sábado, 28 de maio de 2011

ficção de polpa: crime!

"Ficção de Polpa" é um projeto bastante inventivo, uma curiosa parceria entre designers, ilustradores, tradutores e escritores (claro). O trabalho de organização dos contos e preparação dos livros é de Samir Machado (acredito que ele seja também o idealizador do projeto como um todo). Este é o quarto volume publicado (pela Não Editora de Porto Alegre) e trata de histórias de crime (não li os demais, mas vi que eles reunem uns cinquenta contos de horror, contos fantásticos e contos de ficção científica). Este volume reune sete histórias, seis delas originais e uma já antiga, traduzida, de um escritor inglês contemporâneo de Arthur Conan Doyle chamado Ernest Bramah (não gostei nem do personagem - um detetive cego - nem da história, paciência). Os seis contos originais são assinados por Carlos André Moreira, Carlos Orsi, Carol Bensimon, Octávio Aragão, Rafael Bán Jacobsen e Yves Robert. Carlos André Moreira conta a história mais longa. Ele inventa um detetive/investigador porto-alegrense de origem polonesa, Roszynski, que se envolve em um movimentado caso de roubo e morte. Ele inclui vários dos elementos típicos das histórias de detetive: manias, bons personagens coadjuvantes, passado algo cifrado do personagem principal, ambientação ancorada na paisagem marcante de uma cidade, no caso, Porto Alegre. É a melhor história do livro e funciona realmente bem, mas ele explica demais a trama e os sucessos do caso, como se o leitor não fosse capaz de imaginar nada por si só. De qualquer forma Roszynski é o tipo de personagem que dependendo do tino e paciência do autor pode ser bem explorado literariamente, coisa de se anotar. O conto de Carlos Orsi emula o tradicional problema de crime em uma sala fechada, adaptando-o para o formato de um destes reality shows bobos que infestam a televisão. Não é pretensioso mas também não entusiasma. Em seu conto Carol Bensimon põe várias vozes a comentar um crime na cidade francesa de Étretat (quem leu as histórias de Maurice Leblanc e seu personagem Arsène Lupin certamente vai se lembrar da agulha de Étretat, cenário da história de Carol). O conto é bem escrito, mas a história não funciona muito bem. Octávio Aragão faz uma paródia bem humorada das histórias de Sherlock Holmes, usando também os personagens do Drácula de Bram Stoker. Médio. Rafael Jacobsen retoma as histórias de açougueiros que são assassinos seriais, colocando três vozes para narrar crimes e investigações, supreendendo mesmo no final. Interessante. Por fim a história de Yves Robert, mais bem um conto psicológico bem humorado que outra coisa, brinca com os poderes mágicos que pessoas não treinadas em estatística ou lógica associam aos números. A trama é boba, mas a graça do conto está no registro do português de Portugal dele (ele é português de nascimento afinal de contas). O cuidado da edição merece mais um par de linhas. O livro é montado com o formato das Pulp magazines da primeira metade do século passado, aqueles livretos de baixo custo impressos em papel barato, também produzidos no Brasil (meu pai e meus tios mantinham pilhas deles em uma edícula, lembro-me bem). O tamanho, a paginação em duas colunas, a arte marcante da capa, as cores e as várias ilustrações com propagandas antigas dispersas pelo livro enfatizam a proposta retrô. Belo projeto. Um dia destes procuro os outros livros. Bueno. Leitura honesta para estes dias de inverno, mas outros temas mais robustos me esperam. A ver. [início 20/05/2011 - fim 21/05/2011]
"Ficção de polpa: crime!", Carlos André Moreira, Carlos Orsi, Carol Bensimon, Octávio Aragão, Rafael Bán Jacobsen, Yves Robert, Ernest Bramah, Samir Machado de Machado (organizador), Porto Alegre: Não editora, 1a. edição (2011), brochura 12x18 cm, 160 págs. ISBN: 978-85-61249-18-2

quinta-feira, 26 de maio de 2011

impostura

Esta curta novela de Enrique Vila-Matas é um tanto diferente das outras coisas que li dele. Trata-se de uma narrativa quase linear, que acompanhamos com interesse, mas sem as surpresas advindas daqueles malabarismos mentais que encontramos, por exemplo, no "La asesina ilustrada", "Una casa para siempre" ou "Paris no se acaba nunca". "Impostura" é de 1984, publicado imediatamente antes do "História abreviada da literatura portátil", outro de seus livros bem inventivos e que lhe grangeou respeito e admiração. Aparentemente a história é baseada em um caso real acontecido na Itália, ainda no inìcio do século passado. Na versão de Vila-Matas um sujeito desmemoriado, preso em um manicômio barcelonês, consegue se passar por um escritor desaparecido, sendo inclusive reconhecido pela sua, até então, viúva. Ele teria sido morto nas estepes russas, membro que era da fascista divisão azul do ditador Franco. Posteriormente uma outra mulher o identifica como um tipógrafo trambiqueiro, pai de seu filho. O tema do livro é portanto a questão do duplo, a busca pela verdadeira identidade pessoal de cada um de nós (que podemos sim nos tornar escravos das leituras que os outros fazem de nós). Além do sujeito desmemoriado há dois personagens curiosos no livro, o diretor do manicômio e seu secretário Barnaola, que funcionam como um divertido par Don Quixote e Sancho Panza. O poder do intelecto, exposto na capacidade do desmoriado de aprender completamente a vida do escritor dado por morto, chama a atenção. Acredito que este livro é como um Coronel Chabert às avessas, já que é o desmemoriado que domina as ações dos demais, o contrário do que acontece com o livro de Balzac. A loucura, como algo postiço e quase contagioso, também é discutida no livro. Divertido e realmente fácil de ler (isto é um tanto inusual na obra que conheço dele, repito). Antes de ler as coisas mais recentes de Vila-Matas que tenho nos meus guardados pretendo enfrentar as duas novelas anteriores à este "Impostura": "Al sur de los párpados" e "Nunca voy al cine". Vamos a ver. [início 19/05/2011 - fim 21/05/2011]
"Impostura", Enrique Vila-Matas, Barcelona: editorial Anagrama (narrativas hispánicas 7), 3a. edição (2003), brochura 14x22 cm, 118 págs. ISBN: 84-339-1707-2 [edição original: Anagrama (Barcelona) 1984]

