sexta-feira, 31 de agosto de 2018

o leitor como metáfora

Ler Alberto Manguel sempre é uma aventura pelo mundo dos livros, das bibliotecas, das obsessões literárias. Não é diferente neste "O leitor como metáfora". Somos apresentados a reflexões que remetem a ideia da leitura, ao contrato afetivo que se estabelece entre leitores e livros, ao vocabulário que lentamente se criou para identificar essa atividade, esse ofício, essa deliciosa sina. É um livro compacto, lê-se com folga em um bom final de semana. O volume é fartamente ilustrado, como para dar também uma ideia visual ao leitor da fortuna iconográfica, distinta daquela outra, original, que é a fortuna crítica dos investigadores dos hábitos de leitura dos homens. Manguel se concentra em três das muitas metáforas que podem ser associadas aos homens que leem: a do viajante, aquele que descobre o mundo mesmo estando a sós com as letras de um livro; a da torre, o claustro daqueles que preferem a solidão compartilhada com os livros que as viagens; a da traça, a dos ratos de biblioteca, daqueles que não se importam mais que exista um mundo e outras vidas acontecendo fora dos livros. A linguagem de Manguel não é empolada, artificial, entretanto o livro é formatado como num texto acadêmico, povoado por citações muito precisas, especialmente das ilustrações, epígrafes e referências. Quando lemos livros assim somos transportados à infância, aos tempos dos primeiros encantamentos com os livros, as primeiras descobertas, àquela sensação de cumplicidade, entre autor e leitor, que parecia brotar dos livros, e que parece continuar brotando, por sorte nossa. Belo livro. Vale! 
Registro #1319 (crônicas e ensaios #231) 
[início 24/08/2018 - fim: 26/08/2018]
"O leitor como metáfora: o viajante, a torre e a traça", Alberto Manguel, tradução de José Geraldo Couto, São Paulo:  Edições Sesc São Paulo, 1a. edição (2017), brochura 16,5x23 cm., 148 págs., ISBN: 978-85-9493-056-9 [edição original: The Traveler, the Tower and the Worm: The Reader as Metaphor (Philadelphia/USA: University of Pennsylvania Press) 2013]

domingo, 26 de agosto de 2018

runa

Nunca havia lido nada de Rodolfo Fogwill, respeitado escritor e professor universitário argentino. "Runa" é um de seus últimos livros (ele morreu em 2010). Trata-se de uma fábula, uma espécie de história fragmentada dos primórdios da humanidade, bastante inventiva. A bem da verdade não necessariamente da nossa humanidade. Em algum momento o leitor pode pensar que se trata de um mundo pós-apocalíptico, que volta a ser povoado por homens que pouco guardam do passado, estão a se reinventar, divididos em tribos pelo território. A narrativa é composta por 62 blocos ou capítulos. Num fragmentado monólogo o narrador é um homem parece explicar para outro, de uma outra tribo, que talvez nem entenda sua língua, e talvez seja prisioneiro dele, sobre como é a sociedade em que vive. Ele conta algo da história daquela tribo; de seus hábitos e costumes; da linguagem; de como são escolhidos coletores e guerreiros; de como os chefes são eleitos pelos deuses; sobre os cantores, as danças, os filósofos, os curandeiros e os profetas; das normas de convivência social; das diferenças entre aquela tribo e as demais: o povo das ramas, o povo dos fogos, aqueles que veem do país das neves, do país das areias, do lugar das águas azuis, o povo das planícies. Lembra de batalhas, mortes, movimentos migratórios, do assombro de existir quem seja capaz de montar num cavalo. Há vezes em que a curiosidade do narrador é sobre técnicas de manufatura (de flechas, de pedras de cortar), noutras o interesse é pela linguagem do sujeito que ouve, sobre como ele atribui sons para as coisas materiais e os conceitos abstratos, noutras ainda os questionamentos são sobre a cor da pele, dos olhos, sobre eventos remotos que talvez aquele sujeito tenha ouvido falar. O livro inclui também, distribuídos entre os capítulos, de uma série de reproduções de ilustrações rupestres, de povos primitivos da Escandinávia, Brasil, Argentina, Rússia, Austrália, Índia, Alasca, Etiópia e outros tantos países do mundo. Muito interessante. Vamos a ver se encontro outras coisas de Fogwill.Vale! 
Registro #1318 (romance #347) 
[início 17/07/2018 - fim: 23/08/2018]
"Runa", Rodolfo Enrique Fogwill, Buenos Aires: Interzona Editora, 1a. edição (2011), brochura 13x22 cm., 128 págs., ISBN: 978-987-1180-81-3

sábado, 25 de agosto de 2018

viagem na rússia

Noutro dia mesmo li o excelente "Judeus errantes", de Joseph Roth. No último capítulo Roth falava da situação dos judeus na Rússia, observações fidedignas, recolhidas em uma viagem que ele havia feito à Rússia, no segundo semestre de 1926. Esta viagem foi planejada de forma a permitir que Roth enviasse matérias curtas que fossem publicadas em um jornal na Alemanha, à medida em que percorria o país. Posteriormente todo o material foi reunido, reescrito em livro e é agora também parte da boa coleção antagonista da editora Âyiné. Em "Viagem na Rússia" encontramos registros de um país em construção, que ainda se assombra com as rápidas transformações decorrentes da revolução de 1917. O jornalista que cruza a fronteira russa no equinócio de outono de 1926 voltará otimista em dezembro, mas Roth não teria como antecipar as metamorfoses ainda mais terríveis pelas quais passaria o povo e a sociedade russa nas décadas seguintes. Em 1926 a Rússia soviética ainda era um enigma para os europeus ocidentais. Viajar pelo país não era difícil, apesar da discreta vigilância. Roth parte de Paris, não antes de falar dos russos emigrados que ali viviam, russos que fugiram da revolução, quase todos arruinados, ainda iludidos com a possibilidade de uma volta que jamais se materializaria. Visita várias cidades, da fronteira até Moscou, de lá até Samara (no Volga), a Astracã (no Mar Cáspio), a Baku (onde hoje é o Azerbaijão). Vai a centros urbanos e também ao campo, conversa com gente poderosa (os novos burgueses, que enriqueciam com o programa econômico bolchevique daqueles tempos, o NEP) e com gente simples, em bares e estações de trem. Vai a museus, igrejas, redações de jornal. Cada capítulo trata de um assunto diferente, aborda algo curioso e intrigante sobre o país em transformação. Roth fala da agitação urbana e da força produtiva no campo, dos judeus e do antissemitismo, das práticas de engenharia social, da revolução sexual, das mudanças no papel da mulher na sociedade, no sentido religioso do povo, dos camponeses (mujiques, libertados da servidão dos tempos do Tsar). Vê as paradas militares comemorativas dos dez anos da revolução. No último artigo ele fala do uso da propaganda, da massificação da opinião pública, da censura. Acusa a imprensa soviética de parcial, de não ter independência e, sobretudo, conhecimento factual do mundo. Fala da esterilidade que resulta da censura. Sábio homem. Poucos anos depois Stalin concentraria em si todo o poder, organizaria os expurgos e massacres que definiriam a União Soviética por pelo menos mais trinta anos. Roth em breve estaria morto, deprimido e alcoolizado, talvez vendo o sem sentido do crepúsculo final da Europa daqueles tempos. Lembrei-me de quando, quase ainda adolescente, no final dos anos 1970, li os três poderosos volumes de Trotsky sobre a revolução russa. Aquela massa de informações ajudou-me um bocado, blindando-me de ser tão manipulável nos anos seguintes, imberbe aluno no IFUSP, algo abobalhado nos furiosos debates pela redemocratização do Brasil. Pena não ter conhecido o lirismo e a capacidade de síntese crítica de Joseph Roth naquela época. Vale! 
Registro #1317 (crônicas e ensaios #230) 
[início 19/08/2018 - fim: 22/08/2018]
"Viagem na Rússia", Joseph Roth, tradução de Alice Leal e Simone Pereira Gonçalves, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção antagonista #18), 1a. edição (2017), brochura 10,5x15 cm., 168 págs., ISBN: 978-85-92649-23-4 [edição original: Reisen in Russland (Berlin: Verlag Die Schmiede) 1927]

