sábado, 30 de novembro de 2019

nada se vê

Há livros que nos encantam não apenas pelo conteúdo, informações e conceitos que por meio deles aprendemos. Há aqueles que oferecem uma forma diferente de entender as coisas, algo distinto do convencional, que aguça nossos sentidos, aprimoram nosso olhar. É o que Daniel Arasse alcança com este seu volume de ensaios sobre arte, sobre pintura, sobretudo. O formato do volume é simples. Toma-se uma composição e faz-se uma descrição detalhada dos símbolos, referências, contexto histórico e motivações daquela proposta plástica, daquele objeto artístico. Contudo, o que Arasse incorpora em suas reflexões é apenas uma fração do que pode-se definir como "complexos mecanismos mentais" que cada um de nós, os sujeitos que ficam defronte um quadro ou - ainda que menos efetivamente - defronte a uma reprodução de um quadro, experimenta, elabora e associa, sintetiza, compreende e arbitra. Os seis ensaios gravitam cinco pinturas icônicas e uma peça escultória, arte produzida nos séculos XV, XVI e XVII: Marte e Vênus surpreendidos por Vulcano (de Tintoretto, circa 1550); Anunciação (de Francesco del Cossa, circa 1470-72); Adoração dos Magos (de Bruegel, 1564); Maria Madalena com anjos (de Tilman Riemenschneider, 1490-92); Vênus de Urbino (de Ticiano, 1538) e As meninas (de Velázquez, 1656-59). Não me atrevo a tentar resumir aqui as notáveis reflexões de Daniel Arasse sobre cada uma destas pinturas (assim como de uma dezena de outras, de vários outros artistas, com as quais ele contrasta as seis peças principais). Foi antes o uso da linguagem, os truques retóricos, as figuras de linguagem, o ritmo e o colorido das frases de Arasse que me surpreenderam. Vivemos em uma época terrível, onde mesmo pessoas formalmente educadas são incapazes de descrever o que veem, inaptas para interpretar os mais simples dos códigos, refratárias a qualquer sutileza, ironia, jogo mental. O que Arasse muito necessariamente nos ensina é ser possível conciliar toda uma tradição de historiografia da arte com o mundo das relações coloquiais, ligeiras e efêmeras da modernidade. É tempo sim de voltar aos livros de arte, preparar-me para os ritos de passagem de ano, preparar as peregrinações pelos museus e galerias.  Vale! 
Registro #1472 (crônicas & ensaios #264) 
[início: 09/10/2019 - fim: 11/10/2019]
"Nada se vê: seis ensaios sobre pintura", Daniel Arasse, tradução de Camilda Boldrini e Daniel Lühmann, São Paulo: Editora 34, 1a. edição (2019), brochura 14x21 cm., 164 págs., ISBN: 978-85-7326-729-7 [edição original: On n'y voit rien: descriptions (Paris: Éditions Denoël) 2000, 2005]