terça-feira, 24 de maio de 2011

fernando pessoa

Comprei este livro logo após assistir a um bate papo sobre literatura nas histórias em quadrinhos, durante o FestiPoa, a divertida festa literária porto-alegrense, ainda no início deste mês. A conversa foi boa. Três sujeitos que conhecem bem o assunto (Claudio Levitan, Carlos Ferreira e Eloar Guazzelli) falaram sobre o "estado da arte" das histórias em quadrinhos brasileiros. Aprendi um bocado. Fiquei feliz em ouvir que para eles (ao menos para o Guazzelli) toda a cadeia produtiva das histórias em quadrinhos no Brasil atingiu um grau de profissionalismo e inovação realmente notável. Segundo ele é algo comparável ao que aconteceu em meados dos anos 1980 com a cadeia produtiva da literatura infanto-juvenil no Brasil, sendo que hoje em dia esta literatura é respeitada e reconhecida mundialmente. E o livro? Vamos a ver. "Fernado Pessoa e outros pessoas" é um belo volume. Claro, os poemas, os textos originais, são do Fernando Pessoa. Davi Fazzolari produziu um roteiro e Guazzelli as ilustrações. Eles escolheram para trabalhar três dos poemas mais clássicos e conhecidos de cada um dos heterônimos de Pessoa: "A Tabacaria" (de Álvaro de Campos); "O Dessasossego" (de Bernardo Soares) e "O Pastor de Almas" (de Alberto Caieiro). O tratamento do texto e a composição das ilustrações (da própria história em quadrinhos) são bem distintas entre si. Difícil dizer qual é a mais impactante, são mesmo boas. Entre as três histórias, os três poemas completos, Guazzelli incluiu o que ele chama de "Interlúdios lisboetas", pares de páginas ilustradas mais livremente (mais experimentalmente talvez) onde há curtas passagens de outros poemas de Pessoa (os quatro interlúdios usam coisas do Álvaro de Campos, sempre o preferido das gentes, é mesmo fato). Estou seguro que aqueles que se aproximarem de Fernando Pessoa atráves deste livro, principalmente os mais jovens, público alvo desta edição, logo procurarão outros poemas, outros livros de Pessoa. E eu, que vontade de voltar a Lisboa, cousa boa, de caminhar pela cidade, saudade. [início 04/05/2011 - fim 20/05/2011]
"Fernando Pessoa (e outros pessoas)", Guazzelli, roteiro de Davi Fazzolari, São Paulo: editora Saraiva, 1a. edição (2011), brochura 18x27 cm, 80 págs. ISBN 978-85-02-10566-9

domingo, 22 de maio de 2011

marcel proust's search for lost time

Em meados dos anos 1980, quando li os romances do ciclo "Em busca do tempo perdido" pela primeira vez, usei como apoio um par de livros: "As idéias de Proust", do Roger Shattuck e "As intermitências do coração", do José Maria Cançado. Eles ajudaram um bocado. Ainda no final do ano passado, quando resolvi reler todo o ciclo, procurei algo mais robusto para ajudar-me e eis que achei dois bons blogs de um mesmo sujeito (Patrick Alexander), que há anos se dedica a destrinchar os livros do Proust (os sites são http://www.whoswhoinproust.com/ e http://www.proustguide.com/ProustSITE/AboutProust.htm). Ele transformou recentemente o material dos blogs em um livro que encontrei e li com enorme prazer. "Marcel Proust's Search for Lost Time" é um grande livro. Claro, um sujeito que nunca leu nada do Proust vai perder um tanto do prazer da leitura ao receber de uma vez só todas as explicações para as passagens mais enigmáticas e cifradas que Proust deixa pelo caminho, mas a idéia deste "reader's guide" é exatamente solucionar os problemas e dúvidas. O livro é organizado em três seções distintas, que o leitor pode ler separadamente sem o menor prejuízo. A última fala do autor, sua família, suas influências e o contexto histórico e até a geografia no qual os romances do ciclo se inserem. A segunda parte do livro é um catálogo detalhado das biografias de cinquenta dos principais personagens dos livros (Proust cita e usa pelo menos uns quatrocentos personagens e 1.400.000 palavras nos livros, é sempre bom lembrar). Um leitor que prefira apenas entender de quem se está falando em cada parte dos livros poderia ler somente esta parte (mesmo assim algumas das boas surpresas dos livros restam explicitadas, não há muito o que fazer quanto a isto). A primeira parte do livro trata do guia de leitura propriamente dito, onde se descreve o enredo dos sete livros do ciclo e se explicam as passagens mais nebulosas. Várias destas passagens se repetem, mas isto se deve a forma como o livro foi organizado e não prejudicam de fato o ritmo de leitura, pois não necessariamente um sujeito precisa lê-lo de capa a capa. Por fim o livro inclui uma generosa bibliografia de apoio e links para boas páginas dedicadas aos livros de Proust. As ilustrações com os mapas de Paris e das árvores genealógicas (da família do narrador, da família de Proust, dos Guermantes) são fundamentais para se entender melhor tudo o que acontece na trama. Eu diria que o ideal seria que o leitor leia o resumo de cada capítulo imediatamente ao final da leitura de cada volume do ciclo. Com isto eventuais dúvidas ou mal entendidos são rapidamente dirimidos. O catálogo de personagens pode ser lido sempre que não se reconhecer o porque de alguma citação no texto. A parte contextual poderia ser deixada para os dias de uma releitura ou cousa que valha. Como os livros deste ciclo vão ser reeditados no ano que vem acredito que uma versão brasileira deste livro de Patrick Alexander faria muito sucesso, mas vá se saber quais são os planos dos editores brasileiros nestes dias bicudos. Paciência. [início 09/05/2011 - fim 19/05/2011]
"Marcel Proust's Search for Lost Time: A reader's guide to The Remembrance of Things Past", Patrick Alexander, New York: Vintage Books (Random House), 1a. edição (2009), brochura 13,5x20,5 cm, 385 págs. ISBN: 978-0-307-47232-8 [edição original: Marcel Proust's search for lost time: a reader's guide, BlookSurge Llc (Amazon) 2007]

