sábado, 29 de fevereiro de 2020

book of longing

Encontrei por acaso esse livro, antigo e algo surrado, publicado originalmente em 2006. Estava displicente olhando livros no aeroporto de Cape Town quando topei com ele. Trata-se de uma coleção de mais de 160 poemas e cerca de 40 ilustrações, todos da lavra de Leonard Cohen. Já havia lido transcrições de muitas de suas canções e comecei a ler um livro dele em prosa (A brincadeira favorita, de 1963, que abandonei no meio, se tanto). Os poemas aqui reunidos tratam sobretudo de espiritualidade, auto conhecimento, meditações, estados de consciência; registram estados de humor, dor, amor, sofrimentos e espantos; conversam com musas fugidias; tratam do mistério que é a produção poética, o ofício do verso; são por vezes dedicados a amigos, pessoas queridas, a seus mestres, várias vezes citados, Kyozan Joshu Roshi e Ramesh Balsekar. Alguns são datados, dos anos 1970, 1980, 1990, outros não. Foram escritos em vários lugares: Montreal, Mumbai, Palestina e em Mount Baldy, um retiro zen budista, próximo a Los Angeles, onde ele morou por muitos anos (cabe dizer que ele tornou-se um monge zen, em 1997, passando a usar, nestas práticas, o nome Jikan, "O silencioso". Estes poemas e desenhos foram recolhidos de vários cadernos de anotações. Boa parte das ilustrações e desenhos são autorretratos, intervenções em fotografias e experimentos com ferramentas digitais de produção de imagens (as coisas tipicamente toscas do final do século XX, com os pixels explodindo quando impressos). Alguns dos poemas tornaram-se canções (em parceria com Sharon Robinson, o Ten New Songs, de 2001, por exemplo), outros foram publicados em revistas e coletâneas de poetas. Todos eles foram cedidos por Cohen para serem depositados em um site finlandês, administrado por um sujeito chamado Jarkko Arjatsalo, dedicado a sua obra (o impressionante leonardcohenfiles, verdadeiro manancial de informações, pois tudo o que você precisa saber sobre Leonard Cohen está ali). Aprendi um bocado sobre esse complexo artista, e algo também sobre a vida e o fluir do tempo, sobre a força da amizade e o amor. Sobre os anseios, como bem diz o título do livro. Vale!
Registro #1494 (poesia #126) 
[início 16/02/2020 - fim: 28/02/2020] 
"Book of Longing", Leonard Cohen, London: Penguin Books, 1a. edição (2007), brochura 12x18 cm., 232 págs., ISBN: 978-0-141-02756-2

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

blues do fim dos tempos

Esse curto ensaio foi preparado originalmente como uma palestra na Stanford University, em 2007. McEwan parte da invenção da fotografia, que congela imagens e tempo desde meados do século XIX, para refletir exatamente sobre o fluir do tempo, sobre nossa mortalidade, sobre o porvir, o futuro, futuro de cada um de nós e de toda a humanidade. Calcado sobretudo num livro de Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium, McEwan discute o apocalipse cristão, o milenarismo e sobre as inúmeras seitas que ao longo dos séculos apregoam a iminência do final dos tempos, da morte completa e extinção dos homo sapiens. Trata-se de um ensaio produzido por alguém imune à fé religiosa, da ideia de exista um deus que povoe os céus e nos vigie, controle ou puna. Sua palestra basicamente oferece à audiência, sugere, talvez seja o termo mais apropriado, que não há evidência em nosso passado que possa nos fazer crer em um futuro predeterminado, fixo, previamente decidido por alguma deidade e descrito em algum livro santo ou por alguma revelação mística, que indivíduos possam ter experimentado. Os homens deveriam para ele, emprestando as palavras do biólogo e entomologista americano, Edward Osborne Wilson, conhecido por seu trabalho com ecologia, evolução e sociobiologia, divorciar-se da religião, pois um homem sozinho não consegue produzir um sistema moral de valores e tampouco competir com a exuberante descrição dos apocalipses e finais do tempo engendrados por poetas e artistas visuais  vinculados a todos os grupamentos humanos que desenvolveram sistemas mitológicos sofisticados, porém simples de serem apropriados, entendidos, pelo mais limitado dos fiéis. Morrer é fácil, viver é difícil. Vamos em frente meu caro McEwan, não será desta vez que o milenarismo será esquecido pelos pobres homo sapiens deste periférico e frio planeta. Vale!
Registro #1493 (ensaio #267) 
[início 20/01/2020 - fim: 22/01/2020] 
"Blues do fim dos tempos", Ian McEwan, tradução de André Bezamat, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Biblioteca Antagonista #29), 1a. edição (2019), brochura 12x18 cm., 164 págs., ISBN: 978-85-92649-53-1 [edição original: End of The World Blues (Stanford University) 2007]