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

dias exemplares

Nesta bela edição da Carambaia (as usual) encontramos notas autobiográficas de Walt Whitman, que viveu entre 31/05/1819 e 26/03/1892. Trata-se de um conjunto de reflexões sobre vários aspectos da vida cultural e política dos Estados Unidos da segunda metade do século XIX. É um livro muito interessante de se ler, apesar da marcante diferença entre a primeira e as duas partes seguintes. A primeira (140 páginas, de um total de quase 370), foi escrita em cadernos, simultaneamente a Guerra Civil Americana, de 1861 a 1865, e finalizada em 1865, quando Whitman tinha 46 anos. Nesta parte ele digressa sobre sua biografia familiar e depois sobre seu envolvimento direto nos acontecimentos da Guerra da Secessão Americana. Trata-se de um relato forte, terrível até, pareceu-me uma funesta versão em prosa das gravuras de Goya sobre a guerra de independência espanhola (a luta contra os invasores franceses no início do século XIX). Whitman fala de seu cotidiano, dos cuidados que oferece os feridos na guerra, das cartas de consolo que escreve aos familiares dos mortos. A segunda parte começa com o que pode ser definido como desdobramentos do colapso que ele sofreu em 1873, segue até o início de 1876 e depois, retrospectivamente, revisando quase tudo o que fez na vida, até 1879, mais ou menos.  Nestas anotações acompanhamos as reflexões de alguém semi inválido, consumido pelas dores da guerra, o acosso da depressão. Ele vive em uma cabana isolada em Camden, no estado americano de New Jersey, percorre a mata, faz o censo das flores, das árvores, da passagem do tempo, dos pássaros e dos sons da floresta. Ele sabe olhar para o céu, reconhecer estrelas e constelações, faz associações com os deuses e a mitologia. Aos poucos o sujeito sai de seu torpor, de sua culpa, que é a culpa coletiva dos beligerantes, melhora de saúde. A terceira e última parte do livro (outras 150 páginas) um Whitman renovado viaja pelo país, primeiro em barcaças no Rio Hudson ou por estradas de ferro que sobem ao Norte, até a fronteira com o Canadá. Depois ele vai ao Oeste, até as montanhas Rochosas, visita as minas de prata  do Colorado, o que viria a ser o parque Yellowstone, no Wyoming e em Montana, conhece cidades do Oeste selvagem, região que se americaniza. Ele registra ter feito pelo menos 3.000 Km em trens. Em suas anotações antecipa um destino glorioso para seu país, agora pacificado, senhor de tantas terras cultiváveis e riquezas sem fim. Esta última parte equilibra descrições minuciosas da geografia, flora, fauna e pessoas de muitos lugares diferentes com reflexões sobre arte, literatura, natureza. Ele contrasta as culturas americana e europeia, visita amigos de longa data, como Emerson, Longfellow e Carlyle, pensa sobre a obra de Hegel, Coleridge, Poe, vai a concertos e exposições nas grandes cidades, faz um balanço sobre sua vida. Não se trata de um volume que sirva como biografia. As anotações terminam em 1882, mais ou menos a época em que a definitiva edição de seu famoso "Folhas da Relva" foi publicado. Bruno Gambarotto, que assina a tradução e um excelente posfácio, argumenta que as poesias de "Folhas da Relva" são irmãs das anotações deste "Dias exemplares". A edição da Carambaia reproduz em cada capa mil imagens de folhas, emulando o hábito de Whitman de colecionar folhas de plantas durante suas longas caminhadas, colocando-as entre as páginas dos livros que estava a ler. Um belo livro, que certamente trás junto consigo um tanto dos horrores da guerra e muito da serenidade do frescor, da alegria, que se alcança no campo, nas caminhadas, nas viagens. Também eu preciso preparar-me para os ritos de passagem de ano, preparar-me para as peregrinações pelos museus e galerias, reencontrar amigos e as pessoas queridas da família. Vale! 
Registro #1471 (perfis e memórias #93) 
[início: 09/08/2019 - fim: 11/10/2019]
"Dias exemplares", Walt Whitman, tradução de Bruno Gambarotti, São Paulo: Carambaia Editora, 1a. edição (2019), capa-dura 13x19 cm., 368 págs., ISBN: 978-85-69002-58-1 [edição original: Specimen Days & Collect (Philadelphia: Rees Welsh & Co.) 1882-83]

