: editora Cosac Naify, 1a. edição (2009), capa dura 16,5x22,5 cm., 186 págs., ISBN: 978-85-7503-704-1 [edição original: Caro Michele (Milano: Mondadori) 1975]

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

seres urbanos

"Seres Urbanos" é uma antologia de trabalhos originalmente publicados em fanzines cearenses na década de 1990. Recentemente "Seres urbanos" ganhou o prêmio Miolo(s) de melhor HQ (o Miolo(s) é um encontro de artistas plásticos e editores independentes que acontece anualmente na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo). O grupo Seres Urbanos começou a produzir fanzines na capital cearense após dois rapazes, Weaver Lima e Marcílio, participarem de uma oficina de quadrinhos na Universidade Federal do Ceará. Posteriormente incorporaram-se outros garotos: Elvis, Lupin, Mychel, Galba e Kaos. Esse dois últimos já eram artistas plásticos mais ou menos conhecidos. O Kaos trabalhava com arte postal e "mídia xerox" desde pelo menos meados dos anos 1980. O grupo produzia fanzines para shows de música (shows do Patu Fu, Titãs, Planet Hemp e Raimundos, por exemplo), também participava de projetos experimentais de intervenção urbana e exposições improvisadas de arte alternativa. Eles chegaram a manter uma página de experimentação gráfica num jornal de grande circulação de Fortaleza e trabalhos do grupo ganharam repercussão em jornais de São Paulo e Rio de Janeiro. Enfim, trata-se mesmo de uma antologia das boas, tanto dos trabalhos feitos em conjunto pelo grupo quanto aqueles publicados individualmente por cada um deles. As influências são mais ou menos claras: revistas de histórias em quadrinhos como Métal Hurland (francesa), El víbora (espanhola), Animal (brasileira) e Fierro (argentina). Não é o tipo de livro que se deixa ler de capa a capa, mas há muito material interessante ali para ser garimpado. O livro inclui reproduções de capas dos fanzines e também uma longa entrevista com os integrantes do grupo. Muito divertido. Parabéns ao grupo. A edição em livro foi viabilizada por um edital da Secretaria Estadual da Cultura do Ceará. 
[início: 01/10/2015 - fim: 25/11/2015]
"Seres Urbanos, 1991-1998, Antologia do quadrinho underground cearence", Weaver, Marcílio, Elvis, Lupin, Kaos, Galba, Mychel, Fortaleza/Ceará: Sebo, 1a. edição (2015), brochura 20,5x30 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-01526-13-X

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

um arado rasgando a carne

O Cláudio B. Carlos chama suas histórias reunidas nesse livro de narrativas (e ele é o senhor do livro, tem razão, claro) mas eu, ai de mim, escravo de mim mesmo, devo classificá-lo nas categorias que inventei tempos atrás ao criar o "Livros que eu li". Registrarei "Um arado rasgando a carne" na cota dos livros de contos. De fato o Cláudio narra/inventa um mundo muito particular e reúne nele 29 causos curtos, curtíssimos até, que congelam estados d'álma, partilham reflexões, descrevem sonhos de passagem da noite para o dia, dialoga com o leitor de uma forma que aqueles pensamentos parecem cristalizar-se ali na hora mesma da leitura. Cláudio sabe dominar a escatologia feroz de algumas histórias, emular uns pastiches ou causos gáuchos (divertidíssimos), tratar da memória sem ser piegas, inventar imagens fortes e fazer os bichos falarem (com mais propriedade e tino que os homens toscos que o leitor comum conhece). Quando ele sai do cenário campeiro e migra para o território urbano o tom é mais sombrio, pesado. Sua erudição (digamos assim, talvez ele não goste de explicitar tanto seu domínio da tradição literária e da cultura) vaza o tempo todo e o leitor encontra no narrador/autor alguém que conhece mitologia (há uma releitura maravilhosa de uma história budista ); o mundo dos livros; a história gauchesca; sabe enxergar bem as complexidades do mundo contemporâneo. Bom livro, boas histórias.
[início: 18/09/2015 - fim: 21/11/2015]
"Um arado rasgando a carne: narrativas", Cláudio B. Carlos (CC), São Paulo: Clube dos autores, 3a. edição, revista, (2012), brochura 10,5x14,5 cm., 72 págs., sem ISBN.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