sexta-feira, 24 de agosto de 2018

gastão debreix

Foi o Luciano Bitencourt, generoso, quem presenteou-me com esse livro, ainda em meados de 2016, uma edição muito bonita e bem cuidada da Dgraus Design. Mas os aborrecimentos dos últimos anos, a mudança de apartamento, a revolta e fúria dos guardados que só se encontram por acaso e o hábito, aquele senhor que sabe ser fiel camareiro mas também sabe ser brincalhão, esconderam-no de mim. Noutro dia, rearranjando os livros na biblioteca, justo mesmo onde deveria estar, na sessão dos livros de arte, reencontrei-o, espremido entre um poderoso volume de gravuras do Rembrandt e um não menos grosso volume de histórias do Orotava, um antiquíssimo bar que existia em Barcelona, sobre o qual em breve também escreverei aqui. Bueno. Já conhecia algumas obras de Gastão Debreix, que vi em uma exposição no SESC, há muitos anos. Ele é um artista plástico, designer e professor que vive no interior do Estado de São Paulo, na região de Bauru. Em sua produção plástica utiliza várias técnicas: serigrafia, marchetaria, computadores, fotografia e colagens, mas sua linguagem e intuição são mesmo as de um bom poeta visual. O livro inclui textos de Janira Fainer Bastos, Omar Khuri e Oscar D'Ambrósio, além de fragmentos de biografia, assinados pelo Luciano Bitencourt (que sempre sabe ser poeta), e uma boa entrevista com o Debreix, produzida pela TV UNESP em 2012. O leitor pode apreciar todo o material deste livro em um site, vale mesmo a pena acessá-lo: https://www.gastaodebreix.com.br/. Ainda mais expressivo é o site do Atelier Lapispau, mantido por Debreix. Há um bocado de jogos bacanas ali, cousas produzidas com madeiras nobres, que são comercializados por ele em galerias de arte e lojas de decoração. Noutro dia fiquei sabendo que haverá uma exposição de seus trabalhos em São Paulo, no final deste 2018. Ulalá. Vou ver. Viva Debreix, viva! Vale! 
Registro #1316 (livro de arte #27) 
[início: 10/08/2017 - fim: 20/08/2018]
"Gastão Debreix: razão e sensibilidade", Janira Fainer Bastos, Luciano Bitencourt, Omar Khuri, Oscar D'Ambrósio, São Paulo: Dgraus Editora, 1a. edição (2011), brochura 22,5x30 cm., 100 págs., ISBN: 978-85-65272-00-1

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

o sol da meia-noite

Depois de uma temporada de férias, em que dediquei-me a ver maratonas de séries "étnicas" (vi umas quantas coreanas, algumas indianas e australianas, muitas escandinavas), recebi a indicação de um amigo para ler "Macbeth", do norueguês Jo Nesbo. Dias depois outro amigo, o Erwin, também citou o mesmo Nesbo, em outro contexto. Como estava fechando a compra de um pacote de livros espanhóis resolvi incluir o tal "Macbeth" nele. Quando o livro chegou (sempre eficientíssimos a Casa del Libro e a DHL) vi que se tratava de um tijolo impossível de ser carregado por aí. Para me adestrar no estilo do sujeito resolvi ler antes um outro livro dele, "O sol da meia-noite", editado aqui pela Record. A história é movimentada e prende o leitor, mas a bem da verdade o resultado não me agradou muito. Claro, o exotismo do cenário da narrativa, as latitudes extremas do círculo polar ártico, no nordeste norueguês, próximo a fronteira com a Rússia, garante alguma curiosidade, mas a trama é apenas um conto de fadas adaptado aos tempos modernos. Um pequeno traficante de Oslo, Jon, vê-se enredado nos negócios do grande mafioso do lugar, um sujeito conhecido como "Pescador". Para fugir dele, Jon foge até a Lapônia norueguesa, onde a maioria da população pratica uma espécie de luteranismo apostólico, conservador. Jon sabe que em algum momento assassinos de aluguel a serviço do "Pescador" o alcançarão, que não há lugar onde ele possa assentar-se a salvo. O leitor é apresentado a personagens arquétipos do lugar: o líder religioso, o louco da aldeia, a mulher sedutora, a jovem viúva com um filho pré-adolescente. O livro trata basicamente da redenção de um pecador; as associações bíblicas e religiosas são bastante óbvias, e dominam todo o livro. Enfim, legítimo best-seller descartável. Espero que "Macbeth" tenha mais estofo. Logo veremos. Vale! 
Registro #1315 (romance policial #76) 
[início: 20/08/2018 - fim: 21/08/2018]
"O sol da meia-noite", Jo Nesbo, Rio de Janeiro: Editora Record, 1a. edição (2018), brochura 15,5x23 cm., 223 págs., ISBN: 978-85-01-11379-5 [edição original: Mere Blod (Oslo: Aschehoug Forlag) 2015]

terça-feira, 21 de agosto de 2018

descobrindo a cada passo

Esse é o segundo volume de uma coleção dedicada ao ensino de Matemática dirigida sobretudo ao público jovem, mas que pode ser lido com deleite por qualquer indivíduo que não tem medo de aprender. Já falei aqui do primeiro volume, "Brincando com o conta-gotas", e do terceiro, "Calculando com fatias". Recentemente achei o segundo volume da série, esse "Descobrindo a cada passo". Desta vez Antonio Rodrigues Neto fala sobre a matemática como ferramenta fundamental para o cálculo de distâncias, para a noção de escala, para entender os sistemas de conversão de unidades, para não se assombrar com as relações entre tempo e espaço. A linguagem é simples, objetiva, mas absolutamente rigorosa, correta, ou seja, o Neto não faz uso de malabarismo tontos para empurrar abstrações matemáticas na mente dos estudantes, antes sim os provoca a deambular junto com ele por vários assuntos, assuntos pelos quais sozinhos talvez neles se perdessem, ou simplesmente, se entediassem, como costuma acontecer com as ciências e, ai de nós, com qualquer assunto árido hoje em dia. Já disse que o Antonio Neto é mestre em escolher bons exemplos do cotidiano para ilustrar conceitos chave em Matemática, reproduzir em bom português situações que todos experimentamos no dia a dia. Sim, os livros desta coleção do Sesi-SP ficam bem em qualquer biblioteca de pais que têm filhos. Vamos a ver se o Sesi-SP publica logo as demais aventuras matemáticas do Toninho Neto. Pelo que entendi são prometidos pelo menos mais três volumes. Logo veremos. Vale! 
Registro #1314 (didático #11) 
[início: 03/08/2018 - fim: 05/08/2018]
"Descobrindo a cada passo", Antonio Rodrigues Neto, São Paulo: SESI-SP editora (Educação; Coleção: Para gostar de matemática), 1a. edição (2016), brochura 12x18 cm., 76 págs., ISBN: 978-85-8205-514-4