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

correspondência 1945-1970

Escrevo esse registro justamente hoje, 25 de novembro, 49 anos após o suicídio ritual de Yukio Mishima. Encontrei esse volume de cartas e também cartões postais por acaso, quando procurava um outro livro. Não havia lido nada sobre a edição e o lançamento, bastante recentes. Li as cartas sem pressa, tentando emular algo das camadas de tempo que elas guardaram, que elas capturaram. Que alegria ler este livro. Pois então. Entre março de 1945 e julho de 1970, Yasunari Kawabata e Yukio Mishima cultivaram uma franca amizade, sobretudo por meio de cartas. Mishima tinha pouco menos de 20 anos quando recebeu a primeira das cartas de Kawabata, impressionado com a força de "Floresta em plena florescência", primeiro de seus livros publicado. Kawabata já era um senhor - um jovem senhor se atualizarmos a régua da vida aos nossos dias, tinha  46 anos, mais que o dobro de Mishima. Por 25 anos, até o suicídio de Mishima, em novembro de 1970, os dois mantiveram uma relação de admiração e também competição, de respeito e rivalidade, de eternos mestre e discípulo. A leve assimetria no número de cartas (42 de Kawabata a Mishima, 51 de em sentido contrário), certamente deve-se ao início da correspondência entre eles, regrada pelo zelo com a etiqueta, por regras de conduta e boa educação, que hoje soam quase surreais nos relacionamentos entre indivíduos. Nas cartas não é apenas sobre literatura que se fala. Discute-se o estado de ânimo de cada um, problemas de saúde, opções de carreira, impressões de viagem, opiniões sobre peças de teatro (Mishima também foi um habilidoso dramaturgo), dúvidas mundanas, questões bastante pessoais. Claro, na maioria das cartas ou dos cartões postais a interlocução gravita o ofício do livro, da invenção, da estética, da política literária (Kawabata foi durante anos presidente do Pen Club japonês). Qualquer leitor familiarizado com a obra destes dois tremendos autores encontrará neste volume muita informação, muita reflexão sobre as obras de ambos, muitos esclarecimentos sobre o processo de criação literária praticado por eles. A edição oferece muitos mimos ao leitor: um bom posfácio, assinado por Donatella Natili, onde se contextualiza as cartas entre as demais publicações de ambos; curtos fatos biográficos dos dois, e uma longa bibliografia. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1470 (cartas #10) 
[início: 12/09/2019 - fim: 25/10/2019]
"Correspondência 1945-1970, Kawabata e Mishima", Yasunari Kawabata, Yulio Mishima, tradução de Fernando Garcia, São Paulo: Estação Liberdade editora, 1a. edição (2019), brochura 13,5x21 cm., 256 págs., ISBN: 978-85-7448-299-6 [edição original: Kawabata Yasunari, Mishima Yukio Ohfuku Shokan (川端康成・三島由紀夫往復書簡) 新潮文庫 1997]

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

poemas de amor ainda

No último 20 de setembro, dia da Revolução Farroupilha, feriado no Rio Grande do Sul e dia do gaúcho para os íntimos, estava eu longe de casa, em uma missão de trabalho. Em Curitiba, folheando um jornal digital (pobre Curitiba, não mais afeita a jornais impressos), descobri que haveria um lançamento de dois livros de poesia, justamente naquele 20 de setembro, em um bar/boate do centro, não muito longe de meu hotel. Resolvi experimentar, e dei sorte. Conheci um bocado de poetas em fúria (já resenhei aqui um deles, o bom "A caverna dos destinos cruzados", de Sergio Viralobos, Monica Berger e Leonardo Chioda; ouvi boa música; conversei com muita gente bacana; entre elas o industrioso Vanderley Mendonça - mas esta é outra história). O outro livro lançado naquela noite foi esse "Poemas de amor ainda", de Antonio Thadeu Wojciechowski, experimentado poeta (e publicitário, e professor, e pescador, e compositor, como ele mesmo se define) curitibano, de seus quase 70 anos. Se é que eu contei bem, este volume é o  trigésimo quarto de uma vasta produção. Nele estão incluídos seis conjuntos de poemas. Cinco são da lavra dele mesmo, Wojciechowski, e um sexto, de poemas traduzidos por ele, poemas de Szymborska e Dickinson, Rimbaud e Maiakóvski, Hölderlin e Baudelaire, Poe e Gandhi, cummings e Yeats, e de Shakespeare. Nos cinco conjuntos autorais - quase sempre líricos - ele faz uso de várias formas poéticas: as fixas (sonetos e haikus, talvez baladas, talvez trovas, talvez rondós, talvez odes) e também versos livres, mas quem disse que eu sei escandir poemas? Seus poemas explicitam uma alegria de viver, quase sempre são confessionais, transbordam fé na humanidade, no caótico inerente das paixões que nos conduzem nesta vida. Sou o menor dos anões neste assunto, ai de mim, mas da leitura dos poemas brota um sujeito que parece explorar o mundo sempre com olhos de menino, curioso, pleno, whitmaniano. Claro, eu precisaria conhecer mais cousas dele para ter a ambição de classificá-lo corretamente, mas quem disse que um poeta precisa ser entendido em todos seus matizes, em todas suas sutilezas. Vamos a ver se no futuro encontro mais cousas deste polonês errante. Vale! 
Registro #1469 (poesias #121) 
[início: 20/09/2019 - fim: 09/11/2019]
"Poemas de amor ainda", Antonio Thadeu Wojciechowski, Florianópolis: Bernúncia Editora, 1a. edição (2019), capa-dura 16x23 cm., 324 págs., ISBN: 978-65-80391-00-4