siete casas vacías

Lançado em maio deste ano, "Siete casas vacías" ganhou o IV Premio Internacional de Narrativa Breve Ribera del Duero. São sete contos, quase todos curtos. Na verdade só um deles é longo, tão longo que alcança a soma das páginas dos demais. Pois justamente esse, "La respiración cavernaria", ilustra bem o estilo de Schweblin, onde sempre encontramos personagens que vivem um drama paralisante; um mundo que parece bizarro, irreal; diálogos belíssimos que também provocam ou flertam com a ambiguidade das idéias, dos conceitos. Lola, protagonista de "La respiración cavernaria", é alguém que sofre da doença de Alzheimer ou algo igualmente degenarativo. Demoramos um tempo para decifrar a ordem dos fragmentos do que ela é capaz de lembrar a cada dia e assim compreendermos afinal o que se narra. Nos demais contos os personagens também experimentam jornadas angustiantes. Entretanto Schweblin alterna neles cenas curtas, bem cômicas, de puro contrassenso, com outras terríveis, plenas de dor e solidão, daquele tipo de solidão que poucos sabem tolerar sem enlouquecer (e daquele tipo de dor que nos modifica para sempre): Em "Nada de todo esto" uma garota narra os atos de cleptomania selvagem da mãe; em "Mis padres y mis hijos" um sujeito visita a ex-mulher e assiste inerte a sucessão de confusões provocadas por seus pais amalucados; em "Pasa siempre en la casa" um filho se exaspera com as contínuas visitas que sua mãe faz aos vizinhos para lamentar a morte do filho deles; em "Cuarenta centímetros cuadrados" nos surpreendemos com o quê faz uma mulher que sai de casa com planos de apenas comprar aspirinas para a sogra; em "Un hombre sin suerte" é uma menina quem se afasta dos pais, momentaneamente mais preocupados com sua irmã num hospital, e acaba se envolvendo numa trapalhada; em "Salir" uma mulher sai do chuveiro, parece congelar naquele instante o tempo, abandona o que dizia ao marido, caminha por seu bairro, conversa com um desconhecido, toma café e retorna para casa, para ali terminar de enxugar seu corpo, algo mudada. São contos menos surreais e fantásticos que aqueles de "Pássaros na boca", mas igualmente densos e bem escritos. A ver o que Samanta Schweblin fará no futuro.
[início: 30/10/2015 - fim: 06/11/2015]
"Siete casas vacías", Samanta Schweblin, Madrid: Editorial Páginas de Espuma,(Colección voces / Literatura 213) 1a. edição (2015), brochura 15x24 cm., 123 págs., ISBN: 978-84-8393-185-1

terça-feira, 17 de novembro de 2015

borges vai ao cinema com maria kodama

Do Escobar já li pelo menos dois outros conjuntos de poemas: Curta-Metragem (de 2006) e Pejuçara (de 2009). Recentemente ele lançou esse "Borges vai ao cinema com Maria Kodama", e eu, ai de mim, perdi o dia de lançamento (ou os dias, soube depois), pois estava mascateando meu trabalho por aí. Paciência. Se naqueles dois outros livros o mundo que brota da memória e da arte do poeta é sobretudo o do campo, de uma cidade pequena, de um tempo mais próximo à infância ou da juventude, o que encontramos em "Borges vai ao cinema com Maria Kodama" são resultado do filtro de um homem que viaja, vai a cafés, a museus e teatros, que vê tv (a sofisticada, das performances de arte contemporânea, e a popular, dos jogos de futebol ou tênis), que interage através das novas mídias que vicejam tomando conta das almas, que capta rapidamente os estímulos gerados por aquilo que está a seu redor, que é um flâneur de seu tempo. Ao mesmo tempo não tem medo de olhar para o passado, vocalizar experiências dos pais, da vida colona, dos sonhos de rapaz; nem tampouco falar das influências poéticas, louvar aqueles poetas com quem dialoga. As palavras que Escobar mói ou reinventa são simples, mas poderosas. As imagens que cria são de um cotidiano que nós, talvez por sermos o oposto do que deve ser um verdadeiro vate, somos incapazes de decifrar como ele. Escobar, seguro de si e de suas escolhas, demonstra uma vez mais o quão bom poeta é. Vale.
[início: 01/10/2015 - fim: 09/10/2015]
"Borges vai o cinema com Maria Kodama", Escobar Nogueira, Lisboa/Portugal: Chiado Editora, 1a. edição (2015), brochura 14x21,5 cm., 70 págs., ISBN: 978-989-51-4446-4