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

pesado demais para a ventania

Mário de Andrade já nos ensinou que "há uma gota de sangue em cada poema". Já Ricardo Aleixo nos ensina que neles além de sangue há dor, revolta, angústia e memória de crimes, assim como também inteligência, estratégia, técnica e ação. Nesta poderosa antologia o leitor encontrará muitos exemplos do ouro fino que Aleixo tem garimpado na lavra das Musas desde o início dos anos 1990. Já registrei aqui vários dos livros nos quais esses poemas foram publicados originalmente: "A roda do mundo", de 2004; "Máquina zero", de 2004; "Modelos vivos", de 2010; "Impossível como nunca ter tido um rosto", de 2015 e "Antiboi", de 2017. Mas como não conheço todos seus livros anteriores, deve haver poemas coligidos de "Festim", de 1992; "Trívio", de 2002 e "Mundo palavreado", de 2013. A antologia "Pesado demais para a ventania" reúne 105 poemas distribuídos em seis conjuntos, envelopados por dois outros, soltos, um que abre o volume, como numa invocação, "Língua lengua", e outro que o encerra, "Meu negro", uma vibrante e potente coda. O que registrar dos seis conjuntos, sem falar muita bobagem, sem os macular com leituras tortas? Vamos a ver: (i) Em "Desde e para sempre" fala-se de família, de mitologia africana, de memórias de infância, genealogias, faz-se homenagens; (ii) Em "Outros, o mesmo" o poeta brinca e joga para valer com tipografia, com as palavras, com a métrica, registra certos espantos; (iii) Em "Ter escrito ainda não existe" reúne concretos jogos poéticos, reflexões sobre o ofício de poetar, nos conduz pelo caminho da gênese de conceitos, ideias, poemas e fragmentos da memória do autor; (iv) "O coração, meu limite" sensualiza o verso, fala-se de amor, consciência do corpo, musas mulheres, sexo; (v) Em "Multidão nenhuma" o poeta se metamorfoseia num ente noturno que caminha pela cidade, flana por ela, confronta sua belo horizonte fundamental, tenta olhar de longe e de perto as coisas, ajustando o foco da vida; (vi) Em "Queridos dias difíceis" o poeta rosna para o mundo, pisca bravo para a crítica, doma sua fera cidadã, fala dos caminhos sem volta, mostra-se pronto para um combate, pergunta-se. Os poemas quase sempre parecem brotar de algo marcante, da memória, da vida, do sangue, mas possuem, como num palimpsesto, camadas superpostas de técnica, erudição, intuição poética, influências, apuro, espantos. Sorte de quem ler esse livro, ler esses poemas, tentar decifrar esse negro enigma. Evoé Aleixo, evoé. Vale! 
Registro #1313 (poesia #98) 
[início: 10/06/2018 - fim: 15/08/2018]
"Pesado demais para a ventania", Ricardo Aleixo, São Paulo:Todavia livros, (1a. edição) 2018, brochura 14x21 cm., 196 págs., ISBN: 978-85-93828-66-9

domingo, 19 de agosto de 2018

veneno de cristal

"Veneno de cristal" é o décimo quinto volume com os sucessos do comissário Guido Brunetti, invenção da sereníssima Donna Leon. Desta vez a investigação é algo informal, um favor para um amigo do inspetor Vianello que enredou-se numa trama na qual se fundem a cobiça dos homens por poder e riqueza com a soberba daqueles que possuem um dom raro que não querem compartilhar com ninguém. O cenário muda um tanto. Brunetti e Vianello precisam ir mais ao norte de Veneza, ao pequeno arquipélago de Murano, ilha onde se concentram os sopradores de vidro,  fabricantes de cristal, artífices do fogo. O ritmo é lento, primaveril. Dificilmente, nos livros de Donna Leon, o crime acontece na primeira página e resolvido na última. Neste caso a única morte que precisa ser investigada acontece mesmo já na segunda metade do livro. O que se investiga mais atentamente é a poluição da laguna, os métodos que pessoas inescrupulosas utilizam para não seguir normas da comunidade europeia de proteção ambiental. Vianello mostra mais de seus matizes: leitor de artigos científicos, quase vegano, solidário à questões sociais, hábil hacker de computadores, cético sobre a união europeia, um livre pensador que respeita as mulheres. O ritmo tranquilo de almoços familiares e jantares onde comer, beber e desfrutar da companhia um do outro vividos por Paola, Brunetti e seus filhos sempre é invejável, muito embora saibamos que não se pode emular uma vida assim, fazê-la facilmente brotar desde um livro. O livro rediscute também temas já conhecidos do leitor da série: questões linguísticas, o problema crônico do turismo, as transformações urbanas da cidade, os "carteiristas não-comunitários", a sutil arte da etiqueta veneziana. Os crimes se resolvem por um detalhe, lugar onde o diabo mora, sempre. Falar em solução do crime talvez não seja apropriado. Os casos não são exatamente solucionados nos livros de Donna Leon. Quando muito sabemos a motivação, o como, quando, quem e porque de algo, mas nunca os mecanismos implacáveis da justiça em ação (isso é para otimistas ou ingênuos). Só o sarcasmo salva um sujeito da depressão, caso espere correção e ordem nas engrenagens do sistema de poder e no aparato judicial (de qualquer país e lugar, em qualquer tempo). Esse é o último dos livros dela que li fora da ordem cronológica, há mais de um ano. Agora os próximos volumes serão lidos e registrados na ordem certa. Outro bom e honesto volume esse "Veneno de Cristal". Vale! 
Registro #1312 (romance policial #75) 
[início: 18/07/2017 - fim: 24/07/2017]
"Veneno de cristal (Brunetti #15"), Donna Leon, tradução de António Carlos Carvalho, Lisboa: Planeta Manuscrito (Grupo Planeta), 1a. edição (2011), brochura 15,5x23,5 cm., 278 págs., ISBN: 978-989-657-173-3 [edição original: Though a Glass, Darkly (Zürich: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2006]

sábado, 18 de agosto de 2018

viagem ao volga

Resolvi registrar este volume como um livro de arte, mas poderia incluí-lo aqui como um livro de memórias, ou um relato de viagens, ou de crônicas. Mas o pequeno milagre que é sua existência merece alça-lo ao status de uma peça artística. Trata-se de um curto relato, coisa de 70 páginas, produzido por um árabe que viveu no início do século X, chamado Ahmad Ibn Fadlan, dando conta dos sucessos que viveu em uma viagem de 4000 Km, de Bagdá a uma região próxima a confluência dos rios Volga e Kama, antigamente o reino dos búlgaros do Volga, hoje território russo. Em algum momento o manuscrito original de sua viagem perdeu-se e apenas fragmentos dele eram conhecidos, como parte de um dicionário geográfico do século XIX. Posteriormente, no início do século XX, a versão atualmente conhecida, ainda incompleta, foi descoberta em uma biblioteca iraniana e editada em livro. Ibn Fadlan integrou uma comitiva oficial enviada por um califa islâmico - líder máximo da religião - rumo a Bulgária do Volga. O objetivo da viagem era responder o pedido de ajuda do rei eslavo de lá, recém convertido ao Islã, para a construção de uma mesquita e de um forte. Seus inimigos são os khazares, povo de origem turca convertido ao judaísmo que dominou extensas regiões entre o Mar Cáspio e o Mar Negro. Responsável pela entrega de presentes do califa ao rei e a produção de registros da viagem, Ibn Fadlan narra não apenas as tratativas oficiais, os ritos diplomáticos de passagem pelas fronteiras serpeantes daqueles dias, mas também muito sobre a natureza e os hábitos culturais dos diferentes povos que encontrou. Tudo o que lhe espantou foi registrado, de sorte que o livro não parece ser aos especialistas exatamente um documento oficial, para fins diplomáticos. Bom observador e refinado diplomata ele é capaz se expressar com clareza e objetividade, não fazendo uso de atalhos retóricos que inevitavelmente redundariam em relatos fantásticos ou de cunho mitológico. O comentários mais interessantes são sobre um povo que ele chama de Rus', que os especialistas associam ou aos russos primitivos ou aos vikings. As descrições dos habitos de higiene e do funeral de um líder deste povo são terríveis. A versão romantizada e lírica dos funerais vikings não guarda nada da força do relato de Ibn Fadlan, detalhista da série de estupros, torturas, matança e destruição que acompanhavam o rito. Muito interessante também é o relato sobre o que podemos entender hoje como aurora boreal, muito embora a latitude daquela região não seja tão alta para que esse fenômeno fosse visível facilmente. A edição é bilingüe e a tradução, diretamente do árabe, é assinada por Pedro Martins Criado. A capa é muito bonita, produzida por uma técnica (hot stamping holográfico) que produz reflexão da luz incidente sobre ela em uma miríade de cores. O leitor pode ter uma ideia desse efeito no site da gráfica responsavel pela publicação (clica aqui: hot stamping holográfico, Ipsis Gráfica). O livro inclui ainda mapas, uma breve cronologia do islamismo e uma apresentação, também assinada por Pedro Criado. Vale! 
Registro #1311 (livro de arte #25) 
[início: 12/08/2018 - fim: 13/08/2018]
"Viagem ao Volga: Relato do enviado de um califa ao rei dos eslavos", Ahmad Ibn Fadlan, tradução de Pedro Martins Criado, ilustrações de Bruno Algarve, São Paulo: Editora Carambaia, 1a. edição (2018), capa-dura 12,5x21 cm., 144 págs., ISBN: 978-85-69002-40-6 [edição original: Risalat Ibn Fadlan, (Bagdá) 921-922 d.C.]