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

poesia holandesa

Daniel Dago, jovem senhor das cousas holandesas, organizou um volume com trinta poemas produzidos entre 1852 e 2009, a "primeira ampla antologia de poesia holandesa no Brasil", segundo ele mesmo diz, na apresentação. Nesta ele diz também que a tradução dos poemas foi feita a quatro mãos, as dele e as de Rubens Chinali, tradutor mais afeito aos jogos, métrica e rimas, ao ofício poético propriamente dito. Um pequeno parágrafo biográfico apresenta os autores incluídos na antologia. Não é o tipo de livro que lê-se de capa a contracapa, num fôlego só. São propostas poéticas muito variadas, cada uma delas uma pequena nesga na vastidão de poemas que cada um dos trinta engendrou ao longo de suas vidas. De qualquer forma o leitor diligente ganha muito escolhendo ao azar quaisquer dos poemas para ler. Do conjunto gostei particularmente de um, Hans Faverey, que diz: "Primeiro a mensagem mata / o destinatário, então / mata o remetente. / Não importa / em qual idioma. // Eu me levanto, abro / com força as portas da sacada / e respiro fundo. // As gaivotas que circulam / sobre a rua sem neve / não vou atrair / com gestos de alimentá-las. // Acendo um cigarro; / volto para meu posto / e respiro fundo. / Não há nada a se sonhar. / Tudo é possível. / Pouco importa." Bueno. Os poetas incluídos na antologia são: Piet Paaltjens, Jacques Perk, Albert Verwey, Herman Gorter, Willem Kloos, Henriette Roland Holst, Adriaan Roland Holst, Hendrik de Vries. J.H. Leopold, Theo Van Doesburg, P.C. Boutens, Jan Jacob Slauerhoff, Martinus Nijhoff, Hendrik Marsman, M. Vasalis, Ida Gerhardt, Jan Campert, J.C. Bloem, Gerrit Achterberg, Hans Lodeizen, Lucebert, Jan Hanlo, Remco Campert, Leo Vroman, Rutger Kopland, Gerrit Kouwenaar, Hans Faverey, Gerrit Komrij, Nachoem MN. Wijnberg e Ester Naomi Perquin. A edição é bilíngue, e é da Demônio Negro, ou seja, garantia de boa qualidade. Vamos em frente. Vale! 
Registro #1468 (poesia #120) 
[início: 19/09/2019 - fim: 28/09/2019]
"Poesia holandesa: do século XIX à atualidade", Daniel Dago (organização), tradução de Daniel Dago e Rubens Chinali, São Paulo: V. de Moura Mendonça Livros (Selo Demônio Negro), 1a. edição (2019), capa-dura 16,5x23,5 cm., 152 págs., ISBN: 978-85-66423-64-8