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

minda-au

São sete contos curtos, compactos, que se deixam ler com alegria. "Minda-au", publicado originalmente em 2010, foi o livro de estréia de Márcio Renato dos Santos. Ele é o homem curioso que anda por sua Curitiba ancestral catalogando as gentes, os hábitos, os comportamentos (dele já li os bons "Mais laiquis", lançado este ano; "2,99" e "Dicionário amoroso de Curitiba", ambos de 2014. Em "Sub" acompanhamos o impacto da chuva na vida de um sujeito que vive nas ruas, num contraste  lírico entre riqueza e pobreza; em "A guitarra de Jerez" o tom já flerta com o fantástico, quando seguimos os azares que uma guitarra enfeitiçada trás a seus proprietários; em "O espírito da floresta" a ironia subjuga o fantástico, quando trilhamos a rotina de uma mulher assombrada por uma lenda urbana; "De teletransporte número 2" pode ser tanto o sonho amalucado de um rapaz quanto o delírio de alguém que foi alvejado em um assalto e delira; "Os homens sem alma" já é mais cruel, pois o narrador faz o censo das mediocridades encarnadas em um sujeito; "Pra quem busca uma vida nova" rimos da solidão de um rapaz curitibano que tenta viver em Porto Alegre para descobrir simultaneamente a inaptidão dele para o exílio voluntário e o provincianismo da cidade que ele antes idealizava; "Ali, agora" é uma espécie de réquiem que um jovem escritor produz para seu mentor, seu antigo mestre, que agoniza (ou já está morto). São histórias singelas, onde sempre se capta um sentimento genuíno, uma virtude, um aspecto do cotidiano contemporâneo, ou ainda algo abstrato, aquilo que podemos associar aos compromissos que os homens fazem para sobreviver com alguma dignidade frente os aborrecimentos desta vida.
[início: 09/10/2015 - 13/10/2015]
"Minda-au", Marcio Renato dos Santos, Rio de Janeiro: editora Record, 1a. edição (2010), brochura 13,5x20.5 cm., 80 págs., ISBN: 978-85-01-09016-4