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

longe daqui, aqui mesmo

Encontrei esse livro por acaso, lá na boa Bamboletras, de Porto Alegre, onde estava o capitão de longo curso dos livros, don Gustavo Ventura. Há quanto tempo não nos víamos? Dez anos talvez! É muito tempo! Em "Longe daqui, aqui mesmo" estão reunidos oito contos curtos, assinados por Flávio Ilha, um experiente jornalista porto-alegrense, mas que nunca havia produzido narrativas ficcionais. Os contos foram produzidos como exercícios em uma oficina literária que o premiado romancista João Gilberto Noll ofereceu em 2016. São histórias curtíssimas, coisa de duas, três páginas, que brotaram do estímulo casual e aleatório inventado por Noll nos encontros semanais com seus alunos. São peças bem escritas, contidas, que se não explicitam algum virtuosismo, também não pecam por fórmulas e clichês. O leitor acompanha fragmentos de vidas: de uma menina que precisa ser rápida para bem enganar a mãe; da solidão entranhada de um sujeito que lembra dos pais; do registro de uma perda terrível aos olhos de uma criança, agora já metamorfoseados num adulto que entende a tragédia maior que viveu; da vertigem e atordoamento de um sujeito que foi espancado; das reflexões de uma mulher que acabou de transar com um desconhecido; do escrúpulo de um padre com as obrigações de seu ofício; do tédio que um artista plástico experimenta ao ser seduzido por uma modelo; da monotonia e vazio que brotam após uma traição. Não se sabe se os contos foram editados na ordem cronológica de sua composição, o que poderia implicar em uma evolução, maior apuro ou cousa que o valha, mas o último dos contos do livro, "Minhas férias", foi o que mais me agradou, pois é aquele em que solução do pequeno conflito é a mais original, menos familiar. Só raramente capturamos virtudes e defeitos de um sujeito apenas lendo um livro seu, assim, vamos a ver se Flávio Ilha inventará outras boas histórias como estas no futuro. Vale! 
Registro #1310 (contos #152) 
[início: 11/08/2018 - fim: 12/08/2018]
"Longe daqui, aqui mesmo", Flávio Ilha, ilustrações de João Salazar, Porto Alegre: Diadorim Editora, 1a. edição (2018), brochura 14x21 cm., 60 págs., ISBN: 978-85-93107-04-7

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

pedras ensanguentadas

Esses volumes de Donna Leon editados em Portugal são mesmo interessantes. Acompanhamos as rotineiras investigações de crimes na Veneza do comissário Guido Brunetti, porém o leitor brasileiro delas ganha uma pátina de linguística, que brota da presença de uma miríade de palavras que não usamos rotineiramente aqui, mas que são correntes em Portugal. Se no volume "Provas manipuladas" havia só anotado um par delas, neste "Pedras ensanguentadas" marquei dezenas, numa festa para os sentidos e imaginação.  Como não se deliciar com a súbita presença de um "marimbou-se", um "algures", ou "prendas", ou ainda "vou ter com elas", "mo dizer", "cacifo", "cabedal", "comezaina", "perorações", "cariz", "tisana" e "ecrã", entre tantos outros vocábulos. Claro, o sujeito sabe que já leu essas palavras um dia, entende o sentido, ainda que por elipse, mas não são cousas que estamos sempre a ouvir. Pois neste volume Brunetti vê-se envolvido em um crime que parece banal, o assassinato de um vendedor ambulante (em italiano um neologismo ofensivo, "vu'cumprà") de origem africana, mas que se revela uma trama que ascende a questões de estado, a geopolítica europeia, a vis interesses econômicos e as guerras civis que grassam pela África. As pedras ensanguentadas do título são aquelas pedras que Ruskin um dia descreveu, aquelas que fizeram o jovem Marcel de Proust experimentar uma de suas epifanias fundamentais, mas também são diamantes, motivação mais que suficiente para que tribos rivais, acidentalmente reunidas em um mesmo país pelos europeus no século XIX, lutem até a quase extinção. Mais que investigar, Brunetti tem que atuar como refinado diplomata, travestir suas intenções o suficiente para avançar, para entender um caso que será oficialmente encerrado sem punição alguma. Em paralelo a essa narrativa de cobiça e morte, Donna Leon acrescenta reflexões sobre como, quando jovens, somos capazes de emitir opiniões contraditórias, agir sempre sem limites, sermos cruéis e amorosos ao mesmo tempo. Um bom e honesto volume esse. Vale! 
Registro #1309 (romance policial #74) 
[início: 04/08/2018 - fim: 08/08/2018]
"Pedras ensanguentadas (Brunetti #14)", Donna Leon, tradução de Carlos Pereira, Lisboa: Planeta Manuscrito (Grupo Planeta), 1a. edição (2010), brochura 15,5x23,5 cm., 286 págs., ISBN: 978-989-657-097-2 [edição original: Blood from a Stone (Zürich: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2005]

sábado, 11 de agosto de 2018

judeus errantes

De Joseph Roth já li bons romances ou novelas ("", "Marcha de Radetzky", "A lenda do santo beberrão", "Hotel Savoy" e "Fuga sin fin") e um espetacular livro de ensaios sobre "Berlin". "Judeus errantes" é um outro livro de ensaios, uma outra pequena maravilha. Joseph Roth viveu entre 1894 e 1939. Nasceu na Áustria e viu o poderoso império Austro-Húngaro fragmentar-se após a primeira grande guerra mundial, na qual voluntariou-se como jornalista, interrompendo seus estudos universitários. "Judeus errantes" é ainda mais impressionante que "Berlin". Foi publicado originalmente em 1927 e descreve as migrações de judeus do leste europeu, expulsos da Rússia e da Polônia após os conflitos decorrentes da Revolução Russa e ascensão do regime comunista. Esses judeus errantes eram os que vagavam rumo a Europa do oeste e também para os Estados Unidos. Não se trata apenas de uma descrição histórica. Roth faz uma sociologia multi fragmentada de um fenômeno que apenas estava se iniciando (ele não viveu para acompanhar a tragédia da segunda guerra mundial). Roth fala do abrigo que os judeus encontravam na periferia das cidades da Europa ocidental, nos guetos que ali se formavam; das dificuldades de seus documentos (quando existiam) serem reconhecidos e validados; das atividades profissionais as quais se dedicavam, do talento inato deles; de seus costumes e hábitos, que chocavam os ocidentais, tanto cristãos quanto protestantes, e também os judeus já estabelecidos nestes novos lugares. Roth chama esses últimos de judeus burgueses, sefarditas orgulhosos de sua raça antiga e nobre. Enfim, ele descreve bem as diferenças entre os judeus de origem askenazi e os de origem sefardita, fala do alvorecer do movimento sionista, daqueles que ele define como judeus proletários (que vivem sobretudo para a religião, mas não se furtam de trabalhar duro), judeus nacionalistas (que querem um estado próprio) e judeus burgueses (aqueles já radicados na Europa ocidental). Ele viajou a União Soviética em 1926 e escreveu uma última e curta sessão do livro, baseada nesta experiência. Apesar de otimista esta é a parte mais terrível do livro. Roth é uma espécie de visionário, antecipa questões que serão discutidas, e até violentamente discutidas, após o fim da segunda grande guerra, como a necessidade da criação de um estado nacional judeu, a importância dos judeus americanos no futuro dos judeus de todo o mundo, o recrudescimento do antissemitismo. O livro é dividido em sessões: uma que trata da definição de quem são os tais judeus errantes; outra que fala de como se organizava originalmente uma cidadezinha de minoria judaica, na Polônia e na Rússia; dos guetos ocidentais em Viena, Berlim e Paris; do status dos judeus que conseguiam emigrar para os Estados Unidos e sobre a situação dos judeus que continuaram na Rússia soviética. Hoje, para um leitor contemporâneo, seu livro parece algo que brota do trabalho de um arqueólogo, tamanha a força e o frescor das análises. O texto é jornalístico (alto lá: jornalismo como era praticado no século passado, não o pastiche idiotizado e medíocre que majoritariamente se encontra hoje em dia nas diferentes mídias). As frases são claras, bem escritas, convincentes. A sociologia é refinada. A editora Âyiné publicou um outro volume de Roth, "Viagem a Rússia", que li quase simultaneamente a este. Em breve o registrarei aqui. Vale! 
Registro #1308 (crônicas e ensaios #229) 
[início 19/07/2018 - fim: 05/08/2018]
"Judeus errantes", Joseph Roth, tradução de Simone Pereira Gonçalves, Belo Horizonte: Editora Âyiné, 1a. edição (2016), brochura 10,5x15 cm., 164 págs., ISBN: 978-85-92649-12-8 [edição original: Juden Auf Wanderschaft (Berlin: Verlag Die Schmiede) 1927]