quarta-feira, 18 de maio de 2011

fabular

Dez jovens ilustradores e/ou designers resolveram mostrar as garras, não esperaram um lance de sorte ou um convite do acaso e editaram um livro eles mesmos. O resultado é "Fabular", lançado na última Feira do Livro de Santa Maria (bueno, perdi o dia do lançamento por um dos compromissos da vida e não pude cumprimentá-los pessoalmente, mas posso fazê-lo aqui: parabéns!) Cada um deles usou quatro páginas para contar sua história ilustrada, todas elas gravitando em torno da relação dos homens com a natureza. Nas palavras deles a idéia do projeto é oferecer aos leitores um passeio por um universo inventado, onde se fundem belezas naturais e imaginação. As técnicas de cada um são distintas: da aquarela e do grafite a tinta acrílica e ao gouache, da colagem e o lápis de cor as ferramentas digitais. Claro, é um espaço pequeno para se desenvolver uma idéia, já que o formato engessa um tanto a potência de cada um. Entretanto o leitor é apresentado aos distintos traços e técnicas e pode sim usar sua imaginação para expandir as histórias (não é assim que fazemos quando contamos histórias para os outros?) Tirando a limitação intrínsica de espaço no projeto não há muitos reparos a se fazer. É um bom livro. No dia do lançamento o livro não tinha ainda um ISBN. Soube depois que eles estão etiquetando os livros com o ISBN e dando asas a eles. Assim eles podem alçar vôos mais altos e eventualmente encontrar as grandes livrarias e as grandes redes de distribuição de livros (Estou seguro que "Fabular" não se intimidará na companhia dos bons livros infanto-juvenis editados no Brasil). Digo isto pois talvez seja este o setor da produção literária brasileira onde notadamente se produz coisas inovadoras e bem acabadas, com profissionalismo e qualidade (mas em um outro post, quando comentar um livro ilustrado pelo Eloar Guazzelli que acabei de ler, volto a este tema). Podemos imaginar o que seria se cada um dos autores (Bárbara Furian Rolim, Letícia Zancan, Marcus Vinicius Sarturi, Orlando Fonseca Jr., Ricardo Winter Bess, Filipe Furian Rolim, Marcus de Moura, Mathias Townsend, Rafael Sarmento, Thiago Moura) tivesse um livro todo só para si. Cabe dizer por fim que eles produziram um blog onde contam um tanto sobre o projeto. Bom divertimento. [início - fim 16/05/2011]
"Fabular: Histórias pela natureza", Bárbara Furian Rolim, Letícia Zancan, Marcus Vinicius Sarturi, Orlando Fonseca Jr., Ricardo Winter Bess, Filipe Furian Rolim, Marcus de Moura, Mathias Townsend, Rafael Sarmento, Thiago Moura, Santa Maria: editora Manuzio, 1a. edição (2010), brochura 20x20 cm, 49 págs. ISBN 978-85-6464-200-3