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

marcha de radetzky

"Marcha de Radetzky" é o romance mais ambicioso de Joseph Roth. Antes de ser a história de três gerações de uma família, desde meados do século XIX até o início da primeira grande guerra, o que o leitor acompanha são os últimos momentos de um império, o Austro-húngaro, que se esfacela. Um jovem tenente de origem eslovena chamado Joseph Trotta salva a vida do imperador, o Kaiser Francisco José I, durante a batalha de Solferino, em 1859. Por conta deste gesto ganha um título de nobreza, o de barão de Sipolje. Trotta casa-se e enviúva cedo. Incomodado com as citações algo exageradas sobre sua bravura ao salvar o Kaiser, transcritas em livros escolares, ele resolve abandonar o exército e educar seu filho único, Franz Freiherr, para seguir carreira como funcionário público. Esse filho, o segundo barão von Trotta, torna-se um respeitado comissário distrital, uma espécie de governador geral de uma das províncias centrais do Império (na região da atual República Tcheca). Ele pouco sabe do passado simples do pai, das razões dele ter se afastado do exército apesar de seu reconhecido heroísmo, e da existência do avó esloveno, um velho guarda caça da periferia. Passa os dias como eficiente membro da enorme máquina burocrática de administração do Império. Franz von Trotta também se casa e enviúva cedo, também tem um único filho, Carl Joseph. Ao contrário de seu pai, Franz não impede o desejo do filho de entrar para o exército. Carl Joseph torna-se tenente como seu avô e é designado para servir num respeitado regimento de cavalaria. De alguma forma a burocracia do Império facilita os planos do rapaz, assim como havia facilitado a ascensão do pai, mas sua inaptidão para a vida militar faz com que Carl se envolva em situações embaraçosas que acabam obrigando-o a mudar de regimento, passando a servir na inóspita fronteira Russa. Mas também ali seus vícios de caráter e tibiez geram problemas e constrangimentos: o envolvimento com uma mulher casada, o contínuo entorpecimento provocado pela bebida, as mentiras que conta para o pai e o acúmulo de dívidas de jogo o fazem flertar com a possibilidade de fugir do exército. Quando o pai se prontifica a encontrar-se com o próprio Kaiser para conseguir uma solução para os problemas do filho eis que o Império sofre o trauma do assassinato do herdeiro do trono e se mobiliza para o que viria a ser o início da primeira grande guerra. Carl poderá finalmente experimentar as loucuras de um campo de batalha, como seu avô. Roth é um mestre no encadeamento de cenas. O romance é longo, mais de quatrocentas páginas compactas, mas a leitura é fácil, a psicologia dos personagens nítida, os diálogos quase sempre irônicos e divertidos. Roth nos apresenta uma sociedade sem identidade, que passou por muitas experiências mas não aprendeu nada com elas, um conjunto de indivíduos que não percebe o anacronismo de sua situação, a proximidade de um desastre definitivo, a inevitabilidade de sua destruição e morte. A mediocridade da educação das elites burocráticas e do treinamento dos militares condena antecipadamente a todos. Os interesses difusos de todos os povos aglutinados ao Império são mais que contraditórios. Não há o que lamentar quando um povo inteiro se ilude, não pesa as consequências de seus atos desarrazoados e escolhas ruins. Belo livro.
[início: 09/09/2015 - fim: 01/10/2015]
"Marcha de Radetzky", Joseph Roth, tradução de Luís S. Krausz, São Paulo: editora Madalena/Mundaréu (coleção Linha do Tempo), 1a. edição (2015), brochura 13x21 cm., 423 págs., ISBN: 978-85-68259-01-6 [edição original: Radetzkymarsch (Köln: Kiepenheuer) 1932]