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

poemas de natal

Havia encomendado esse livro para ler mesmo nos dias que antecedessem o  Natal, mas um erro bobo só o fez chegar às minhas mãos neste início de 2020. Este infortúnio não tirou nada da força dos poemas, claro, mas roubou-me o prazer de mergulhar literariamente no inverno russo, conduzido por Joseph Brodsky. Neste volume estão reunidos dezoito poemas dele, inspirados e/ou produzidos por ocasião das festas natalinas, num arco temporal de mais de três décadas, de sua juventude nos anos 1960 a de exilado, saudoso e ferino nos anos 1990 (ele recebeu o prêmio Nobel em 1987 e morreu em 1996). A edição é bilíngue, assinada pela industriosa senhora das letras eslavas Aurora Bernardini. Os temas dos poemas gravitam obviamente o milagre do Natal, o nascimento do menino jesus, a sagrada família, ecoam a luz do deserto, o céu e as estrelas, as cores dos mantos dos reis magos, o fogo na noite, a expectativa do momento, a história e as personagens bíblicas, a neve cândida de pura (que talvez só caia mesmo muito esporadicamente na Palestina, e muito pesadamente na São Petersburgo natal de Brodsky). Brodsky também povoa seus poemas com as circunstâncias da época em que os escreve, fala de seus aborrecimentos, duas dúvidas, seus espantos, do azar de estar em lugares remotos da Russia, experimentando a pena de exílios forçados. O volume inclui uma longa entrevista/conversa entre Brodsky e Piótr Vail (), produzida em 1993, em que eles discutem a gênese destes poemas de Natal, um marco referencial importante em sua obra, e também questões estilísticas, de métrica dos poemas, de sua compreensão da religiosidade, de fé (ele era um agnóstico praticante, avesso a todo misticismo religioso). Grandessíssimo Brodsky. Lembro-me de ter procurado vestígios de sua passagem por Veneza, de sua tumba em San Michele, mas isso já faz tanto tempo. Paciência. Vale!
Registro #1492 (poesias #125) 
[início 25/01/2020 - fim: 28/01/2020] 
"Poemas de Natal", Joseph Brodsky,  tradução de Aurora Fornoni Bernardini, Belo Horizonte: Editora Âyiné (coleção Das Andere #17), 1a. edição (2019), brochura 12x18 cm., 168 págs., ISBN: 978-85-92649-58-6

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

investigando a roda

Do Antonio Rodrigues Neto já li "Descobrindo a cada passo", de 2016, "Calculando com fatias", de 2017, e "Brincando com o conta gotas", de 2014. Esses livros foram pensados como ferramentas didáticas dedicadas aos professores que trabalham com matemática no ensino fundamental. Segundo o Antonio Neto serão seis volumes, que correspondem aos conteúdos programáticos de matemática da base curricular do ensino fundamental. "Investigando a roda" é o quarto volume da série. Desta vez o autor trata de geometria, de razão e proporção entre as coisas, do cálculo de perímetros, da relação entre translação e rotação, das engrenagens, da ideia do número . Situações do cotidiano são utilizadas para ilustrar os conceitos. Já disse nas resenhas dos demais volumes que a linguagem é simples mas absolutamente rigorosa. Não se faz uso de malabarismo tontos para empurrar abstrações matemáticas na mente dos estudantes, antes sim a provocá-los aos espantos que a natureza nos oferece por meio da matemática. Estes livros da coleção "Para gostar de matemática" ficam bem em qualquer biblioteca de pais que têm filhos (nem tudo pode ser deixado aos professores, nas escolas, já se sabe. Vamos a ver se o Sesi-SP publica logo as demais aventuras matemáticas do Toninho Neto. Vale!
Registro #1491 (didático #12) 
[início: 02/02/2020 - fim: 03/02/2020]
"Investigando a roda", Antonio Rodrigues Neto, São Paulo: SESI-SP editora (Educação; Coleção: Para gostar de matemática), 1a. edição (2019), brochura 12x18 cm., 88 págs., ISBN: 978-85-504-0798-2