segunda-feira, 16 de maio de 2011

los enamoramientos

Não há como se aproximar da prosa de Javier Marías e não sofrer um assombro. Dentre aqueles que conheço ele é o escritor vivo que melhor descreve ficcionalmente como operam e agem os homens. Ao mesmo tempo em "Los enamoramientos" ele faz um personagem dizer: '(...) o que ocorre em um romance é o que menos importa, pois nos esquecemos de quase tudo quando terminamos um livro. O interessante são as possiblidades e as idéias que os romances nos inoculam, e que eventualmente nos mostram como é o mundo - e nos mostram com maior nitidez que o fazem os casos reais que vivemos e observamos. Estas possibilidades e idéias é que nos fazem alcançar e valorizar aquilo que realmente é importante e fundamental na vida.' Em seu romance anterior, o monumental "Seu rosto amanhã", Marías descreve aspectos da hipocrisia, manipulação, corrupção e formas de operação do aparelho de repressão institucional, parte considerável da maquinaria do estado moderno, ao qual todos estamos submetidos quase sempre sem consciência alguma. Já "Los enamoramientos" é uma versão privada daquele raciocínio, ou seja, uma espécie de estudo de caso, onde ele descreve como também na vida privada dos homens são a mentira, a inconstância e o interesse objetivo de cada um que dominam todas as relações. Os enamoramentos descritos no livro (enamoramentos entre a narradora e tudo aquilo que ela vê ou sente; enamoramentos entre os personagens principais: Miguel e sua mulher Luisa, Luisa e Javier, melhor amigo de Miguel, Javier e Maria, a narradora; enamoramentos entre cada um de nós e os personagens que representamos) não são planos, não são rasos. Antes são complexos e sutis, reveladores dos câmbios constantes das relações de qualquer natureza entre as pessoas. Os diálogos de Marías ocupam um tempo interno, que refletem as reflexões de cada personagem, que são em geral muito mais longos que a passagem de tempo real. Saber a verdade última das coisas nunca é possível. Marías usa em suas argumentações idéias de dois textos ("Coronel Chabert", de Balzac, e "Os tres mosqueteiros", de Alexandre Dumas), além de explorar as possiblidades de uma passagem do Macbeth, de Shakespeare: "She should have died hereafter; There would have been a time for such a word." Os textos de Balzac e Dumas servem para ilustrar e exemplificar aquilo que acontece na trama inventada por ele, mas também para que os leitores (jovens, no caso de Dumas; já maduros, no caso de Balzac), comparem a memória destes livros, ainda que involuntária, com as reflexões de Marías. Já através de Shakespeare ele discute os possíveis planos temporais em que pode ser dividido um relacionamento (pessoal ou amoroso). O poder do cinema na imaginação de Marías nunca é trivial. Já sua preocupação com os usos e a precisão da linguagem, sua tentativa de apurar a comunicação entre os indivíduos, é genuína e muito bem utilizada na trama. Claro, a ironia, esta camada de verniz mental que utilizamos para nos poupar da mediocridade geral nestes tempos que correm, preenche todo o livro. Os personagens secundários também fazem a festa do leitor. Fiquei feliz em reecontrar neste livro Ruibérriz de Torres, aquele sujeito que no conto "Mala Índole" vê-se enredado em um apuro de vida e morte no interior do México. E também em ler, ainda que brevemente, algumas das bravatas do professor Rico. A passagem em que Maria Dolz ouve trechos da conversa entre Diáz-Varela e Ruibérriz lembra um tanto aquela em que Ranz (no "Corazón tan blanco") conta para sua nora detalhes de sua vida que furtou de contar ao filho (conversa que este filho acaba ouvindo por acaso). O livro é separado em quatro capítulos. Marías usa a estrutura básica da narrativa dramática (introdução, desenvolvimento, clímax e solução), mas faz saber ao leitor que não há solução possível (ou solução possível na vida que cada um de nós vive) que seja mais ou menos verdadeira que qualquer outra. Acrescento um contraponto mais entre "Seu rosto amanhã" e "Los enamoramientos". No primeiro o sofrimento causado à terceiros por nossos atos e palavras (quase sempre palavras, as mais efetivamente cruéis e destruidoras) nunca poderá ser cancelado ou aliviado quando conversamos sobre ele (como se faz na análise por exemplo). Já neste último romance, do sofrimento ou do mal causado à terceiros, por aquilo que sabemos, nenhuma culpa ou punição poderá advir, pois não há testemunhas de nossos pensamentos além de nós mesmos. Bueno, nenhum comentário substitui o prazer em ler "Los enamoramientos". Sensacional mesmo este livro. [início 12/05/2011 - fim 15/05/2011]
"Los enamoramientos", Javier Marías, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones) , 1a. edição (2011), brochura 14x23 cm, 401 págs. ISBN: 978-84-204-0713-5 [esta foi oficialmente a 500a. resenha neste blog]

sábado, 14 de maio de 2011

las alas de la esfinge

Publicado originalmente em 2006, "Las alas de la esfinge" é o décimo-primeiro romance de Andrea Camilleri envolvendo as histórias de Salvo Montalbano e segue imediatamente o que acontece em "Ardores de agosto". As relações entre Montalbano e Lívia continuam estremecidas, só o trabalho duro e as experiências gastronômicas animam o comissário. A trama da história segue um dos procedimentos clássicos das histórias de detetives. Dois casos aparentemente distintos vão se entrelaçando até serem resolvidos conjuntamente pelo engenho do investigador. Uma garota aparece morta. Ela tem a tatuagem de uma mariposa em sua omoplata. Há indícios que ela é do leste europeu e que tenha emigrado à Itália para trabalhar como acompanhante e/ou prostituta. O outro caso é mais banal. Um sujeito forja seu próprio sequestro e foge com a amante (e algum dinheiro) para as praias ensolaradas de Cuba. Montalbano se concentra no primeiro caso e percebe logo que há uma parceria terrível entre a máfia russa na Itália e membros de uma espécie de ONG ligada à igreja católica. Os primeiros trazem as garotas, enquanto os últimos criam atividades de fachada para legalizá-las no país. A intuição de Montalbano vê a motivação e o caminho dos crimes desde o primeiro momento da trama, mas o assunto é delicado e envolve pessoas bem relacionadas. As provas têm de ser contundentes. Sua amiga Ingrid aparece rapidamente e tem um papel curioso na trama. Camilleri utiliza novamente o artifício de um jogo teatral entre Montalbano (com a ajuda de seus comandados) e os suspeitos. Funciona bem afinal de contas. Ele também conversa muito com seu duplo, sua imaginação. Este artifício também tem sido utilizado nos últimos romances desta série. Montalbano conta com a ajuda de amigos jornalistas (outra forma recorrente de Camilleri acelerar o desvelo de suas tramas). O esforço em desvendar simultaneamente os dois crimes acaba fazendo com que Montalbano se desentenda uma vez mais com Lívia. A vida é dura afinal de contas. [início 03/05/2011 - fim 13/05/2011]
"Las alas de la esfinge", Andrea Camilleri, tradução de María Antonia Menini Pagès, Barcelona: ediciones Salamandra, 1a. edição (2009), brochura 14x22 cm, 219 págs. ISBN: 978-84-9838-227-3 [edição original: Le ali della sfinge (Sellerio editore) Palermo 2006]