terça-feira, 3 de novembro de 2015

the ulysses guide

Este é o milésimo registro de leitura que publico aqui. O que começou como um bloco de pequenas notas para os amigos (sobretudo o Renato Cohen, incentivador de primeira hora) tornou-se um grande depósito. Pensei um bocado sobre qual volume representaria melhor minha aventura com os livros ou com meu processo de leitura. Elegi sucessivamente vários dentre aqueles que li recentemente para ocupar este efêmero posto (que é apenas o de livro mais recente lido, pois sempre haverá um outro qualquer cobrando atenção e tempo, numa fila sedutora e interminável que provoca uma vertigem similar a que sentimos quando elaboramos listas mentais do que devemos ler - como já nos ensinou Umberto Eco). Acontece que demorei para ficar realmente satisfeito com uma escolha. Poderia ter sido o "The Ondt e the Gracehoper", do Joyce; as "Lições de literatura", do Nabokov; os livrinhos do Danis Rose ou do Robert Gogan (que também garimpei em Dublin); os aforismos do Karl Kraus que leio e releio há semanas; aquele do Canetti que ganhei do Rafael; a "Marcha de Radetzky", do Joseph Roth; o livro de poemas do Escobar ou o de contos do Márcio Renato dos Santos; o Kenzaburo Oe que terminei na semana passada. Dentre estes e outros tantos acabei escolhendo "The Ulysses Guide", do Robert Nicholson, pois foi esse volume que marcou-me de forma indelével este ano. Foi ele quem inspirou muitas das minhas viagens sentimentais à Dublin (muito antes de conseguir fazer mesmo uma, fisicamente). A versão do livro do Nicholson que utilizei no início deste ano para planejar e detalhar meus passeios pelos caminhos de Leopold Bloom e Stephen Dedalus no Ulysses era a original, de 1988, um volume pequeno de pouco mais de 130 páginas, editado pela Methuen. Mas foi justamente ao visitar o James Joyce Centre, num dos primeiros dias por lá, que encontrei esta edição revisada, com quase o dobro do tamanho do original. Claro, não furtei-me de comprar o volume e incorporá-lo a meus guardados (os livros antigos que substituímos por suas jovens encarnações devem nos odiar um bocado, ai de nós). Robert Nicholson conhece obra e vida de James Joyce muito bem e é o curador de duas jóias dublinesas: o James Joyce Tower and Museum e o Dublin Writers Museum. Seu livro inclui mapas um tanto ingênuos porém precisos, ilustrações e fotografias de época, além da transcrição de algumas das passagens do Ulysses onde se faz referência à geografia de Dublin. O leitor pode com facilidade localizar com seu livro os lugares de maior interesse. Nicholson apresenta oito diferentes trajetos que os acólitos de Joyce podem fazer em passeios de aproximadamente três ou quatro horas. Em cada um se emula a experiência de leitura do Ulysses de uma forma diferente. O livro inclui vários apêndices: Num sincroniza os movimentos de Leopold Bloom e Stephen Dedalus; noutro apresenta uma versão simplificada (porém útil) do Linati's Schema (o famoso roteiro de interpretação do Ulysses, escrito por Joyce e enviado a um sujeito chamado Carlo Linati; mas devemos lembrar que Joyce dizia ter produzido esse roteiro mais para confundir do que para esclarecer o público leitor: "To help him to confuse the audience a little more"); noutro discute o que fez Stephen antes da história do livro começar; noutro fala das diferentes edições do Ulysses. O volume termina com uma bibliografia realmente boa e atualizada. Essa nova edição discute as circunstâncias do desaparecimento, entre 1988 e 2015, de alguns dos lugares de culto joyceano que faziam parte dos roteiros originais: o açougue Olhausen e o hotel Ormand são as perdas mais significativas, mas agora, como uma fugaz compensação, existe o "Luas", o sistema de trens de superfície que ecoa o ruído  dos bondes da época de Joyce, facilitando bastante os deslocamentos. Os roteiros permitem que o leitor encontre com facilidade muitos dos lugares citados no Ulysses. Na verdade eu sei que o melhor jeito de um flâneur joyceano divertir-se em Dublin é mesmo perder-se pela cidade e esperar aqueles momentos inevitáveis que surgem quando o sujeito dobra uma esquina qualquer e experimenta a epifania de uma descoberta; a lembrança fugidia de uma passagem do texto original; a alegria de uma associação poderosa (que talvez só ele seja capaz de apreciar e não terá importância para mais ninguém, mas que também ninguém tira do sujeito).
[início: 16/06/2014 - fim: 22/02/2015]
"The Ulysses guide: Tour through Joyce's Dublin", Robert Nicholson, Stillorgan/Dublin/Ireland: New Island Books, 1a. edição (2015), brochura 13x20 cm., 243 págs., ISBN: 978-1-84840-452-6 [edição original: (London: Methuen Books) 1988]