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

triste

Rafael Sica é senhor dos silêncios, daquilo que não precisa ser explicitamente dito, com seu traço congela cousas que todo homo sapiens imediatamente entende, pouco importa quem seja, de que lugar venha, se goste ou não de cartuns, de ilustrações.  Em "Triste" encontramos trinta ilustrações em grande formato, mais ou menos A3, em que sempre um sujeito parece indiferente aos espantos do lugar onde está, parece inerte, alheio, preso em reflexões, em sonhos. Catão já nos ensinou que "Nunca estou mais ativo do que quando nada faço, nunca estou menos só que quando a sós comigo mesmo". Talvez seja isso, o sujeito retratado por Sica não se ilude com o bizarro de seu entorno, não reage ao surreal, a indiferença do universo, aos azares do dia. A magia - ou uma perversa volta do parafuso - seria se fosse possível que cada um de nós entendêssemos os pensamentos dos outros, nossos mútuos estados de ânimo, compartilhássemos medos e preocupações. Alcançaríamos nos tornar sujeitos mais solidários, menos maus, mais empáticos, menos canalhas? Jamais saberemos. Neste link da Lote 42 um eventual leitor pode ter uma ideia de como esse livro foi produzido. Grande Sica. Vamos a ver com o quê este inquieto artista nos provocará no futuro. Vale!
Registro #1490 (quadrinhos #77) 
[início - fim: 30/01/2020] 
"Triste", Rafael Sica, São Paulo: editora Lote 42, 1a. edição (2019), wire-o e capa em serigrafia 26x37 cm., 64 págs., ISBN: 978-85-66740-44-8 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

ensaio sobre a jukebox

Publicado originalmente em 1990, "Ensaio sobre a jukebox" é uma curta e estranha novela, que trata sobretudo de obsessões e do ofício de escrever, de como criar literatura e do distanciamento que um autor precisa ter dos avatares que se tornarão personagens das cousas que cria. Esse volume faz parte de um conjunto de cinco ensaios publicados entre 1984 e 2013 por Peter Handke, austríaco que recebeu o prêmio Nobel de 2019. O narrador conta a história de um sujeito obcecado por jukeboxes, um sujeito que prefere seguir seu projeto de escrever um livro sobre os significados que as jukeboxes tiveram em diferentes fases de sua vida, ao invés de experimentar in loco as transformações decorrentes da queda do Muro de Berlim. O narrador percorre cidades espanholas: Soria,  Burgos, Zaragoza, San Sebastian, Logroño, mas também faz o censo de todas as cidades do mundo que frequentou e encontrou jukeboxes (que, convenhamos, já era um objeto difícil de se encontrar no final dos anos 1980, convenhamos). Lembrei-me dos meses em que vivi na Espanha, justamente neste mesmo final dos anos 1980, e de meu estranhamento com as máquinas de jogos de azar, uns caça-níqueis luminosos, coloridos e barulhentos que encontrava em todos os botecos de tapas e restaurantes que frequentava. Lembrei-me de Cees Nooteboom, que também viajou curioso e encantado pela meseta castelhana, de Javier Marías, também ele um frequentador de Soria, do tempo onipotente com sua ampulheta, das cicatrizes físicas e morais que todo corpo que envelhece guarda. Haverá mais Handke por aqui. Vale!
Registro #1489 (novela #74) 
[início 28/01/2020 - fim 29/01/2020] 
"Ensaio sobre a jukebox", Peter Handke, tradução de Luis S. Krausz, São Paulo: editora Estação Liberdade, 1a. edição (2019), brochura 14x19 cm, 112 págs. ISBN: 978-85-7448-310-8 [edição original: Verusuch über die Jukebox, Suhrkamp Verlag (Frankfurt am Main, Alemanha), 1990]