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

O gato filósofo

No ultimo Natal dei de presente para algumas pessoas queridas volumes dos livros de Kwong Kuen Shan. Ela é uma artista plástica chinesa, nasceu em Hong Kong, vive radicada na Inglaterra há muitos anos. Seus livros combinam aquarelas com textos antigos, provérbios chineses, poemas e ensinamentos zen, ou seja, à reflexões de Confúncio, Mêncio, Lao-Tse e Chuang Tse (quando não de pensadores anônimos e aforismos tradicionais), somam-se aquarelas belíssimas. "O gato filósofo" é um deleite para os sentidos. Você não precisa necessariamente ler as coplas e poemas que acompanham as imagens, mas elas formam um belo conjunto, funcionam bem juntas. Todas as ilustrações obviamente incluem gatos. Para um senhor desavergonhado deles, como eu, isso sempre é uma alegria. O que Kwong Kuen Shan nos ensina é a magia decorrente da disciplina da observação, a calma e a paciência que são necessárias para que se conheça algo destes pequenos tigres domesticados, destes leões, pumas e panteras em miniatura que sabem ser enigmáticos e também cativantes. São quarenta as ilustrações incluídas neste volume. Às imagens são acrescentados também caracteres chineses e impressões de sinetes, que representam o estado de espírito do artista no momento de criação. Desta forma o leitor tem na verdade quatro camadas de informação a cada página: a imagem fixada pelo artista, o poema que a complementa, os caracteres que identificam o título da obra e os sinetes que identificam o que motivou o gesto do artista. Aquarelas não são gravuras, mas lembrei muito de doña Helga, senhora da tradição das gravuras, da imagem reproduzida, do ato da criação, da beleza intrínseca das coisas simples, cotidianas. Haverá outros livros de Kwong Kuen Shan por aqui. Vale! 
Registro #1307 (livro de arte #24) 
[início 01/02/2018 - fim: 19/02/2018]
"O gato filosófico", Kwong Kuen Shan, tradução de Denise Bottmann, São Paulo: Estação Liberdade, 1.a edição (2015), brochura 17x17 cm., 96 págs., ISBN: 978-85-7448-250-7 [edição original: The Philosopher Cat (Oxford/UK: Butterworth-Heinemann / Elsevier Group) 2004]

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

escalpo

Em algum momento das férias comprei esse livro, mas logo, com o início das aulas, o perdi nos guardados, ai de mim. Há poucas semanas o reencontrei e retomei a leitura. Terminei rápido, como sempre deve ser. Trata-se de um bom, como eu poderia dizer isso sinteticamente?, um bom "Road trip book político-sociológico-sexual pela América Latina", ou uma grande viagem dos sentidos, uma experiência limite, uma odisséia latina, um sonho que brota de um trauma. O narrador de Ronaldo Bressane neste seu livro mais recente, "Escalpo", deambula acompanhando seus personagens de São Paulo (desde a ubíqua Vila Buarque, cara aos livros descolados desses últimos tempos) a Punta del Diablo, de New York a Angoulême (na França do Zapico), de Santiago a Bogotá, e logo Montevidéu, Cabo Polônio, Porto Alegre e outras cidades mil até chegar a Paraty, no sul do Rio de Janeiro, para sua vertigem final. Um quadrinista premiado e arrogante, Ian, amalucado em virtude de um complicado processo de separação e uma inquestionável acusação de plágio, após passar anos incensado, badalado pela mídia, procura um apartamento barato para morar na região do Largo do Arouche, em São Paulo. Em uma das visitas que faz ao procurar apartamentos conhece um velho escritor de origem chilena, Miguel Ángel Flores, que vive paraplégico, preso a uma cadeira de rodas, com dois papagaios e a lembrança de um livro seu que fez algum sucesso. Poucas horas após ter visitado esse apartamento (e seduzido ou ter sido seduzido por uma outra provável locatária do lugar), Ian acaba participando de uma das passeatas que aconteceram no Brasil no inverno/primavera de 2013, onde acaba sofrendo uma concussão. A partir daí o livro torna-se o tal "Road trip book" que sugeri acima. Bressane digressa sobre vários temas: as tais manifestações de 2013, o destino dos filhos sequestrados pela ditadura Chilena de Pinochet, a violência que tomou conta das periferias de qualquer cidade brasileira, o ofício da literatura, o abuso e as delícias do sexo e das drogas, a política brasileira, política cultural e sei lá mais quantos outros pequenos temas. O ritmo do livro é mesmo rápido. O leitor quer saber até onde seguirá a busca de Ian pelos filhos perdidos de Miguel Ángelo Flores, se é mesmo que eles existem. O ritmo atordoante e folhetinesco do livro lembra o de "Medo e delírio em Las Vegas", de Hunter S. Thompson. As passagens onde Ian transa e trepa sem pudor são o ponto alto do livro, lembram o melhor de Philip Roth (sempre sou exagerado, mas eu vivo de fazer associações e forçar sinapses, fazer o quê?). O livro é resultado de uma residência literária (de três meses, concedida pela Sesc), mas isso não é exatamente um problema. Ronaldo Bressane explica em um curto posfácio que ele sabe cumprir prazos, não importa o quão complicada seja a experiência de escrever por encomenda. O leitor encontra bons momentos no livro (já falei das cenas de sexo, mas a emulação da linguagem ou registros de fala de distintos personagens, brasileiros e latino-americanos, também é algo que se destaca no livro). A bem da verdade nunca havia lido nada de Bressane. Vamos a ver se encontro algo antigo dele por aí. Vale! 
Registro #1306 (romance #346) 
[início 10/02/2018 - fim: 15/07/2018]
"Escalpo", Ronaldo Bressane, São Paulo: Editora Reformatório, 1.a edição (2015), brochura 14x21 cm., 256 págs., ISBN: 978-85-66887-33-4