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[Dos 1000 livros que eu li desde 01/01/2007]
Nesses nove anos que mantenho o "Livros que eu li" 1000 registros se acumularam, quase como por mágica. Dentre eles quase 60% (593 volumes) corresponde ficção (276 romances, 59 novelas, 54 romances policiais, 5 livros de ficção-científica, 122 são conjuntos de contos, mini-contos ou aforismos, 77 são livros de poesias ou peças de teatro). Os outros 40% (407 volumes) corresponde a textos de não ficção ou aquilo que eu chamo genericamente de divertimentos. Os livros de não ficção (252 volumes) são os livros de crônicas, ensaios, perfis biográficos, memórias, divulgação científica, cartas, dicionários e livros explicitamente didáticos (uns poucos). Os divertimentos (155 volumes) são os livros de viagem, gastronomia, arte, fotografia, catálogos de exposições de arte, livros dedicados ao público infanto-juvenil, histórias em quadrinhos, fanzines, graphic novels e mangás). Gosto sempre de ler o maior número possível de obras de um mesmo autor. O escritor que mais li desde 2007 foi o madrilenho Javier Marías (que acredito ser o melhor escritor vivo). Dele já resenhei cerca de 40 livros, entre narrativas ficcionais, traduções, conjuntos de crônicas e ensaios. Li também neste período quase tudo do catalão Manuel Vázquez Montalbán, morte em 2003, escritor e jornalista que teve um papel relevante na redemocratização espanhola (fiz resenhas de 35 livros dele, a maioria romances policiais nos quais o protagonista é um detetive galego chamado Carvalho). Além desses dois espanhóis li vários livros do italiano Andrea Camilleri (25); do holandês Cees Nooteboom (23); do catalão Enrique Vila-Matas (18); do americano Philip Roth (17); do espanhol Arturo Pérez-Reverte (18); do inglês Ian McEwan (15); do irlandês James Joyce (15); dos franceses Patrick Modiano (12), Marcel Proust (10), J.M.G. Le Clézio (9), Amélie Nothomb (8) e George Simenon (8); do sul-africano J.M. Coetzee (9); do angolano José Eduardo Agualusa (9); dos alemães W.G. Sebald (9) e Herta Müller (7); do japonês Natsume Soseki (8) e do polonês Joseph Conrad (8). Seria mais do que tedioso listá-los aqui, mas sei que no conjunto li pelo menos 150 autores diferentes neste período. Como viajo sempre que possível gosto de ler algo que esteja relacionado aos lugares que visito, seja a obra de um autor local que desconheço ou o que poderia ser chamado de biografias literárias das cidades. Com essa motivação conheci e incluí no blog autores brasileiros muito bons como os curitibanos Luís Henrique Pellanda, Márcio Renato dos Santos e Caetano W. Galindo; os gaúchos Leonardo Brasiliense, Escobar Nogueira e Samir Machado de Machado, o carioca Paulo Henriques Britto, o soteropolitano João Filho, o recifense Urariano Mota, o mato-grossense Joca Reiners Terron, o sergipano Antonio Carlos Viana e o paraense Dalcídio Jurandir. Não tenho medo de ler solenes desconhecidos, autores que patrocinam os seus próprios livros, publicações de editoras que não alcançam ser divulgadas nos jornais e televisão. Tento sempre melhorar meu instinto para as picaretagens que a crítica literária e a mídia em geral tentam escoar na bacia das almas que é o mercado brasileiro mas é óbvio que leio um bocado de bobagens todos os anos. Quem acompanha o blog sabe que gosto de ler livros em espanhol. Aproximadamente um quinto dos livros que resenhei no "Livros que eu li" foi escrito nessa língua. Também há uns poucos que li no original em inglês. Cabe dizer por fim que esses registros não são nem de longe resenhas críticas profissionais, nem tampouco ensaios elaborados ou definitivos sobre os livros. São antes comentários que mesclam a cada caso tanto detalhes das tramas ou dos sucessos dos livros quanto digressões que brotaram de minha memória e afetaram meu humor ao longo desses anos, especialmente quando sou particularmente marcado por aborrecimentos ou encantamentos derivados das leituras. Haverá tempo para outros mil livros no futuro? Haverá tempo para um dia pelo menos listar o outro milhar de livros que acredito ter lido antes de 2007? Difícil dizer. Não sou exatamente um candidato a longevidade, mas espero continuar sempre me divertindo nesse processo. Apesar de saber que é muito improvável que haja qualquer futuro para a crítica de livros no Brasil, ainda acredito no prazer individual proporcionado pela lembrança das horas que passamos com eles, ainda acredito no descanso na loucura que eles proporcionam.Vale.