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

restos mortales

Vigésimo sexto volume com os sucessos do comissário veneziano Guido Brunetti, "Restos Mortales" é um tanto diferente da grande maioria dos anteriores. Donna Leon afasta seu personagem das Calli, Campielli e Canali de Veneza e o leva para a ilha de Sant'Erasmo, ao nordeste da Laguna. Desta vez não se trata de uma investigação oficial. Antes é o instinto moral e a memória afetiva que motivam Brunetti a examinar as circunstâncias da morte de um velho amigo de seu pai. Há uma cena algo burlesca no início do livro, que fez-me lembrar dos truques do genial Andrea Camilleri, escritor italiano que morreu há pouco tempo, de quem li livros notáveis, grande sujeito. Num julho de calores infernais, para evitar que um de seus subordinados possa ser acusado de agressão a um suspeito, Brunetti simula um desmaio, uma queda. Após uma sucessão rocambolesca de equívocos, ele resolve aceitar as recomendações médicas de ficar em licença de saúde por algumas semanas. Neste período ele passa os dias remando, num dolce far niente, lendo seus adoráveis autores clássicos: Plínio e Suetônio, Heródoto e Eurípedes. Na ilha de Sant'Erasmo, onde está hospedado, numa casa de verão de uma das tias de Paola, Brunetti reencontra um velho amigo de seu pai, Davide Casati, um sujeito taciturno. Davide demonstra ser um hábil marinheiro e também uma espécie de filósofo amador, porém alguém que esconde algo confuso na alma, somente sendo capaz de demonstrar preocupação com a morte das abelhas que cria nos baixios da Laguna de Veneza. Após a aparente morte acidental de Davide em uma dia de tempestade, Brunetti, um tanto para consolar a filha do morto, outro por sua perene curiosidade policial, resolve investigar os acontecimentos e chega a uma conclusão surpreendente. Donna Leon invoca temas diferentes desta vez. Ela discorre sobre questões ecológicas, sobre o suicídio, sobre a velhice, sobre a cobiça, sobre os animais. Em algum momento surge brevemente o nome de Robert Hughes e suas reflexões sobre arte. Que miríade de associações um sujeito não faz quando lembra de Hughes? Há notas amargas neste volume, tons duros, melancólicos, de quem já não acredita na capacidade do homem de melhorar, tornar-se menos perverso e daninho, para si mesmo e para o planeta. Enfim, trata-se de um bom equilíbrio entre diversão ligeira e importantes reflexões contemporâneas. Bom livro, como sempre deveria ser. Vale! 
Registro #1467 (romance policial #92) 
[início: 20/10/2019 - fim: 24/10/2019]
"Restos Mortales" (Brunetti #26), Donna Leon, tradução de Maia Figueroa Evans, Barcelona: Editorial Seix Barral / Booket #2776 (Grupo Planeta Manuscrito), 1a. edição (2018), brochura 12,5x19 cm., 350 págs., ISBN: 978-84-322-3331-9 [edição original: Earthly Remains (Zürick: Diogenes Verlag AG / Penguin Randon House Group) 2017]