quinta-feira, 12 de maio de 2011

la puerta del sol

Neste pequeno livro Isabel Ortigas descreve uns bons cinco séculos da evolução de uma das praças de Madrid. É ligeiro, claro, mas é bem escrito e repleto de informações. La Puerta del Sol não é exatamente a praça mais imponente ou monumental de Madrid, mas é aquela que define o marco zero dela e onde alguns dos eventos mais significativos da história da Espanha aconteceram, como os sucessos de 02 e 03 de maio de 1808, a promulgação da constituição de 1812 ou a da república. Como em um palimpsesto a autora nos ensina a descobrir algumas destas camadas de história e de vida presentes na Puerta, desde quando era apenas uma das portas de entrada da cidade murada (a porta voltada ao oriente, a porta do sol) até os dias das obras titânicas de integração de trens rápidos e metrô. As obras escultórias, as fontes d'água, as placas comemorativas, os cartazes de propaganda quase centenários, tudo ambienta inequivocamente aquele sítio, aquele lugar. Tenho dezenas destes pequenos livros da Ediciones de la Librerìa. Cada um deles conta a sua maneira um tanto da cidade de Madrid. É diferente do que encontramos em um livro de viagens convencional ou um guia, que resumem as informações a um mínimo essencial. Apesar de curto aprendemos um bocado com ele. Aprendemos o suficiente para percorrermos com familiaridade aquele espaço concorrido, permanentemente ocupado, seja inverno ou verão. Aprendemos a reconhecer que talvez seja sua constante renovação o principal fator de encantamento, pois as mudanças não são destruidoras, mas antes complementares, quase barrocas. Lembro-me de uma das vezes em que estive ali, na noite em que o bom amigo Manolo Vázquez, chairman de uma conferência de magnetismo, nos recebeu no antigo edifício dos correios, atualmente sede da presidência da Comunidade de Madrid. Esperanza Aguirre não compareceu, claro, mas algum preposto dela fez as honras e agradeceu protocolarmente nossa presença ali. Nós todos, físicos e engenheiros de materiais, não estávamos interessados em política ou história, apenas queríamos desfrutar a beleza do lugar, o bom vinho, a música e a companhia agradável uns dos outros. Quando terminou a recepção ficamos ainda um tempo andando pelas galerias recém restauradas, depois convidei um outro grande amigo, Frank Missell, para tomar una copa em um dos bares das redondezas. Saímos do edifício e encontramos a Puerta del Sol iluminada, senhorial, acolhedora. Nada poderia nos incomodar ou aborrecer naquela hora. Foi mesmo um dia feliz. [início 16/04/2011 - fim 12/05/2011]
"La Puerta del Sol", Maria Isabel Gea Ortigas, Madrid: Ediciones La Librería, 1a. edição (2009), brochura 10x14,5 cm, 63 págs. ISBN: 978-84-9873-043-2

terça-feira, 10 de maio de 2011

o

Comprei este "O" sem ao menos folheá-lo (claro, a assinatura do Cabrera Infante defende o livro automaticamente). Acontece que por aqueles dias de março eu estava a ler "Ó" do Nuno Ramos e as mágicas afinidades que existem entre os livros me convenceram que era hora de retomar algo deste sujeito (lembro-me vividamente de Mea Cuba, Três Tigres Tristes e Holy smoke). Foi Don Gus, senhor dos sebos, quem encontrou este livro e vendeu-me, acrescentando uma risada generosa, daquelas que nos fazem ganhar o dia. Bueno. "O" reúne onze ensaios bem humorados e uma cronologia ainda mais divertida (que deve ter sido acrescentada à edição original de 1978, já que esta edição da editora da Universidade de Alcalá de Henares é comemorativa da entrega do prêmio Cervantes a Cabrera Infante em 1997). Os ensaios são variados, mas tratam sobretudo de cinema, de literatura e de cultura pop. O texto contando seu cotidiano londrino e seu amor a um gato é muito bom (mas eu sou suspeito para falar, senhor de gatos que também sou). Correto e nada cabotino é o relato de sua primeira prisão em meados dos anos 1950, ainda em Cuba, por conta de um texto que o governo de plantão à época achou ofensivo (a desgraça dos cubanos é sempre ter alguém vigiando e censurando o que todos pensam, escrevem e falam, pobre país). Há ensaios mais longos onde Cabrera Infante discute poesia popular, onomástica, Limericks e alta literatura. Outros, mais curtos, apenas registram a agenda cultural, fatos políticos, cinema e artes plásticas da Londres suburbana dos 1960 e 1970. Reconhecidamente um grande frasista e mestre no jogo de palavras, Cabrera Infante oferece neste pequeno livro uma boa mostra de seus talentos. [início 01/05/2011 - fim 06/05/2011]
"O", Guilhermo Cabrera Infante, Alcalá de Henares: Ediciones de la Universidad (Fondo de Cultura Económica - Biblioteca Premios Cervantes), 1a. edição (1998), capa-dura 14,5x22 cm, 203 págs. ISBN: 84-375-0448-1 [edição original: Seix Barral, 1975]