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

sin brunetti

O título original deste livro ("On Venice: Music, People and Books") explica melhor que encontramos nele: ensaios sobre música (sobretudo erudita), pessoas (que vivem em Veneza) e livros (que Donna Leon leu, por prazer ou por encargo). O "Brunetti" do título desta edição espanhola é um óbvio chamariz para os leitores aficionados de seu famoso personagem. Paciência. São cinquenta e dois relatos, a grande maioria publicados em jornais ou revistas (a edição original é de 2005, mas o livro não dá indicações de quando exatamente os artigos foram escritos e publicados). Todos os relatos são curtos, crônicas de encomenda talvez, digressões não muito extensivas acerca de algo específico, objetivo (ela não dá saltos aleatórios, não muda de tema rapidamente, nem tenta mostrar sua bem provável vasta erudição). Para ser mais detalhista que o título original cabe registrar que o livro é de fato dividido em seis conjuntos. Vamos a ver. Os doze ensaios reunidos em "Sobre Veneza" são de reflexões panorâmicas da cidade, onde ela fala da história mais remota e também da contemporânea, dos problemas contemporâneos. A cronologia acompanha a de sua familiarização com os costumes do lugar, desde a primeira visita, turista deslumbrada como qualquer outra, até os eventuais dias nos quais o tédio se superpõe ao encantamento. "Sobre a música" reúne seis críticas profissionais sobre apresentações líricas, montagens que ela cobriu profissionalmente ou entrevistas com cantores líricos e diretores. Trata-se de um trabalho acurado, coisa de melômano, especialista. Enfim, como quase todo escritor Donna Leon deve ter sido obrigada a fazer trabalhos deste tipo antes de poder viver apenas dos direitos literários de sua obra. "De humanos e animais" é o conjunto menos interessante. São onze ensaios legítimos, ou seja, uma forma de prospecção d verdades e conceitos, mas os exemplos que ela utiliza e o sarcasmo discreto que recai sobre os indivíduos sobre os quais digressa são frouxos e nada específicos de Veneza, poderiam ser ditos de qualquer lugar. "Dos homens" enfeixa onze ensaios sobre as relações entre homens e mulheres. Não há neles um feminismo militante, explícito, de almanaque, porém as posições firmes e os argumentos sólidos demonstram que ela sabe defender-se e defender seu sexo, sem malabarismos retóricos. Sua descrição dos dias em que foi professora em uma universidade saudita deveria ser lida por qualquer mulher que tenha a pretensão de falar sobre a condição humana, como um todo, e da condição da mulher na sociedade, em particular. Nos seis relatos reunidos em "Sobre os Estados Unidos da América" sabemos algo das razões que a levaram a um auto exílio europeu, apesar de nunca ter renunciado a cidadania americana. Trata-se de um rosário de críticas, aos políticos, aos americanos "médios", ou seja, a ignorância média dos americanos, à mídia, ao sistema de saúde, ao mercado editorial. Por fim, em "Sobre os livros" Donna Leon dá seis lições práticas de como um neófito pode aventurar-se ao mundo da criação literária, especificamente a construção de romances policiais. Não são exatamente aulas de escrita criativa, antes são reparos que antecipam os erros mais comuns que um jovem escritor comete, sugestões para o aperfeiçoamento da técnica e da necessária obsessão para bem exercer este ofício. O quê acrescentar? Donna Leon é obviamente uma mulher muito inteligente e muito prática, que antes de inventar mundos, criar suas histórias de detetive, viveu (e vive) algo pleno, viajou pelo mundo, deu aulas (no Irã, na China, na Arábia Saudita, nos EUA, na Itália), conheceu pessoas, leu muito, estudou com disciplina, conversou com amigos, amou e foi amada. O Brasil, ai de nós, aparece rapidamente em uma das crônicas, quando ela escarnece de um livro qualquer comparando-o a um roteiro de novelas brasileiras, encerrando a crítica dizendo algo do tipo: "qualificar este livro de barato, sórdido, é coroar e louvar sua autora". Muito divertido. Vale! 
Registro #1305 (crônicas e ensaios #228) 
[início: 13/04/2018 - fim: 16/04/2018]
"Sin Brunetti", Donna Leon, tradução de Ana Maria de la Fuente, Barcelona: Seix Barral / Biblioteca Formentor (Editora Planeta S.A.), 4a. edição (2014), brochura 13,5x23 cm., 261 págs., ISBN: 978-84-322-2800-1 [edicão original: On Venice: Music, People and Books (Zürich: Diogenes Verlag AG) 2005]

terça-feira, 7 de agosto de 2018

provas manipuladas

Esse é o décimo terceiro volume da série dedicada aos sucessos do comissário Guido Brunetti em Veneza. Em "Provas manipuladas" acompanhamos a solução clássica de um crime que foi atribuído a uma pessoa inocente, por xenofobia, sexismo, racismo. Uma idosa e irascível senhora é encontrada morta e a polícia italiana resolve facilmente o caso ao verificar que uma mulher de origem romena que prestava serviços de faxina a ela havia saído apressadamente do país com uma soma considerável de euros (já estamos nos tempos da unificação monetária da Europa, Donna Leon sempre sincronizando a realidade com sua invenção). Apesar desta evidência, Brunetti é instado a envolver-se e investigar novamente o crime por um padre para quem ele devia alguns favores, ainda na juventude. A trama é bem elaborada, intrincada mesmo, todavia funciona. Mas o crime e a inventiva narrativa são na verdade apenas um artifício que Donna Leon criou para espezinhar mais uma vez a sociedade italiana, exemplificar o alcance perverso dos hábitos, dos infinitos recursos que a lei de lá permite aos muito ricos e muito culpados, dos costumes italianos, da cobiça dos incorporadores imobiliários, das leis trabalhistas fascistas, da inevitabilidade do confronto entre os cidadãos daquela sociedade e os imigrantes (seja do leste europeu, seja do mundo muçulmano, sejam latinos americanos). Apesar das críticas aos métodos alucinantes da burocracia italiana quem auxilia Brunetti na solução do caso é uma cidadã italiana, que mesmo contra pressões públicas defende a empregada romena e explica as circunstâncias de sua saída da Itália e o porquê dela estar com muito dinheiro. Brunetti é um detetive que sabe ouvir, que deixa fatos e evidências aflorarem do cipoal de meias verdades e mentiras completas. Esse volume explora as virtudes privadas, os vícios públicos e os pecados capitais, que coexistem e assombram qualquer sociedade contemporânea. Elettra e Vianello trabalham no limite da lei para contornar a crise que a interferência de seu chefe na investigação. Paola, nos agradáveis almoços e jantares em família, proporciona com sua sagacidade e até cinismo, uma espécie de bolha de tranquilidade, de paz, para Brunetti. Trata-se de um volume que reforça a importância de um círculo de amizades não tóxicas para a saúde mental de qualquer sujeito, de qualquer família. Assim como o anterior, "Assassínio na Academia", esse é dos mais amargos volumes da série. Como minha versão foi editada em Portugal tive um prazer complementar ao ler o livro, pois encontrei vários termos que não são rotineiramente utilizados aqui no Brasil, como comboio, assoalhada, se mo permitem, gelosias, forreta, coscuvilhar, entre tantos outros. Como é rico e vasto nosso português. Mas vamos em frente. Vale! 
Registro #1304 (romance policial #73) 
[início: 21/02/2018 - fim: 24/02/2018]
"Provas manipuladas (Brunetti #13)", Donna Leon, tradução de Ana Lourenço, Lisboa: Planeta Manuscrito (Grupo Planeta), 1a. edição (2010), brochura 15,5x23,5 cm., 246 págs., ISBN: 978-989-657-066-8 [edição original: Doctored Evidence (Zürich: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2004]

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

las puentes de moscú

Ler as histórias de Alfonso Zapico sempre implica em um envolvimento emocional, como se ele apostasse em uma ligação afetiva para comunicar ideias e reflexões sobre assuntos nem sempre fáceis. Percebe-se isso em "Café Budapest", no qual ele trata do conflito árabe-israelense; em "El otro mar", em que fala da conquista espanhola das Américas; em "Cuadernos d'Itaca", que discute a experiência do quase exílio, de um estrangeiro como ele vivendo entre franceses e viajando pelo mundo, saudoso de sua Espanha e de seu asturiano fundamental. Nos seus volumes dedicados a obra de James Joyce ("Dublinés" e "La ruta Joyce"), esse mesmo registro afetivo é utilizado para descrever como ele se envolveu um um tema complexo, difícil de classificar e reduzir-se à forma de Graphic Novel. Enfim, em suas próprias palavras ele se considera "um dibujante de conflictos". "Los puentes de Moscú" é seu livro mais recente. Não se trata das pontes da Moscou russa, mas sim das pontes metafóricas de uma praça em Irún, Guipúzcoa, no país basco espanhol, conhecida como praça vermelha. Zapico desenha e adapta para o formato de história gráfica um encontro que teve em Guipúzcoa com dois amigos, Eduardo Madina e Fermin Muguruza. Madina é um político espanhol de origem basca, foi secretário geral do partido socialista, sofreu um atentado do grupo terrorista e independentista ETA e atualmente é professor universitário. Muguruza é cantor, instrumentista e produtor musical basco, muito respeitado em sua região e que mantém colaboração com músicos de todo o mundo. É também um sujeito comprometido (a seu modo) com o projeto independentista do País Vasco. Zapico e Madina são quase da mesma idade (quase quarenta ou quarenta e poucos, respectivamente), Muguruza um pouco mais velho (tem cinquenta e cinco anos). Zapico registra os vários encontros entre eles, conta suas biografias, os feitos mais decisivos de cada um, as controvérsias e polêmicas nas quais se envolveram, momentos tristes e também alegres de suas vidas. Das conversas, sempre ao redor de mesas de bar, de café, vinho ou pratos típicos bascos, brotam reflexões sobre um conflito que é difícil de compreender e mais difícil ainda de explicar. Não há conclusão possível. O que Zapico propõe é estabelecer pontes entre os indivíduos, discutir como cada um pode contribuir para esse complexo debate. Afinal, o tempo continua fluindo, como as águas dos rios que seguem para o mar próximo a Irún, as vidas seguem sendo vividas, e algum convívio pacífico entre membros de cada grupo (os nacionalistas e os idependentistas) possível. Vale! 
Registro #1303 (graphic novel #70) 
[início: 21/05/2018 - fim: 23/05/2018]
"Los pontes de Moscú", Alfonso Zapico, Bilbao: Astiberri Ediciones, 1a. edição (2018), brochura 17x24 cm., 200 págs., ISBN: 978-84-96815-51-5