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

el cartero del rey

Escrita em 1912, essa pequena peça de teatro deixa-se ler em um par de horas. É uma cousa sutil, delicada, algo mágica, que provoca o leitor/espectador refletir sobre nossa humana fragilidade, nossa transitória condição, nosso destino. A peça (Bengali Dak Ghar no original) foi traduzida por Yeats e por conta disto rapidamente ganhou visibilidade no ocidente, tendo sido encenada com regularidade desde sua primeira publicação (cabe dizer que ambos ganharam um prêmio Nobel, Tagore em 1913, Yeats em 1923). A história é curtíssima, e tem muito de alegórico. Uma criança, Amal, encerrada numa casa em função de sua doença, debilitante e incurável, alcança conversar e fazer perguntas a algumas pessoas, aquelas que passam próximas da janela de seu quarto. Neste ele conversa com seu pai adotivo, Madhav, e com um médico; da janela do quarto ele conversa com um leiteiro; um vigia noturno; um marinheiro; um valentão, que é chefe de sua aldeia; e com uma florista, Sudha. Basicamente ele pergunta a estas pessoas qual o destino delas, pergunta para onde eles vão. Os diálogos levam o leitor a refletir sobre o significado da vida, sobre a curiosidade que nos move, que nos obriga a tentar entender o quê significa mesmo partilhar uma existência, uns poucos anos, em um universo que tem mais de 13,77 bilhões de anos. Eventualmente, cada um de nós se desapega da vida, do eu, das cousas, dos outros. Todavia, quase sempre, esta epifania acontece quando já não somos capazes de mudar, nem tampouco entender de fato, a razão e o acaso de nossos destinos, se é que isto importa. Vale! 
Registro #1466 (drama #16) 
[início - fim: 03/10/2019]
El cartero del Rey", Rabindranath Tagore, tradução de J.A. López de Letona, Madrid: Ediciones Akal, (Básica de Bolsillo) 1a. edição (1986), brochura 12x18 cm., 80 págs., ISBN: 978-84-460-3323-3 [edição original: The Post Office (New York: Macmillan Company) 1914]

terça-feira, 5 de novembro de 2019

helena

Nunca havia lido essa peça, nem tampouco cheguei a ver uma apresentação dela, mas conhecia sua trama (graças ao bom Robert Graves, sempre o melhor artífice das associações possíveis sobre os gregos). Eurípides a escreveu no século V a.C. A peça baseia-se em uma variante da história mais conhecida de Helena de Troia (ou de Esparta). Na Ilíada aprendemos que Helena, mulher de Melenau de Esparta, foi sequestrada por Páris, filho de Príamo, rei de Troia. Desta forma ela é a causa material da longa guerra entre gregos e troianos, da morte de tantos guerreiros de ambos os lados. Em uma outra versão do mito, registrada por Heródoto e alguns outros, Helena foi transportada logo após seu sequestro para o Egito (para Mênfis), abandonada por Paris e lá mantida, incógnita, por dez anos, até ser reencontrada e levada por Menelau de volta a Esparta. É esta a variante utilizada por Eurípides para construir sua peça. Menelau, após a destruição de Troia pelos exércitos gregos, encontra nas ruínas da cidade uma Helena, mas não a sua. Esta nada mais é que um simulacro, um fantasma, um espectro engendrado por Hera, que enganou os sentidos dos dois grupos de combatentes durante os dez anos da guerra. Helena e Menelau, assim como os demais guerreiros espartanos, embarcam em um navio, mas navegam erráticos por longos sete anos pelo Mar Egeu, jamais alcançando Esparta. Imediatamente antes dos sucessos da peça, o navio deles naufraga nas costas do Egito. Enquanto Menelau procura ajuda, Helena e os demais marinheiros que sobreviveram ao naufrágio abrigam-se em uma gruta próxima da costa. Quando Menelau chega a cidade (Mênfis) encontra lá a verdadeira Helena, sua mulher há tanto anos sequestrada (na peça são 17 anos). A princípio ele pouco acredita na incrível semelhança entre a mulher que encontra no palácio e aquela que havia deixado na gruta marinha, mas após um de seus marinheiros alertá-lo que o espectro da outra Helena havia desaparecido no ar, alçado aos céus, desaparecido, ele passa a acreditar ter sido ludibriado pela deusa (Hera jamais perdoou Helena ter sido oferecida como prêmio a Páris após este ter escolhido Afrodite a mais bela das deusas e, cabe dizer, o fato de Helena ser filha bastarda de seu Zeus tonante). A peça gravita os sucessos que o casal finalmente reunido, Helena e Menelau, precisam engendrar para conseguirem fazer-se ao mar novamente, fugirem do palácio egípcio em segurança e voltarem para Esparta. A Helena de Eurípedes é uma mulher valorosa, com força moral e psicológica que supera em muito os engenhos de um tosco Menelau. É ela quem concebe todas as ações que ambos precisam tomar. Diversão garantida. A edição é bilíngue. Uns poucos comentários críticos e um prefácio assinado pelo próprio tradutor, Trajano Vieira, completam o volume. Seguro que ninguém perde tempo lendo uma peça clássica, um drama como este. Aprende-se um bocado, seja sobre a miríade de mitos que a sustentam, seja pelos matizes de entendimento de como opera a psique humana, de como nós fazemos uso da ficção para suportarmos a complexidade das paixões humanas, as surpresas do acaso, as vicissitudes da vida. Mas é hora de voltar a fazer-se ao mar. Vale! 
Registro #1465 (drama #15) 
[início: 29/08/2019 - fim: 31/08/2019] 
"Helena, de Eurípides, e seu duplo", Eurípides, tradução de Trajano Vieira, São Paulo: Editora Perspectiva (Coleção Signos #59), 1a. edição (2019), brochura 15x20,5 cm., 272 págs., ISBN: 978-85-273-1145-8