domingo, 8 de maio de 2011

el sol de breda

Quem teve a fortuna de visitar alguma vez o Museo Nacional del Prado, em Madrid, já foi feliz. Um sujeito pode passar dias a fio imerso nas delícias intelectuais e sensórias que o Prado proporciona, sem nunca se aborrecer. Vagando pelos grandes salões do museu eventualmente encontramos algo que nos chama especialmente a atenção e, a despeito das outras maravilhas, permanecemos um tempo maior desfrutando este achado. Talvez tenha sido isto que fez Arturo Pérez-Reverte ao inventar de colocar um personagem seu (o industrioso capitão Alatriste) em um quadro de Diego Velázquez, o momumental "La rendição de Breda", também conhecido como "Las lanzas". É um quadro político, daqueles feitos de encomenda para louvar um grande feito espanhol, no caso, a rendição da estratégica cidade fortaleza de Breda, nas Flandres, durante as guerras de secessão dos países baixos, no início do século XVII. Cabe dizer que vitórias deste tipo foram raras, na desastrada e custosa tentativa espanhola de manter aquelas possessões. Em "El sol de Breda" Pérez-Reverte faz com que Alatriste e o jovem aprendiz Iñigo Balboa, o narrador dos feitos de seu capitão, participem ativamente das batalhas desta guerra. Posteriormente, quando Iñigo já está de volta a Madrid, auxilia o pintor Diego Velázquez na composição do quadro (onde se vê em primeiro plano o comandante vitorioso, o genovês Ambrogio Spinola, a serviço dos espanhóis, e o comandante derrotado, Justino (Justijn) de Nassau). O livro é bastante movimentado. Pérez-Reverte descreve várias escaramuças e duelos violentos ao longo do livro. A vida nos "Tercios de España" (poderosa unidade militar de infantaria) era particularmente bruta. Alatriste é um personagem calado, que age por instinto e tem um código de conduta estrito. Faz-se respeitar tanto entre seus iguais, soldados à pé, quanto entre os nobres que decidem os destinos da guerra. A realidade histórica das guerras de secessão das Fladres é muito mais complexa do que o abordado no livro, claro, mas se trata mesmo de um livro ligeiro, de entretenimento. Além de Velázquez, Pérez-Reverte inclui entre os amigos de seu capitão dramaturgos como Calderón de la Barca, Francisco de Quevedo e Lope de Vega. Esta edição da Alfaguara inclui boas ilustrações ao longo do texto (e uma trucagem, pois a ilustração da capa espelha o quadro original de Velázquez, mas este é um detalhe bobo). Enfim, "El sol de Breda" é um romance honesto e que prende o leitor, sem aborrecê-lo, por um bom par de horas. Vale. [início 28/04/2011 - fim 30/04/2011]
"El sol de Breda", Arturo Pérez-Reverte, Madrid: Alfaguara (Grupo Santillana de ediciones) , 5a. edição (1999), brochura 17,5x24 cm, 261 págs. ISBN: 84-204-8312-5 [edição original: Alfaguara, 1998]