domingo, 5 de agosto de 2018

andarilhos

Assim que terminei o bom "Noite escura", procurei esse outro volume de Rodrigo Tavares, um romance que ele publicou no ano passado, "Andarilhos". O cenário é o mesmo, a fronteira difusa entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, mas o período histórico é diferente. Desta vez somos apresentados a personagens que vivem seus sucessos no início do século passado, num mundo à parte, imune as circunstâncias do país e do mundo, com regras de conduta bem particulares, hábitos devidamente entranhados e indiscutíveis. Tavares conta a história da rivalidade entre dois sujeitos, o domador de cavalos Pedro Guarany e o tropeiro João Fóia. Se o ambiente do pampa gaúcho lembra as pradarias dos westerns, onde homens fortes forjam o seu destino à força bruta, como nos filmes de John Ford, a desavença entre os dois homens ecoa os muito mitos gregos associados ao fatalismo das cousas, ao acaso, as maldições familiares, a hybris. Todos são andarilhos no campo gaúcho, mas Tavares se interessa mesmo pelo destino de seus dois protagonistas e de um curioso francês, Alphonse Saint Dominguet, um escritor que deambula fazendo registros do mundo físico e dos costumes da gente que habita aquele exótico lugar (ele chega inclusive a visitar o famoso Castelo de Pedras Altas, lugar onde um diplomata chamado Assis Brasil implantou, ainda no início do século passado, modernas técnicas agrícolas e de manejo animal). Saint Dominguet também funciona como um provável alter ego do autor, espionando o destino de seus protagonistas. Os andarilhos do livro são também duplos, pessoas que passaram por alguma metamorfose em suas vidas, foram obrigados a se reinventar, encarnar novas personas. O livro é muito bem escrito, incorporando o registro das formas de comunicação que fogem um bocado da norma culta, ou seja, da linguagem como é de fato praticada por gaúchos do Rio Grande e do Uruguai, indistintamente, até hoje. Claro, um leitor de fora do Rio Grande do Sul vai perder uma ou outra informação, mas nada que um pouco de esforço não resolva. Livro invernal, para ser lido tomando mate, próximo a um fogo de chão, sentindo a brisa de um ríspido minuano no rosto. Vamos a ver o que o Tavares engendrará no futuro. Vale! 
Registro #1302 (romance #345) 
[início: 02/07/2018 - fim: 03/07/2018] 
"Andarilhos", Rodrigo Ungaretti Tavares, Porto Alegre: Martins Livreiro Editora, 1a. edição (2017), brochura 14x21 cm., 202 págs., ISBN: 978-85-7537-256-2

sábado, 4 de agosto de 2018

não há amanhã

Em "Não há amanhã", de Gustavo Melo Czekster, estão reunidos 30 contos, quase todos bem curtos, porém potentes, bons mesmo. O tema das histórias parece acessório, pois o que impressiona no conjunto é a qualidade do texto, burilado, rico em figuras de linguagem, em metáforas, imagens, em modulações, provocações, em meditações, propostas. Num primeiro momento pensei em sintetizar o conjunto como um "livro de contos de fadas erudito", mas com isso talvez se perdesse algo do encantamento provocado pelos relatos. De qualquer forma, das histórias algo amalucadas inventadas por Czekster brotam, antes que preceitos morais ou ensinamentos para a vida prática, lições sobre a concretude das palavras, da potência intrínseca delas, do cuidado com que cada palavra ou conceito deve ser empregado para que uma ideia possa vestir-se de algum valor. Tudo parece novo, não há clichês, frases feitas, joguinhos metaliterários. Sim, o livro é povoado por ecos de histórias bíblicas e citações literárias, mas não como num exercício cabotino, e sim pela funcionalidade estética e reflexiva alcançada pela utilização deles. Há temas que frequentam mais de um conto: o silêncio, a obsessão, o transe e a vertigem, o sonho, a loucura e a morte. Gostei particularmente de "A passionalidade dos crimes", no qual um sujeito planeja uma elaborada forma de vingar-se de seu antigo mentor; "Os problemas de ser Cláudia", que brinca com a quase dissociação que experimentamos nas crises; "A ingrata tarefa das esfinges", uma metáfora sobre o deserto, o nada, de onde surgem todas as histórias, todos os mitos; "Mercúcio deve morrer", uma divertida história, à la Stoppard, do fardo que é a arte, o oficio ingrato de ser um personagem literário; "Um outro sentido", a crítica de uma bizarra peça, impossível de ser encenada e "Pelo vale dos sonhos incessantes", o quase congelamento do instante em que um sujeito morre. Cito esses sete, como poderia ter escolhido outros tantos. E cito também o conjunto de cinco contos chamados "Efemeridade", cinco variantes de uma mesma história, cinco perspectivas de uma metamorfose, de uma cena banal, porém terrível. O livro inclui um prefácio muito bom, assinado por José Francisco Botelho. Cabe registrar que diz uma lenda que Botelho havia apostado contra o próprio Czekster que ele, Czekster, ganharia o prêmio açorianos de literatura na categoria contos deste 2018, como de fato aconteceu. Botelho, para coroar os feitos (ganhar a aposta e saber da premiação do amigo), emitiu um uivo ginsbergiano que atordoou todos presentes na cerimônia de premiação. Deve ter sido divertido estar lá naquele dia. Vale! 
Registro #1301 (contos #151) 
[início: 25/07/2018 - fim: 29/07/2018]
"Não há amanhã", Gustavo Melo Czekster, Porto Alegre: Editora Zouk, 1a. edição (2017), brochura 16x23 cm., 150 págs., ISBN: 978-85-8049-046-6

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

los perros duros no bailan

"Los perros duros no bailan" é uma legítima fábula moderna. Arturo Pérez-Reverte só dá voz e protagonismo a cães, uma centena deles, cada um com suas idiossincrasias e suas circunstâncias. Utilizar animais para fazer analogias entre o comportamento dos homens e as histórias vivenciadas por personagens caninos é mesmo uma fórmula antiquíssima, mas acho que posso imaginar um outro motivo para Pérez-Reverte tê-la escolhido. Nesse nosso cotidiano bizarro, em que hordas de censores advogam políticas ditas "corretas", que se espalham como um câncer em todas as atividades humanas, inclusive na literatura, na ficção, um livro onde o que é dito pelos cães o fosse mais convencionalmente dito por humanos teria muita chance de cair em algum "index" de livros a serem combatidos, a serem censurados, a serem eventualmente queimados em praça pública (chegaremos lá, os homo sapiens sapiens parecem ser tóxicos a si mesmos, como em uma doença auto imune). Mas vamos voltar a literatura. Em "Los perros duros no bailam" acompanhamos a jornada de Negro, um cão que durante muito tempo foi adestrado para participar de lutas, frequentemente mortais. Por acaso Negro chegou a aposentar-se das lutas, passou a viver livre nas ruas, mesmo tendo uma função noturna de vigia, com direito a coleira, vacinas e alimentação farta. Negro, como um velho boxeador, tem seus lapsos de memória, alguma lentidão no pensar, mas manteve o instinto assassino de sua linhagem. Dois cães seus amigos, Teo e Boris, desaparecem. Negro decide resgatá-los, o quê, após muitas reviravoltas,  implica em voltar aos ringues de combate entre cães, voltar a ser instrumento para o deleite de humanos torpes, que fazem apostas, perdem e ganham dinheiro com as lutas. A narrativa é repleta de clichês e frases feitas adaptadas ao mundo canino (o leitor ri, mas é uma fórmula fácil demais). É também povoada por personagens caninos planos, que representam apenas uma virtude ou vício, apenas uma característica ou falha de caráter (há os covardes, os fracos, os lúbricos, os dissimulados, os heroicos, os cúmplices, os filosóficos). Trata-se afinal de um livro que valoriza o comportamento moral de alguns cães, modelares de uma espécie que não conhece a hipocrisia. O livro também deve muito ao mundo do cinema. Há uma miríade de citações cinematográficas neles. O roteiro lembra obviamente "Spartacus", do Kubrick, mas há ecos de Casablanca, de neorealismo italiano, de Hitchcock, de westerns, sobretudo os spaghetti (Sergio Leone à frente, claro). Apesar de ser esquemático e de certa forma ser previsível, pois a jornada de Negro para resgatar seus amigos é uma jornada do herói clássica, o livro funciona. Pérez-Reverte já tinha demonstrado o quanto é bom observador do mundo canino em suas crônicas reunidas em 'Perros y hijos de perra", que já registrei aqui. Diversão garantida. Vale! 
Registro #1300 (romance #344) 
[início: 27/07/2018 - fim: 28/07/2018]
"Los perros duros no bailan", Arturo Pérez-Reverte, Cíudad Autônoma de Buenos Aires: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2018), brochura 13x21,5 cm., 168 págs., ISBN: 978-987-738-505-2