sábado, 2 de novembro de 2019

três ícones

Massimo Cacciari, filósofo italiano, ensaísta dos bons, apresenta neste pequeno volume três curtos ensaios sobre arte. Ele fala de três obras produzidas no século XV que considera "(...) em sua finalidade, em ato, apresentarem um pensamento pictórico específico". As três obras são: "A trinidade", de Andrei Rublev, parte do acervo da Galeria Tretyakov, em Moscou; "Ressurreição", de Piero della Francesca, parte do acervo exposto no Museo Civico de San Sepolcro, na Itália; e "Retrato dos Arnolfini", de Johannes de Eyck, do acervo da National Gallery, de Londres. Cacciari alcança encontrar nas três obras camadas de símbolos, de representações, de informações cifradas. Sua narrativa ilumina as obras, cada gesto capturado pelo artista, cada fragmento das imagens é por ele desconstruído, forçado a mostrar sua razão de estar ali. O que ele faz é basicamente narrar toda uma simbologia cifrada. Mas, a meu juízo, o leitor quase se afoga neste mar de referências cruzadas. A linguagem utilizada por Cacciari é muito técnica, coisa que certamente afasta alguém não muito familiarizado com a história da arte, com história das religiões, com estética, sociologia, com a filosofia, como eu. Difícil decisão recomendar ou não um livro assim. Gosto mais do estilo de Cees Nooteboom quando apresenta suas reflexões sobre arte (dele já li os seminais "El bosco", "Zurbarán", "El enigma de la luz", "Tumbas"). Claro, a rica e exuberante descrição das obras que Cacciari oferece ao leitor nos dá oportunidade de ilustrar-nos mais, a aprender algo que não conhecemos, afinal, em algum momento de nossa história perdemos a capacidade de entender certas alusões iconográficas. Será o caso de invejarmos nossos ancestrais do medievo, da renascença? Todavia, apesar do livro ser curtíssimo, precisei investir um bocado de tempo nele para poder dizer "que li este livro". Vamos em frente, tenho um outro Cacciari para registrar em breve. Vale! 
Registro #1464 (crônicas e ensaios #263) 
[início 03/04/2019 - fim: 14/09/2019] 
"Três ícones", Massimo Cacciari, tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Pré textos | Kutchak #2), 1a. edição (2007), brochura 12x18 cm., 74 págs., ISBN: 978-85-92649-14-2 [edição original: Tre Icone (Milano: Adelphi Edizione S.P.A Milano) 2007]