sexta-feira, 6 de maio de 2011

o caminho de guermantes

Nestes últimos dias, imerso na releitura deste livro, fiquei a me perguntar se haveria ainda algo em mim daquele rapaz de vinte e poucos anos que o leu pela primeira vez. As metamorfoses pelas quais passei teriam obliterado completamente o jovem Guina? Difícil saber. Publicado originalmente em duas partes, em 1919 e 1922, ¨O caminho de Guermantes¨ é o terceiro dos volumes do ciclo "Em busca do tempo perdido". Este volume é composto de duas partes simétricas e, em extensão, similares. Como em uma peça musical - uma sinfonia por exemplo - Proust expõe primeiramente os temas com que vai trabalhar, depois os concentra e os desenvolve em uma cena longa (no caso deste livro, em recepções mundanas, primeiro na casa da marquesa de Villeparisis, depois no salão da duquesa de Guermantes) e por fim retoma os temas em breves, mas intensas, codas de encerramento. Na primeira destas duas partes encontramos o narrador e sua família como locatários do duque e da duquesa de Guermantes, Oriane, por quem ele se apaixona (como já havia se apaixonado por Gilberte, pelas moças em flor de Balbec e pela Sra. Swann). Ele vai a ópera e faz uma apreciação estética das qualidades vocais e dramáticas da atriz Berma bastante distinta da que fizera anteriormente. Depois ele visita seu amigo Saint-Loup em sua guarnição militar (Doncières) e logo volta a Paris (onde continua assediando a duquesa) e almoça com Robert e sua amante (Raquel, que o leitor já conheceu em outra circunstância). É na longa cena seguinte que o narrador visita o salão da marquesa de Villeparisis e tudo o que havia sido discutido antes (a vida em sociedade, a aparência enganadora das pessoas, a história e a genealogia da França, a moral dúbia dos homens, as implicações e desdobramentos do caso Dreyfus, as relações profissionais e pessoais, as relações de classe entre os franceses) é refletido em diálogos impressionantes, vívidos. No dia seguinte duas surpresas quebram o ritmo do livro (e elas irão modificar a forma de ver o mundo do narrador). Primeiro seu breve encontro com o barão de Charlus logo após sairem do salão da marquesa e depois o passeio com a avó pelos Campos Elíseos (quando ela tem uma apoplexia). Na segunda parte Proust retoma os mesmos temas e argumentos da primeira (e faz seus personagens usarem a retórica quase da mesma forma) mas agora seu narrador como que amadureceu. Os primeiros movimentos desta parte: a morte da avó, o luto e a solidão do narrador, os encontros amorosos com Albertine, uma outra visita ao salão da marquesa, os preparativos para um encontro amoroso com a Sra. de Stermaria e o jantar noturno no Bois de Boulogne com Saint-Loup e seus amigos, preparam ao leitor para a maravilha que é a descrição dos sucessos do jantar na casa da duquesa de Guermantes (onde o narrador - para seu espanto - é o convidado de honra). Tudo o que ele vê (e Proust faz com que seja o leitor que experiencie tudo aquilo com se fosse o leitor aquele narrador) entra em uma espécie de máquina de análise. Apesar da frivolidade das pessoas depreendemos verdades e leis morais. Como na primeira parte o livro termina com uma coda surpreendente: a visita noturna do narrador a casa do barão de Charlus (e sua dificuldade de entender o seu caráter - bem como sua cifrada proposta sexual) e o reencontro com Swann na casa da duquesa (quando a morte comparece novamente, onipotente). É impossível sintetizar o prazer que extraímos deste livro, o prazer que na verdade extraímos de nós mesmos, ao comparar nossas experiências com aquelas descritas no livro. Difícil escolher o que mais gosto: o sarcasmo com a aristocracia, a ironia, o desprezo pela inconsequência dos médicos, o manual infernal de arrivismo, as metáforas deliciosas. Tudo neste livro leva o leitor a um novo patamar de compreensão do mundo. Esta reedição da Globo da tradução original de Mario Quintana é bonita e cheia de mimos para o leitor (prefácio, resumo, caudalosas notas, posfácio), mas há uns reiterados erros bobos (como grafar Oriana e Oriane para o nome da duquesa) que mereceriam outra classe de apuro. Já tenho o ¨Sodoma e Gomorra¨ desta nova edição para ler. Mas os três volumes restantes do ciclo não foram revistos e publicados, portanto talvez eu acabe lendo mesmo as versões mais antigas. Mas não há pressa. Logo veremos. [início 18/04/2011 - fim 28/04/2011]
"O caminho de Guermantes: Em busca do tempo perdido (vol.3)", Marcel Proust, tradução de Mário Quintana, São Paulo: editora Globo, 3a. edição, revista (2007), brochura 16x23 cm, 687 págs. ISBN: 978-85-250-4227-9 [edição original: Lé côté de Guermantes (éditions Gallimard), 1919-1922]

quarta-feira, 4 de maio de 2011

dança ritual urbana

Publicado primeiro em versão digital no ano passado, "Dança ritual urbana" ganhou também uma edição convencional (para um dinossauro como eu as versões em papel sempre serão franqueadas a entrar em minha biblioteca). São 32 contos, boa parte deles muito bons, que não fariam feio em nenhuma antologia destes tempos. Quem os assina é um sujeito chamado Erwin Maack (que também assina Djabal Maat, um jogo de duplos caro à Borges, bem usado e citado por ele várias vezes no livro). Ele é carioca, mas está radicado nas terras de São Paulo há tempos. Os contos têm algo de barroco, explicitam um rebuscamento na linguagem e uma erudição que chamam a atenção, mas em nenhum momento este rebuscamento é excessivo. A forma das histórias lembrou-me coisas curtas do Zola (do "Como se casa, como se morre", por exemplo). Os temas e a ambientação delas também não são exatamente convencionais. Quando precisa identificar um lugar ou exemplificar algo Maack apresenta passagens, digressões ou cenários exóticos, quase sempre orientais (Índia, Rússia, Japão, Constantinopla, Macau, Ceilão, Budapeste) mas eles, os contos, parecem convergir de alguma forma à cidade de São Paulo, mesmo quando ele os encerra na Bahia, em uma praia paulista, ou na Amazônia. O olhar do viajante, do narrador que vê, sempre identifica algo que não se encaixa e merece ser registrado. Há uma voz feminina escondida em alguns contos (ou ao menos um cuidado, um zêlo especial, com o papel das mulheres nas histórias). Quando estava já na última série dos contos eis que aparecem e se repetem uns personagens curiosos: jogadores de mahjong que lembram, inventam e contam histórias, para si e para os outros. Talvez todos os contos tenham saído daí: do tamborilar das pedras, do perfume do kif, das estratégias vivas do jogo, da dança muda daqueles jogadores (mas isto só o Maack saberia nos dizer). Bom livro. [início 06/04/2011 - fim 19/04/2011]
"Dança ritual urbana (e outros movimentos", Erwin Maack, Petrópolis: KindleBookBr editora, 1a. edição (2010), brochura 14x21 cm, 162 págs. ISBN: 978-85-64046-35-1