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

hedda gabler

No ano passado a editora Carambaia lançou reunidas, num belo projeto gráfico, quatro peças de Henrik Ibsen: "Espectros", "Um inimigo do povo", "Hedda Gabler" e "Solness, o construtor". As peças foram editadas em volumes separados, como se fossem os programas que as vezes são disponibilizados à plateia de um teatro. Acompanhadas de um volume extra, um curto posfácio assinado por Aimar Labaki, as quatro peças foram comercializadas juntas em uma caixa. As li ao longo do primeiro semestre deste ano. Pretendo agora fazer curtos registros separados de cada uma delas. Nunca vi uma montagem de "Hedda Gabler". Labaki nos ensina que já houve quatro montagens brasileiras da peça, a primeira em 1937 e a mais recente em 2006. Os eventos da peça ocorrem em dois dias. No primeiro ato o casal Gabler (Hedda e Jorgen) volta de uma longa viagem de núpcias e se instala em uma grande mansão, mas Jorgen ainda não tem uma posição financeira sólida, pois espera a nomeação para um cargo público em uma universidade. Hedda é uma mulher esnobe, afetada, de temperamento forte; Jorgen é um homem fraco, sonhador, endividado. No segundo ato, Brack, um juiz que é credor de Jorgen, assedia Hedda, e Lovborg, um antigo namorado dela, diz ter produzido um ensaio importante, mas que não ambiciona o cargo pretendido por seu marido. Jorgen, Brack e Lovborg saem para festejar, enquanto Hedda fica conversando com uma amiga, Thea, que é casada mas está enamorada de Lovborg e trabalha como sua secretária. No terceiro ato acompanhamos retrospectivamente descrições do tumultuado festejo noturno do qual participaram Jorgen, Brack e Lovborg, no qual esse último deu-se conta de ter perdido seu manuscrito. Hedda, sabe-se lá por qual razão (tédio, cupidez, vingança, estratégia, pura maldade), induz Lovborg a cometer suicídio e queima seu manuscrito. No quarto ato acompanhamos o desfecho da trama. Após o anúncio da morte de Lovborg, Hedda passa a ser chantageada por Brack, que sabe ser dela a arma utilizada por Lovborg para matar-se. Jorgen e Thea tentam reescrever o importante manuscrito, como homenagem ao amigo morto. Hedda, em transe, sabendo-se pela primeira vez incapaz de controlar seu destino e fazer valer suas vontades, comete também o suicídio. Deve ser uma experiência poderosa ver a peça encenada. Ibsen nos faz refletir sobre o alcance de nossos desejos, sobre a psique de homens e mulheres, sobre as relações de poder às quais estamos todos enredados. Haverá mais Ibsen por aqui. Vale! 
Registro #1299 (drama #14) 
[início: 04/03/2018 - fim: 06/03/2018]
"Hedda Gabler: Peça em quatro atos, 1890", Henrik Ibsen, tradução de Leonardo Pinto Silva, São Paulo: Editora Carambaia, 1a. edição (2017), brochura 17x24 cm., 116 págs., ISBN: 978-85-69002-33-8 [edição original: Hedda Gabler (London: William Heinemann) e (Copenhagen / Christiania: Gyldendalske Boghandels Forlag) 1890]

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

eva

"Eva" é o segundo volume de uma série dedicada a guerra civil espanhola. Arturo Pérez-Reverte fala panoramicamente dos anos 1930, os anos espanhóis de ascensão do franquismo. Essa série foi iniciada com o bom "Falcó", que já registrei aqui. Os sucessos de "Eva" correspondem ao oitavo mês da guerra civil, logo após a sangrenta Batalha de Jarama, no início de 1937. Mas a disputa narrada no livro não se dá em território espanhol, mas sim num enclave neutro, na cidade de Tánger, no Marrocos, sempre tão misteriosa, exótica, cara aos filmes em preto e branco que tinham a segunda grande guerra como tema. Falcó é enviado para Tánger, que naquela época tinha um estatuto especial, sendo administrada de forma conjunta por belgas, espanhóis, italianos, americanos, franceses, holandeses, ingleses, russos e portugueses (ou seja, erra uma terra de todos e de ninguém). Falcó precisa administrar uma questão delicada: impedir que um navio que leva um carregamento de ouro, originalmente parte do patrimônio espanhol que foi enviado para ser eufemisticamente guardado na União Soviética, aliada dos republicanos (que é o grupo que combate as forças de Franco na guerra civil). Os falangistas (apoiadores de Franco) obviamente não querem que o dinheiro cai nas mãos dos russos. Falcó reencontra sua Nêmesis, Eva, a espiã russa que atuava em território espanhol e que ele mesmo havia salvo das mãos dos falangistas, a contragosto de seu chefe direto, o Almirante. Como em todo bom folhetim, os sucessos se sucedem em ritmo acelerado. A narrativa segue a receita de sucesso de livros de aventura  e espionagem: um prólogo à la 007 (uma perseguição pelas ruas de Lisboa, uma morte violenta, a descoberta de uma pista, os planos de intervenção, as ordens que devem ser cumpridas); uma transição sóbria onde se descreve todo o excêntrico cenário e os personagens que serão coadjuvantes na trama, sobretudo dois capitães de navio e suas tripulações; e por fim o crescendo de diálogos e  sucessos que levarão o livro a seu desfecho. Não se pode esperar nada muito cerebral em livros deste tipo, trata-se de entretenimento ligeiro, mas Pérez-Reverte domina esta técnica como ninguém, seus livros garantem diversão pura (lê-se esse livro em um final de semana vagabundo, ao sol, caso o sujeito queira). Sabemos que nunca há só inocentes e vilões no mundo, só os muito ingênuos acreditam nos bons motivos e sobretudo nos métodos de qualquer tipo de revolução. Livro estival, alegre, leve, mas que leva o leitor a pensar (já me contradigo). Afinal qualquer pessoa curiosa sobre a guerra civil espanhola ganha algo com ele. Claro, Pérez-Reverte oferece também ao leitor mais exigente um pouco de verossimilhança, precisão histórica, alguma digressão sobre a clivagem radical experimentada na sociedade espanhola daquela época, dividida entre duas utopias/distopias inconciliáveis e terríveis. Os diálogos são repletos de ironia. Eva e Falcó voltam a ficar em lados opostos no jogo de espionagem, mas têm lá seu jeito de se atraírem e se respeitarem. Certamente haverá um terceiro volume nesta série, mas eu preferiria mesmo é que Pérez-Reverte lançasse o oitavo volume da série dedicada as aventuras do Capitão Alatriste. Isso sim. E vamos em frente. Vale! 
Registro #1298 (romance #343) 
[início: 11/03/2018 - fim: 13/03/2018]
"Eva", Arturo Pérez-Reverte, Barcelona: Alfaguara / Penguin Random House Grupo Editorial, 1a. edição (2017), capa-dura 16x24,5 cm., 394 págs., ISBN: 978-84-204-1957-8