segunda-feira, 2 de maio de 2011

ardores de agosto

Publicado originalmente em 2006, "Ardores de agosto" é o décimo romance de Andrea Camilleri envolvendo as histórias de Salvo Montalbano e segue imediatamente o que acontece no fraco "Lua de papel". O comissário já está nos seus cinquenta e cinco anos, recuperado de seus aborrecimentos físicos e psicológicos, não mais deprimido como em "Guinada na vida" ou "La paciencia da la araña". Acorda seus dias quase satisfeito. É verão (mas veremos que será o inverno, não da insatisfação, mas desta renovada satisfação de Montalbano). Camilleri usa umas cinquenta páginas para definir o cenário da trama (uma casa de praia) e afastar a presença da namorada de Montalbano, Lívia. A trama é bem intrincada e movimentada. O texto de Camilleri repleto de citações literárias como sempre. Há passagens que são construídas com a estrutura do drama. Camilleri parece gostar de fazer seus personagens criarem situações teatrais (em geral simulacros policiais para iludir os suspeitos). O resultado nem sempre é verossímel, mas tem lá seu encanto. Montalbano descobre fortuitamente, sob as fundações da casa de praia que alugou para Lívia e uns amigos genoveses dela, um cadáver de uma jovem desaparecida há anos. Recuperar a sucessão de eventos que levou à morte da garota é difícil. No meio dos sucessos da investigação Montalbano vê-se renovado e apaixonado pela belíssima e inteligente irmã gêmea da garota morta. Preso à prosa de Camilleri em um par de horas o leitor descobre o final. A leitura é agradável, mas há algo no esquema, na trama, que me parece forçado demais. Paciência. Ainda tenho "Alas da la esfinge" e "El campo del alfarero" no balaio de guardados. Ficarão guardados mitigar os aborrecimentos quaisquer que virão nestes dias duros de inverno. A ver. [início 14/04/2011 - fim 15/04/2011]
"Ardores de agosto", Andrea Camilleri, tradução de María Antonia Menini Pagès, Barcelona: ediciones Salamandra, 1a. edição (2009), brochura 13,5x22 cm, 251 págs. ISBN: 978-84-9838-214-3 [edição original: La vampa d'agosto (Sellerio editore) Palermo 2006]

domingo, 1 de maio de 2011

amor sem fim

"Amor sem fim" de Ian McEwan é um romance que sutilmente contrapõe ciência e religião, mas talvez seja mais correto dizer que apresenta ao leitor um jogo onde se confrontam a maneira de se entender o mundo cientificamente e as maneiras como quaisquer outras formas de conhecimento entendem o mundo. Estes jogos estavam na moda no final do milênio, como é o caso de quando o livro foi publicado originalmente, 1997. Agora, finda a primeira década deste século XXI, pode-se dizer sem medo que o obscurantismo e o anti-cientifismo dominam com folga, como a tempos não dominavam, o cenário dos projetos de entendimento do mundo, imersos que estamos nesta espécie de reinado da imbecilidade em que vivemos (e não digo isto olhando apenas para o Brasil). Bueno. Um sujeito, Joe Rose, físico de formação, trabalha com jornalismo científico e, apesar de lamentar-se um tanto ter abandonado o mundo da ciência pura, alcançou sucesso e reconhecimento em suas atividades. Ele é casado com uma acadêmica da área de letras, Clarissa Mellon, especialista em Keats. Um bizarro incidente em um dia estival no campo inglês transforma radicalmente sua vida. Um balão de ar quente perde o controle. Joe e um grupo de outros três ou quatro sujeitos tentam segurar o balão próximo ao solo para evitar que ele suba sem controle, levando embora uma pequena criança. Por azar um dos sujeitos que tentavam evitar que o balão se perca o segura por tempo demais e acaba caindo do balão e morrendo. O livro seria banal caso descrevesse apenas o dilema moral de Joe, que em um primeiro momento sente-se culpado por ter sido o outro e não ele o sujeito que segurou por tempo demais a corda do balão e que por conta disto morreu. McEwan faz com que um dos sujeitos que partilhou a tentativa de socorro ao balão passe a desenvolver uma curiosa patologia em relação a Joe. A partir daquele evento o outro sujeito, Jed Parry, entende-se completamente apaixonado por Joe e entende que esta paixão é recíproca (o que escrevo aqui não é exatamente um spoil, pois estes dois eventos, acidente e paixão, são descritos por McEwan nas primeiras trinta ou quarenta páginas). O que acompanhamos no livro são as várias estratégias que os personagens do livro desenvolvem para resolver o conflito em que se meteram. Acompanhamos os desdobramentos destas estratégias, pois todos, o casal, o sujeito apaixonado, a polícia, a viúva do sujeito que morreu, reagem de formas distintas a estas estratégias. McEwan acrescenta ao livro (mas faz parte dele, como um truque metalinguístico) uma espécie de artigo científico, um paper, onde descreve a síndrome erotomaníaca de Clérambault, que é a doença de que padece seu personagem. O livro é repleto de discussões que remetem ao mundo acadêmico e científico. Não é o melhor Ian McEwan que já li (gosto mais de "O jardim de cimento" e "A reparação", ou mesmo dos contos de "Primeiro amor, últimos ritos"), mas é um livro que se lê com prazer. Ao ler o livro lembrei do Fernando Landgraf, que sempre se perguntava porque não havia um livro decente que tratasse do mundo da academia, da vida universitária. A meu juízo o melhor desta classe de livros ainda é "Todas as almas", do Javier Marías, mas este "Amor sem fim" tem lá seu valor. [início 07/04/2011 - fim 14/04/2011]
"Amor sem fim”, Ian McEwan, tradução de Jorio Dauster, editora Companhia das Letras, 1a. edição (2011), brochura 14x21cm, 291 págs. ISBN: 978-85-359-1835-9 [edição original: Enduring love, Jonathan Cape, 1997]